sábado, 5 de julho de 2008

0437) O hipocondríaco (13.8.2004)




(cartum de Doug Savage)

Dizem que um louco é um sujeito que perdeu tudo, exceto a razão. Pelo mesmo raciocínio, um hipocondríaco é um sujeito cuja única parte saudável é o corpo. Não se iludam com aquela testa eternamente franzida, com aquele olhar de bicho acuado, aquelas costas curvas de quem carrega o mundo as ombros. Está sadio, tão sadio quanto eu e você, e é para assegurar-se disto que se envenena de remédios de manhã à noite.

Há muitos tipos. Uns são hipocondríacos por insegurança, baixa auto-estima: pensam que são mais frágeis do que as outras pessoas, que são cheios de defeitos fisiológicos ou genéticos, e que é preciso tomar medidas diárias para atenuar esse déficit. Outros são o contrário: acham-se superiores, acham que são exemplares únicos e preciosos da espécie humana, e que por isto mesmo necessitam de cuidados especiais e contínuos. Assim, cuidam do corpo como um colecionador de automóveis antigos trata do seu raríssimo exemplar de Oldsmobile 1954 (ou coisa parecida – não entendo nada de carro velho).

O hipocondríaco toma remédio por aquilo que George W. Bush e seus estrategistas chamam de “defesa preemptiva”: atacar antes, em vez de esperar o ataque do adversário. Sua mentalidade é a mesma da ditaduras militares. Temendo a própria incapacidade de enfrentar uma eleição, elas dissolvem os partidos políticos. Para se certificar de que o regime não tem opositores, faz os membros da Polícia Secreta fundarem partidos clandestinos, que atraem e doutrinam os jovens, e finalmente os prendem. (Não estou exagerando – leiam 1984). O corpo do hipocondríaco é uma ditadura farmacêutica, saturada de substâncias químicas cuja finalidade é exorcizar a ameaça de uma palavra ouvida na televisão.

William Burroughs dizia que um viciado em drogas não é mais um ser, é a metade de um ser, que só existe quando a droga está presente. O hipocondríaco geralmente minimiza a importância da droga em sua vida: não a idolatra (como muitos usuários da maconha ou da cocaína) nem recorre a ela com horror (como muita gente que fuma cigarro: “Ai, que saco, preciso parar de fumar essa porcaria!”). Sua idéia fixa não é o remédio, é a doença. Basta ler num jornal sobre um tipo raro de câncer ósseo descoberto na Malásia, que só atinge a terceira costela do lado direito, para ser justamente essa costela que começa a formigar, a latejar e a dar sinais de vida.

O hipocondríaco lê bula de remédio, manual de primeiros socorros, livro de Patologia, catálogo de laboratório farmacêutico. Tudo que lê ele interpreta como um sinal do Céu que lhe caiu sob os olhos no momento exato para salvar sua vida: estava sofrendo de um mal perigosíssimo, e jamais saberia, se não tivesse tido a sorte de ler este aviso. Sartre criou um personagem chamado O Autodidata, que lia todos os livros da biblioteca por ordem alfabética. O Hipocondríaco ideal é o que gostaria de tomar todos os remédios, para curar-se de todas as doenças.



3 comentários:

Elvis "Wolvie" disse...

Senti repentinamente um alívio por não ser hipocondríaco só de pensar em me entupir de remédios! >___<
Mas interessante suas comparações, sobretudo com a ditadura e a bem colocada referência a 1984.

Bira disse...

O que eu queria mesmo é alguns remédios para me curar da hipocondria.

Anônimo disse...

O prefeito Elmir proibiu a interdição de Maria Joaquina, ex-professora de ciências aplicadas da Escola do Pequizeiro de um município de Goiás, com o seguinte argumento: “aquele que não toma Rivotril, Gardenal, Fluoxetina e Ritalina que atire a primeira alta”. Como não houve objeção, Maria Joaquina gozava de liberdade entre os cidadãos normais.

A comunidade estava animada com o campeonato das quadrilhas dos professores na tradicional festa junina, menos Maria Joaquina que alertava a todos sobre o magnetismo irradiado da praça perto do som e da fogueira. A ex-professora afirmava de pés juntos que a história da Paraíba foi contada de trás para frente e que o grupo de João Pessoa não foi , e sim se perdeu na Ponta do Seixas.

As cores fumegantes das labaredas do maior fogaréu montado confundiam-se com a vermelhidão do pôr-do-sol do cerrado. Ao mesmo passo, as anotações de Joaquina caiam dos seus braços, clamava: “menos triângulo, menos triângulo é muito agudo, quer acordar Luiz Gonzaga com essa Sanfona, então diminui o som”- não lhe davam ouvidos.

A madeira ensandecida cedia à madeira incandescente, os estalos da superfície estarrecida atiçavam os pirralhos com chumaço de Bombril chamuscado por meio de pessoas na praça. “Eita” A quadrilha formada pelo professores das escolas púbicas de três municípios do Goiás estava animada, vestidos com jalecos remedados com retalhos. “Aumenta o som da caixa “ - ordenou um dos diretores de uma das escolas. Aos poucos todos prestavam atenção aos professores, coisa pouco comum.

Uma espécie de som ecoado começou a repuxar o calor da fogueira, as vozes das pessoas eram engolidas pela chama e cuspida de volta em forma esbranquiçada, os gritos, que saiam esganados, alimentavam mais o grande vácuo que se formou ao redor da fogueira, os troncos mais leves começaram a rolar para a mata seca ao redor da praça, produzindo mais fogo. Na bagunça do fogaréu, saiu um grupo de homens armados até os dentes perguntando sobre Getúlio Vargas.