Já escrevi várias vezes sobre Vladimir Carvalho aqui no blog, e me vejo agora na iminência de
repetir os episódios já contados, as comparações, os gracejos, as palavras de
ordem, a gratidão pelo que me ficou de tudo aquilo.
Para o registro factual, nosso último papo foi em
27 de agosto, aqui no Rio de Janeiro, quando um grupo de cineclubistas da
“velha guarda da moviola” se reuniu no Estação Net, em Botafogo, para celebrar
os 50 anos da “Carta de Curitiba”, um histórico documento dos cineclubes
brasileiros no “quente” da ditadura.
Após o conciliábulo, partimos para o bar mais próximo e
ali nos instalamos; estavam Vladimir, Walter Carvalho, Marco Aurélio Marcondes,
José Umbelino Brasil e Marise Berta. Com exceção de Marise, que é um broto,
todos nós estávamos, 50 anos atrás, mergulhados até os gorgomilhos no sonho
cineclubista, do qual nunca me afastei, e nunca me arrependi.
Houve uma época em que fui cineclubista em Belo
Horizonte, e dizíamos então que o sonho cineclubista é pular de filme em filme
como uma trapezista pula de trapézio em trapézio. Em ambos os casos, não
importa o filme que está sendo visto ou o trapézio que está sendo agarrado: o
importante é não cair no chão.
O chão era a vida real, eram muitas coisas. Não posso
falar por outras pessoas, mas eu vivi dos quinze aos quarenta anos com dois
medos principais: ser preso e torturado pela ditadura, ou ser vítima de um
apocalipse nuclear. As duas coisas eram reais. Talvez venha daí uma certa
estrangeiridade, uma “sensação de não estar de todo”, uma resignação
bem-humorada, e a nonchalance de quem
acha que o mundo vai se acabar mesmo, mas é melhor fazer de conta que não. Vai que...
Vai que o mundo continua, e que escapamos? Melhor ter
feito alguma coisa, não é mesmo? Escrever, discutir filmes, dar aulas, projetar
filmes, fazer músicas, fazer filmes, ler, agitar. Na verdade nós, que somos
artistas, criamos muito pouco. O nosso poder maior é o de manter o mundo em
movimento. A criação pessoal é um fenômeno colateral. Somos
circuladores-de-idéias, assim como há circuladores-de-ar.
Curiosamente, minha memória de Vladimir está sempre
associada visualmente àqueles prediozinhos baixos de tijolo aparente do campus
da Universidade de Brasília, onde o conheci em 1970, durante um Festival de
Brasília que abrigou na capital o I Encontro Nacional de Cursos de Cinema.
Cheguei lá depois de uma noite de viagem, no meio de uma horda que desceu do
ônibus amarfanhada e insone; Vladimir e seus alunos nos receberam como se
fôssemos os Retirantes de Dunquerque.
Num dos meus textos aqui no blog, quando Vladimir
completou 70 anos, referi a minha admiração em encontrá-lo na Rua do Catete,
passo lépido, olhar erguido, sorriso pronto. Minha admiração era maior porque
lembro bem como eram os adultos no tempo do meu pai, trancafiados em seus
ternos brancos, contraídos naquela pose de defensores do inexplicável, imersos
na tensão que os agrupava.
Vladimir nunca envelheceu, nunca aceitou o peso da
gravidade. Ele parece ter passado a vida como uma bicicleta veloz varando a
paisagem, sabendo ralentar quando preciso, mas sempre em movimento, naquele
misto de leveza e de atenção constante ao entorno.
(os irmãos Vladimir e Walter Carvalho)
Seus documentários cresciam num ritmo de jardinagem,
sendo agüados, podados, tesourados, recebendo enxertos e estacas de apoio,
ganhando forma ao longo dos anos. Diz-se que depois da Revolução Cubana,
grandes cineastas soviéticos vieram a Cuba para ajudar a implantar uma
indústria de cinema no país. Os cubanos lhes perguntavam: “O que devemos
filmar?”. Devem ter perguntado a Dziga Vertov, porque a resposta foi: “Filmem
tudo”.
Filmem tudo. Tudo é importante. Ou melhor: cada época
escolherá o que acha importante. Isto fez com que Vladimir saísse de casa em
muitas noites do Planalto, sem gostar de rock, para filmar shows da rapaziada
brasiliense em bares, faculdades, quadras de tênis. Com isto, acumulou um
material preciosíssimo sobre o surgimento de bandas como Legião Urbana, Plebe
Rude, Capital Inicial... E surgiu Rock
Brasília (2011).
Filmem tudo. Os recortes virão depois, as colagens, as
interpretações, as justaposições de depoimentos e de imagens. “Filmar tudo” já
é um recorte mínimo numa realidade não só inesgotável, mas inconcebível. Filmar
tudo é tirar uma gota do oceano, e nessa gota tem tudo que o oceano oferta, e
tudo que a gente precisa.
Um dos projetos mais queridos de Vladimir era a Fundação
Cinememória, para abrigar os milhares de itens que ele acumulou ao longo dos
anos. “É um acervo doido,” dizia, ele, feliz. “Tem livro, filme, documento, tem
cartaz, projetor, moviola... Mas é coisa demais, não tem espaço que chegue, não
posso ficar eu sozinho administrando, tem que ter uma entidade, uma equipe.”
O projeto estava sendo bem encaminhado, segundo noticia a
imprensa:
https://www.correiobraziliense.com.br/diversao-e-arte/2024/10/6972378-cinememoria-o-legado-da-vida-de-vladimir-carvalho.html
“Guardem tudo”, teriam dito talvez os cineastas soviéticos,
menos por serem soviéticos do que por serem cineastas. Guardar é próprio do
cinema, e lembro aqui os versos de outro sonhador, o poeta Antonio Cícero que
se foi nesta mesma semana:
GUARDAR
Guardar uma coisa não é escondê-la ou
trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la,
mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer
vigília por ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é,
estar por ela ou ser por ela.
Por isso, melhor se guarda o vôo de um
pássaro
do que de um pássaro sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por
isso se publica, por isso se declara e declama um poema:
para guardá-lo:
para que ele, por sua vez, guarde o que
guarda:
guarde o que quer que guarda um poema:
por isso o lance do poema:
por guardar-se o que se quer guardar.
Guardar imagens em movimento é uma prestidigitação
delicada: guardar águas de um rio que não seca, guardar as luzes de um céu
sempre em rotação. Se não somos capazes de guardar a vida, como guardar então
seus reflexos, tão transparentes, tão inflamáveis?
Ser documentarista é passar a vida guardando o alheio,
guardando retalhos da vida dos outros, criando fios invisíveis onde enfiar fotogramas.
No dizer de João Cabral de Melo Neto, “Fazer
o que seja é inútil. / Não fazer nada é inútil. / Mas entre fazer
e não fazer / mais vale o inútil do fazer.”