terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

1602) Eyeball kicks (1.5.2008)



(John Crowley)

Nos manuais de redação criativa em inglês usa-se a expressão “eyeball kick”: “Aquele detalhe perfeito e eloqüente que produz uma imagem visual instantânea na mente do leitor”. (Eu achava que “eyeball kick” significava “chute no olho”, e só depois me toquei que “kick” tem também o significado de “sensação inebriante e eufórica produzida por um estímulo agradável” – mas ou menos o que a gente sente quando toma o primeiro gole de cerveja gelada num sábado de sol.) “Estímulo visual” seria uma maneira sóbria de descrever esse efeito.

John Crowley é um autor dotado da graça da descrição breve, sem enfeites, sem esforço. Em The Translator ele descreve a visita da protagonista, Kit, à casa dos pais, no começo dos anos 1960, quando os pais acabaram de comprar sua primeira vitrola e seus primeiros long-plays: “George fazia os discos deslizarem para fora de seus invólucros de papel, como se fosse raridades, revirando-os habilmente pelas bordas, com seus longos dedos brancos”. Ele não descreve apenas o gesto físico, mas, ao mesmo tempo, comunica algo do fascínio e do cuidado com que aqueles objetos novos e caros são tratados.

Mais tarde, Kit recorda a mãe trabalhando na horta, “com um olho entrecerrado pela fumaça ascendente do seu Pall Mall”. Está tudo descrito aí: não apenas o vislumbre visual que temos tantas vezes de alguém fumando com as mãos ocupadas, mas também a sutileza psicológica de mostrar alguém que cuida dos legumes mas não cuida de si, e o detalhe (que para o leitor americano tem mais peso do que para mim) de citar a marca, em vez de apenas “um cigarro”, como detalhe de época e de faixa social.

Quando Kit sai passeando ao volante do automóvel, cantando junto com o rádio, ele diz: “Ela acelerou, deixando o braço pender junto à lateral do carro, como se estivesse deslizando numa canoa e o mergulhasse na água”. É um típico gesto de despreocupação, transposto inesperadamente de um veículo para outro, e enriquecendo seu significado. Funciona muito mais do que se dissesse: “Ela acelerou, deixando o braço pender junto à lateral do carro. Estava feliz”.

Kit tem uma tensa reunião com um agente da CIA, e percebe “seu pequeno sorriso em forma de cimitarra”. Uma TV desligada a um canto da sala se assemelha a “uma fera entediada”. (Em inglês é muito melhor: “a bored beast”, dois monossílabos quase que cuspidos com desdém.) Imagens assim, a intervalos, enriquecem o texto sem atravancá-lo. Se alguém usa isto o tempo inteiro, desvia a atenção do livro para o autor; a leitura se transforma numa espécie de gincana em que o leitor, em vez de ler a história, fica anotando mentalmente: “Gostei mais desta frase... Esta aqui foi mais fraquinha... Esta outra está ótima...” Crowley é basicamente um contador de histórias com grande percepção psicológica, e quando aparece um desses “flashes visuais” ele traz sempre uma pequena revelação sobre os personagens, algo que é transmitido sem precisar ser dito.

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