domingo, 25 de outubro de 2009

1319) Um cara que escreve bem (5.6.2007)


(François Villon)

Vi uma vez em algum artigo de revista uma frase cujo autor não recordo, mas, na falta do autor, vá a frase sozinha. Discutia-se o caráter de um certo literato, e no meio de críticas amargas ao seu perfil moral o comentarista saiu-se com esta: “Mas, vamos deixar pra lá. Um cara que escreve bem não pode ser um canalha completo”. Isto me sossegou pelo resto da vida até agora, porque eu sempre me havia deparado com este aparente paradoxo: canalhas irremediáveis que, no entanto, pintavam maravilhosamente, ou jogavam um futebol de encher as vistas, ou dirigiam filmes belíssimos, etc.

Talento e bom caráter não são sinônimos, e vou mais longe: não são coisas que tenham muito a ver uma com a outra. Se assim fosse, todo sujeito de espírito bom seria também um excelente profissional em sua atividade. Ser um artista de talento, em qualquer atividade, requer uma noção intuitiva de harmonia, equilíbrio, obediência a normas, capacidade de inovação, uma série de virtudes estéticas que, mesmo que não se estendam ao nível da Ética (que sempre é mais problemático) fazem com que pelo menos naquele terreno específico o cara demonstre virtudes. Pode ser um desorientado, um bruto, um sangue-ruim, um calhorda, mas não o é por completo. Alguma coisa nele se salva.

Quando falamos em casos assim, alguém sempre se sai com exemplos de escritores criminosos, como o poeta François Villon ou o Marquês de Sade; mas estes são casos extremos, que pelo próprio extremismo não valem como regra, e sim como exceção. A regra, no mundo literário e artístico, é o mau caráter em escala cotidiana: o poeta brilhante que dá calote em todo mundo, o romancista vigoroso que bate na mulher mais vigorosamente ainda, o cineasta que trata a equipe a pontapés, o jornalista que faz da mentira gratuita uma atividade remunerada, o roqueiro que cospe nos fãs e arrebenta quartos de hotel. Ou então é simplesmente o Gênio que é um Chato. Coisa mais freqüente do que podemos imaginar. Tudo que o cara tem de bom sai nos seus escritos, mas ninguém agüenta passar uma tarde conversando com ele.

Será que o talento redime sujeitos assim? Pelo que posso imaginar, os defeitos pessoais tendem a se esvair anos após a morte do sujeito, enquanto o seu talento, se for um talento real, vai ficando mais encorpado e mais visível. Que sabemos nós, afinal, da pessoa de Camões ou da de Michelangelo? Não mais que algumas páginas de dados biográficos. Talvez, se pudéssemos conversar com algum contemporâneo seu, ouviríamos algo como “Pelo amor de Deus, esse cara era insuportável, ninguém agüentava ele, só conseguia se manter porque as coisas dele faziam sucesso...” Do mesmo modo, fico imaginando que certos figurões intragáveis de hoje (mas talentosos) serão endeusados daqui a cem anos como se fossem anjinhos, e os pósteros comentarão entre si: “Coitado, foi tão incompreendido em vida... Realmente, era um indivíduo à frente do seu tempo”. E não terão entendido nada.

Um comentário:

Antonio Luiz M. C. Costa disse...

O que significa "redimir"? Originalmente, que a alma foi salva, foi destinada ao céu e não ao inferno. Faz sentido levantar essa questão de um ponto de vista não religioso? Se um sujeito foi calhorda, mas deixou bons escritos, aproveitem-se os textos e conte-se a verdade nas proteger, ponto. Não é preciso edulcorar sua reputação a todo custo, nem pôr seus livros no índex.