quarta-feira, 30 de outubro de 2024

5117) "O Expresso do Horror" (30.10.2024)




O cinema tem seus clássicos da série A e seus clássicos da série B. Perdão pela terminologia futebolística, mas invoco em minha defesa o fato indiscutível de que a expressão “filme B” precede em muito a divisão do Campeonato Brasileiro de Futebol em séries. 
 
O filme B é, na origem, “the B-movie”; é jargão cinemeiro norte-americano, que traduzimos de olhos fechados. O que é o filme B?  Vou me socorrer de Charles Flynn e Todd McCarthy, autores do utilíssimo Kings of the Bs – Working Within the Hollywood System (E. P. Dutton, 1975). 


 
O filme B não é necessariamente um filme barato (baixo orçamento), um filme mal feito, um filme meramente comercial, um filme que obedece cegamente a uma fórmula eficaz, etc. Ele decorre (dizem CF e TMC) do fato de que o mercado exibidor dos EUA, na década de 1930 descobriu uma pequena mina de ouro – a programação dupla (“double bill”), com dois filmes pelo preço de um. 
 
Segundo eles, no final de 1935 cerca de 85% dos cinemas usavam este expediente. Um filme A, com elenco mais famoso, produção mais cara, ambições mais fortes, e um filme B, que servia de contrapeso. 
 
Mais ou menos como no mercado fonográfico – onde os discos saíam (primeiro os 78 rotações, e depois os “compactos”) com duas canções: a música-de-trabalho era o lado A, e no lado B vinha um contrapeso. Que muitas vezes surpreendia e virava o grande sucesso. Aconteceu muito. 



No cinema, a programação dupla deu origem a uma faixa de produção/comercialização peculiar. Dizem os autores: 
 
Em contraste com o filme A da programação, que trabalhava com percentagens, o filme secundário recebia um preço fixo pelo aluguel. Como esse preço não era baseado nem em bilheteria nem em popularidade, o produtor podia saber com razoável precisão quanto iria arrecadar com cada filme B que produzisse. Não tinha perspectiva de ganhos espetaculares, nem de um sucesso inesperado, e esta é a razão dos grandes estúdios não terem interesse em agir nesta faixa. Por outro lado, o risco de prejuízo era mínimo. Um estúdio menor podia produzir um filme B por, digamos 75 ou 80.000 dólares e embolsar um lucro de 10 ou 15.000. (pág. 17, trad. BT) 
 
O filme B tornou-se o território de diretores capazes de fazer algo bom dentro dos limites de um pequeno orçamento, e sem a obrigação de fazer sucesso, pois era um filme que pegava carona na popularidade ou no marketing do “filme A” a que estava acoplado. Bastava ter esperteza e jogo rápido. 
 
Nessa “raia”, meus diretores preferidos são Roger Corman e William Castle. 
 
O peso da obrigação-de-fazer-sucesso ficava todo em cima do filme A. (A obrigação de fazer sucesso é um drama. Agora mesmo estamos vendo um filme caríssimo, Coringa: Delírio a Dois, correr o risco de um triste naufrágio, porque gastou 200 milhões e parece que não vai arrecadar nem perto disto.) 
 
Em todo caso, o sentido de “filme B” acabou se ampliando em relação a essa definição original, e absorvendo filmes feitos sem grandes ambições além de recuperar os custos, faturar um lucro que não-seja-de-se-jogar-fora e alavancar o próximo projeto. 
 
Há um aspecto que às vezes fica em segundo plano, no filme B típico, e que eu chamo de “cine gambiarra”. É o reaproveitamento, em todos os sentidos possíveis, de material alheio ou próprio, para agilizar e baratear o filme que está sendo feito. 
 
O YouTube tem versão (com legendas em português) de um clássico-B do filme de horror, um filme muito citado por quem é do ramo e que por motivos variados só vim a assistir agora. E é um “Cine Gambiarra” para ninguém botar defeito. 


 
Horror Express (1972) é uma co-produção Inglaterra/Itália, dirigida por Eugenio Martin, com um elenco onde figuram dois “monstros sagrados” (termo mais do que apropriado) do filme de terror – Christopher Lee e Peter Cushing.
 
É o que a gente chamava antigamente “filme de trem” – aquele que acontece por inteiro (ou quase) no interior de um trem em movimento, como Assassinato no Expresso do Oriente (1974) de Sidney Lumet, O Trem (1964) de John Frankenheimer, O Expresso de Chicago (1976) de Arthur Hiller, A Dama Oculta (1938) de Alfred Hitchcock e por aí vai. 




É uma trama de horror cuja tática de gambiarra já começa pelo roteiro. A ficha técnica não dá a menor pista disso, mas a idéia central é a mesma do conto de John W. Campbell Jr., “Who Goes There?” (1938): um alienígena estava vivo e congelado há milênios numa geleira até ser descoberto por cientista; ele volta à vida e passa a invadir os corpos de pessoas (ou a modificar o próprio corpo para se assemelhar a elas), tentando descobrir uma maneira de voltar ao seu mundo de origem. Vai matando pessoas, de uma em uma, até ser destruído. 


 
O conto tinha sido filmado por Chris Nyby como The Thing From Outer Space (1961) e depois voltaria através de John Carpenter com The Thing (1982). 
 
No filme de Eugenio Martin, Christopher Lee é um antropólogo inglês que tenta levar um espécimen congelado para Londres (sem saber que nele se oculta o alienígena), e Peter Cushing um cientista rival que viaja no mesmo trem e fica xeretando o colega. 
 
Como surgiu o filme? O produtor Bernard Gordon conseguiu acesso a um trem que havia sido usado no filme Nicholas e Alexandra (1971) de Franklin Schaffner, e esse trem foi usado tanto em Horror Express quanto no outro filme que ele produziu para Eugenio Martin, Pancho Villa (1972). 
 
O produtor tinha sob contrato o ator Telly Savallas e conseguiu encaixá-lo num papel qualquer, onde ele improvisou a maioria de suas falas, por um salário muito menor do que o que recebia na época. 




O grande trunfo do filme, contudo, é conseguir reunir numa produção precária os dois grandes atores do terror cinematográfico. Que eram amigos, e se divertiam trabalhando juntos. Inclusive quando o roteiro lhes dá falas como na cena em que um inspetor vê os dois juntos e diz: “ – Um de vocês pode ser o monstro!”, ao que Peter Cushing, ofendido retruca: “ – Monstro?!  Nós somos ingleses!”. 
 
O filme tem uma narrativa bastante compacta e vibrante, aproveitando bem o espaço apertado e ameaçador do trem. As trucagens são precárias mas suportáveis. De maior interesse é quando o cientista examina os olhos das vítimas do monstro e extrai dali as últimas imagens que a pessoa guardava em seu “fluido ocular” – porque “a memória visual da criatura não está no cérebro, mas no próprio olho”. 
 
A cena inclui a imagem, em plano de detalhe, de uma agulha de injeção perfurando o globo ocular de um cadáver. Imagem tão inquietante quanto a do olho cortado por navalha em “Um Cão Andaluz” (1928) de Luís Buñuel, ou das garras metálicas arreganhando os olhos de Alex em Laranja Mecânica (1971) de Stanley Kubrick. 
 
E ao examinarem o fluido ocular do primeiro fóssil (encontrado na geleira), eles encontram “gravadas” imagens de um brontossauro, de um pterodáctilo... E logo depois uma imagem da Terra, vista do espaço.



Uma das vantagens desses filmes de baixo orçamento é a baixa expectativa. Eugenio Martin não é um roteirista/diretor dos mais talentosos, mas sente-se que ele está fazendo o filme do jeito que lhe apraz. Num filme com orçamento dez vezes maior, haveria dez fiscais-de-roteiro examinando cenas assim e questionando se é científicamente possível, se “a narrativa pede”, se avança a ação, se aprofunda o personagem... 
 
Filmes de grande orçamento têm sempre uma certa quantidade de pessoas pagas pelo estúdio porque são primas ou cunhadas ou marido de alguém. Essas pessoas em geral são inofensivas, embolsam seu contracheque e deixam os outros trabalharem em paz, mas alguns querem mostrar serviço, ou acreditam que sabem da missa melhor do que o padre. 
 
Escrevi aqui anos atrás sobre “o filme B de intelectual”.
 
https://mundofantasmo.blogspot.com/2010/07/2255-filme-b-de-intelectual-3052010.html
 
É o filme de baixo orçamento mas de altas ambições artísticas ou ideológicas. Muitos diretores se fizeram atuando nessa faixa: Luís Buñuel e Jean-Luc Godard são dois exemplos que acompanhei a vida inteira. Mas não são somente os filmes B intelectualizados que têm virtudes. O filme-entretenimento, com pouco dinheiro, pode ter um rendimento muito bom quando quem o faz é uma equipe que se entende, se respeita e tenta fazer o melhor filme possível dentro das suas limitações – sem se preocupar com os críticos. 




 
 
 



domingo, 27 de outubro de 2024

5116) Vladimir Carvalho, 1935-2024 (27.10.2024)




Já escrevi várias vezes sobre Vladimir Carvalho aqui  no blog, e me vejo agora na iminência de repetir os episódios já contados, as comparações, os gracejos, as palavras de ordem, a gratidão pelo que me ficou de tudo aquilo. 

 

Para o registro factual, nosso último papo foi em 27 de agosto, aqui no Rio de Janeiro, quando um grupo de cineclubistas da “velha guarda da moviola” se reuniu no Estação Net, em Botafogo, para celebrar os 50 anos da “Carta de Curitiba”, um histórico documento dos cineclubes brasileiros no “quente” da ditadura. 

 

Após o conciliábulo, partimos para o bar mais próximo e ali nos instalamos; estavam Vladimir, Walter Carvalho, Marco Aurélio Marcondes, José Umbelino Brasil e Marise Berta. Com exceção de Marise, que é um broto, todos nós estávamos, 50 anos atrás, mergulhados até os gorgomilhos no sonho cineclubista, do qual nunca me afastei, e nunca me arrependi. 

 

Houve uma época em que fui cineclubista em Belo Horizonte, e dizíamos então que o sonho cineclubista é pular de filme em filme como uma trapezista pula de trapézio em trapézio. Em ambos os casos, não importa o filme que está sendo visto ou o trapézio que está sendo agarrado: o importante é não cair no chão.

 

O chão era a vida real, eram muitas coisas. Não posso falar por outras pessoas, mas eu vivi dos quinze aos quarenta anos com dois medos principais: ser preso e torturado pela ditadura, ou ser vítima de um apocalipse nuclear. As duas coisas eram reais. Talvez venha daí uma certa estrangeiridade, uma “sensação de não estar de todo”, uma resignação bem-humorada, e a nonchalance de quem acha que o mundo vai se acabar mesmo, mas é melhor fazer de conta que não.  Vai que...

 

Vai que o mundo continua, e que escapamos? Melhor ter feito alguma coisa, não é mesmo? Escrever, discutir filmes, dar aulas, projetar filmes, fazer músicas, fazer filmes, ler, agitar. Na verdade nós, que somos artistas, criamos muito pouco. O nosso poder maior é o de manter o mundo em movimento. A criação pessoal é um fenômeno colateral. Somos circuladores-de-idéias, assim como há circuladores-de-ar.




Curiosamente, minha memória de Vladimir está sempre associada visualmente àqueles prediozinhos baixos de tijolo aparente do campus da Universidade de Brasília, onde o conheci em 1970, durante um Festival de Brasília que abrigou na capital o I Encontro Nacional de Cursos de Cinema. Cheguei lá depois de uma noite de viagem, no meio de uma horda que desceu do ônibus amarfanhada e insone; Vladimir e seus alunos nos receberam como se fôssemos os Retirantes de Dunquerque.

Num dos meus textos aqui no blog, quando Vladimir completou 70 anos, referi a minha admiração em encontrá-lo na Rua do Catete, passo lépido, olhar erguido, sorriso pronto. Minha admiração era maior porque lembro bem como eram os adultos no tempo do meu pai, trancafiados em seus ternos brancos, contraídos naquela pose de defensores do inexplicável, imersos na tensão que os agrupava.

 

Vladimir nunca envelheceu, nunca aceitou o peso da gravidade. Ele parece ter passado a vida como uma bicicleta veloz varando a paisagem, sabendo ralentar quando preciso, mas sempre em movimento, naquele misto de leveza e de atenção constante ao entorno.

 



(os irmãos Vladimir e Walter Carvalho) 

 

Seus documentários cresciam num ritmo de jardinagem, sendo agüados, podados, tesourados, recebendo enxertos e estacas de apoio, ganhando forma ao longo dos anos. Diz-se que depois da Revolução Cubana, grandes cineastas soviéticos vieram a Cuba para ajudar a implantar uma indústria de cinema no país. Os cubanos lhes perguntavam: “O que devemos filmar?”. Devem ter perguntado a Dziga Vertov, porque a resposta foi: “Filmem tudo”.

 

Filmem tudo. Tudo é importante. Ou melhor: cada época escolherá o que acha importante. Isto fez com que Vladimir saísse de casa em muitas noites do Planalto, sem gostar de rock, para filmar shows da rapaziada brasiliense em bares, faculdades, quadras de tênis. Com isto, acumulou um material preciosíssimo sobre o surgimento de bandas como Legião Urbana, Plebe Rude, Capital Inicial... E surgiu Rock Brasília (2011).




Filmem tudo. Os recortes virão depois, as colagens, as interpretações, as justaposições de depoimentos e de imagens. “Filmar tudo” já é um recorte mínimo numa realidade não só inesgotável, mas inconcebível. Filmar tudo é tirar uma gota do oceano, e nessa gota tem tudo que o oceano oferta, e tudo que a gente precisa.

 

Um dos projetos mais queridos de Vladimir era a Fundação Cinememória, para abrigar os milhares de itens que ele acumulou ao longo dos anos. “É um acervo doido,” dizia, ele, feliz. “Tem livro, filme, documento, tem cartaz, projetor, moviola... Mas é coisa demais, não tem espaço que chegue, não posso ficar eu sozinho administrando, tem que ter uma entidade, uma equipe.”

 

O projeto estava sendo bem encaminhado, segundo noticia a imprensa:

https://www.correiobraziliense.com.br/diversao-e-arte/2024/10/6972378-cinememoria-o-legado-da-vida-de-vladimir-carvalho.html

 

“Guardem tudo”, teriam dito talvez os cineastas soviéticos, menos por serem soviéticos do que por serem cineastas. Guardar é próprio do cinema, e lembro aqui os versos de outro sonhador, o poeta Antonio Cícero que se foi nesta mesma semana:

 

GUARDAR

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.

Em cofre não se guarda coisa alguma.

Em cofre perde-se a coisa à vista.

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela ou ser por ela.

Por isso, melhor se guarda o vôo de um pássaro

do que de um pássaro sem vôos.

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, por isso se declara e declama um poema:

para guardá-lo:

para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:

guarde o que quer que guarda um poema:

por isso o lance do poema:

por guardar-se o que se quer guardar.

 

Guardar imagens em movimento é uma prestidigitação delicada: guardar águas de um rio que não seca, guardar as luzes de um céu sempre em rotação. Se não somos capazes de guardar a vida, como guardar então seus reflexos, tão transparentes, tão inflamáveis?

 

Ser documentarista é passar a vida guardando o alheio, guardando retalhos da vida dos outros, criando fios invisíveis onde enfiar fotogramas. No dizer de João Cabral de Melo Neto, “Fazer o que seja é inútil. / Não fazer nada é inútil. / Mas entre fazer e não fazer / mais vale o inútil do fazer.”



 









sexta-feira, 25 de outubro de 2024

5115) Leonora Carrington, a Mulher Surrealista (24.10.2024)




O México me parece o “Brasil” da América do Norte, o seu espaço mais selvagem, mais heterogêneo, mais colagem-de-narrativas. (Pela mesma ótica, os EUA são a Argentina de lá, e o Canadá é o seu Uruguai.) 
 
O México tem sido ao longo da história um atrator para mentalidades inquietas dos EUA e da Europa – mentes em busca do mistério e do risco, em busca da transcendência e da violência.  Mentes inquietas, místicas, vanguardistas, não-cartesianas, não-aristotélicas. 
 
Talvez seja a atração primal dos deuses astecas, das serpentes emplumadas sedentas de sangue; das pirâmides em degraus, das caveiras do Dia dos Mortos, das insurreições épicas de Pancho Villa e Zapata. O México era um atrator de aventura  e tragédia para tantos europeus dessorados, cultos, cheios de bons modos à mesa.  



Para o México rumou o surrealista Luís Buñuel, não em busca do mistério (que ele já trazia dentro de si – Don Luís tornou-se na juventude um hierofante do olho retangular do cinema), mas em busca de um país brutalidade-jardim, parecido com ele próprio. 


 
Para o México rumou um dia o surrealista Antonin Artaud: 
 
Não há escassez de lugares da Terra onde a Natureza, impelida por uma espécie de capricho da inteligência, tenha esculpido formas humanas. Mas aqui trata-se de algo muito diferente: porque aqui é em toda a área geográfica de uma raça que a Natureza se exprimiu de forma intencional. 
(“A Respeito de uma Jornada à Terra dos Tarahumaras”, trad. BT) 
 

Para o México rumou o jovem surrealista chileno Alejandro Jodorowsky, meio desanimado com os surrealistas franceses, e desejoso de encontrar um caminho geográfico para o Inconsciente. 


 
Para o México rumou o jovem quase-surrealista William Burroughs, em seu mergulho suicida nos estados alterados de consciência através de quaisquer drogas naturais ou artificiais. 



Para o México rumou o surrealista Benjamin Péret, poeta, editor, prosador, agitador de esquerda, interessado na mitologia pré-colombiana. 



Para o México rumou a surrealista espanhola Remédios Varo, que havia se refugiado da Guerra Civil espanhola indo para Paris. 
 
E para o México rumou também a misteriosa surrealista Leonora Carrington, pintora e escritora de uma obra única, fora-de-esquadro, uma obra que bebe diretamente nas fontes do sonho, do trauma infantil, da sexualidade, dos contos de fadas, do terror gótico, do visionarismo lisérgico, da simbologia mística. 



(Leonora Carrington, "Bird Bath", 1947)

 
As peregrinações listadas acima não foram simultâneas; cada artista teve sua época e seu momento de tentar viver “sob o vulcão”. Algumas, contudo, foram convergentes. Benjamin Péret e Remedios Varo estavam casados e chegaram ao México juntos, de navio, fugindo ao nazismo. Chegando lá, Péret reencontrou Buñuel, seu amigo dos tempos surrealistas parisienses; e Remedios Varo reencontrou Leonora Carrington, que já conhecia desde a mesma época. 
 
Estas duas pintoras são figuras fascinantes dentro do surrealismo europeu, que por variadas razões foi um movimento muito masculino: muito machista em alguns aspectos, e muito derrubador de preconceitos em outros. 
 
Leonora Carrington, nascida em 1917 na Inglaterra, chegou ao México aos 26 anos, em condições parecidas com as de Remedios Varo. Depois de romper com sua família inglesa e tradicionalista, ela aos 19 anos conheceu o artista Max Ernst e fugiu com ele para Paris, onde se juntou ao grupo surrealista.



(Leonora Carrington, "Portrait of Max Ernst". 1973)

 
Com a Guerra, Ernst foi preso primeiro pelas autoridades francesas, por ser alemão, e depois pelos invasores nazistas, por fazer “arte degenerada”; acabou dando um jeito de fugir para os EUA. Quanto a Leonora, teve uma crise após a prisão dele e foi internada num sanatório. Ao sair, foi apresentada por Picasso ao diplomata Renato Leduc, que fez com ela um casamento de conveniência para poder tirá-la da França nazista (sob imunidade diplomática), e de lá ela acabou no México, onde viveu o resto de sua vida. 



(Leonora Carrington, "Um conto de fadas mexicano")

 
Pintora, escultora e escritora, Leonora Carrington teve um livro publicado há pouco no Brasil: Um Conto de Fadas Mexicano e Outras Histórias (Iluminuras, 2011, trad. Dirce Waltrick do Amarante, org. DWA e Bira M. Basurto Santos. 
 
O título é adequado, porque os contos da autora recorrem constantemente ao imaginário dos contos populares: animais que falam, objetos mágicos, personagens infantis ou adolescentes confrontando adultos... 
 
Sua ligação com o grupo surrealista parisiense se deu de início através do seu amante Max Ernst, mas ela se envolveu com muitas atividades do grupo, cujo machismo nunca deixou de criticar: “Os surrealistas só veem as mulheres como musas, não como iguais”. 



(Leonora Carrington, "The Lovers", 1987)


De fato havia nas idéias e no comportamento dos surrealistas uma caatinga entrelaçada de contradições espinhosas. Revolucionários, profetas de uma nova maneira de encarar a realidade, inimigos ferozes do clero e da burguesia, propagadores do “amour fou”, o amor louco, a paixão que não conhece limites – eles eram ao mesmo tempo o que hoje (um século depois) seria classificado como um grupo de machistas brancos de classe média, homofóbicos e preconceituosos. 



Sob este aspecto, vale a pena ler e consultar o precioso volume Investigating Sex – Surrealist Discussions 1928-1932 (New York/London: Verso, 1994, org. José Pierre). Por iniciativa de André Breton, os surrealistas tinham uma prática do tipo “jogo da verdade”, uma reunião do grupo em que todos faziam perguntas indiscretas sobre a vida sexual, e tinham a obrigação moral de responder a verdade. 
 
O livro reproduz os diálogos de doze destas sessões (sempre havia alguém anotando tudo – Max Morise, Péret, Paul Éluard, etc.). A primeira delas chegou a ser publicada na revista La Révolution Surréaliste (# 11, 15 de março de 1928, pág. 32 e seguintes). 
 
Aqui, uma reprodução online:
https://fr.wikisource.org/w/index.php?title=Page:La_R%C3%A9volution_surr%C3%A9aliste,_n11,_1928.djvu/36&action=edit&redlink=1



Quarenta pessoas, ao todo, tomaram parte nestas sessões, sendo apenas sete mulheres: Nusch (que casaria com Paul Éluard em 1934, Jeannette Tanguy, Mme. Unik, Simone Vion, Mme. Lena, Katia Thirion e uma misteriosa “Y”. 
 
Leonora nunca participou, mas sua obra de pintura e de ficção está carregada de uma sexualidade indireta, simbólica ou explícita. 
 

(Leonora Carrington, "Down Below", 1940)




(Leonora Carrington, "Inn of the Dawn Horse")



(Leonora Carrington, "Green Tea", 1942)

 
Pouco chegada à auto-promoção, Carrington tinha um temperamento caloroso, mas impaciente com badalações sociais. Dava poucas entrevistas, mas acabou acedendo a uma biografia escrita por uma distante prima inglesa: The Surreal Life of Leonora Carrington (2017) de Joanne Moorhead. 
 
No YouTube há um documentário (legendas automáticas em espanhol) mostrando a artista, já com mais de 80 anos: Leonora Carrington, Invocación Surrealista (de Sandra Luz Aguilar): 
 
https://www.youtube.com/watch?v=zuchqAqkY_E
 
O filme traz entre outras coisas uma dramatização, com atores, de um dos seus contos mais cruéis, “A Debutante”, em que a família de uma adolescente promove um baile em sua homenagem. A garota, que detesta essas coisas, manda em seu lugar uma hiena disfarçada com roupas suas e com o rosto arrancado de sua criada. A hiena explica: 
 
-- Você chamará com um sino a criada e quando ela entrar a gente se joga em cima dela e lhe tira o rosto.; usarei o rosto dela em vez do meu esta noite.
-- Não é prático – eu disse. – Ela provavelmete morrerá quando não tiver mais rosto; alguém encontrará com certeza o cadáver e iremos as duas para a prisão.
-- Com a fome que estou, vou comê-la – replicou a hiena.
-- E os ossos?
-- Isso também – ela disse. (...)
Quando Marta entrou, eu me virei para a parede a fim de não ver. Admito que tudo foi rápido. Enquanto a hiena comia, eu olhava pela janela. Alguns minutos depois ela disse:
--Não consigo mais comer, ainda faltam os pés, mas se você tiver uma bolsinha eu os como mais tarde, ao longo do dia. 
(pág. 39-40, trad. Dirce Waltrick do Amarante) 
 
Outro documentário, Leonora Carrington, el Juego Surrealista, dirigido por Javier Martín-Domínguez, pode ser encontrado por aí pelos streamings, e traz também imagens da artista já idosa, em sua casa e em seu ateliê, e depoimentos de seus contemporâneos, além de um dos filhos seus do longo casamento com Csizi Weisz, fotógrafo húngaro também radicado no México. 




(Leonora Carrington)


 
 






segunda-feira, 21 de outubro de 2024

5114) A Tradução e a arte do arranjo (21.10.2024)

 


A música pode nos servir como termo de comparação para certas abordagens na tradução de poesia. Sem que haja critério de qualidade entre esses tipos; um não é superior ao outro, tudo depende do resultado.
 
Dois modelos possíveis são: o cover e o novo arranjo.
 
Fazer cover de uma canção é repeti-la, gravá-la de novo, aproveitar o fato de que é uma obra conhecida, apreciada, e levá-la para o julgamento de um público que muitas vezes conhece o original. Um público que sabe que a canção mais recente é uma mera reprodução de uma canção antiga; mais ou menos como ocorre na tradução de um poema.
 
Acontece que o cover exageradamente fiel ao original é zoado às vezes pelos ouvintes. Chamam de ”gravação karaokê”. “Fulano fez um cover karaokê da música da Banda Tal, é exatamente a mesma instrumentação, com os mesmos timbres, mesmo tom, mesmo andamento, mesmos solos, e somente a voz dele por cima.”
 
Isso é bom? É ruim? Tem gosto pra tudo. Alguém se lembra da banda Os Carbonos, que reproduzia tintim por tintim os arranjos de canções famosas?  É o que muitos “conjuntos de baile” tentam fazer.
 
Isto é excesso de fidelidade, ou é pegar carona no talento criativo alheio e simplesmente copiar seus resultados?
 
Isto pode ser considerado parecido com o que um tradutor faz? Afinal de contas, um tradutor se propõe a criar o menos possível, e tentar de todas as maneiras reproduzir os achados e as invenções do original. O principal álibi do tradutor é o fato de estar trazendo para o público um poema a que o público jamais teria acesso, porque o poema original (por exemplo) é em japonês ou árabe.
 
E nem vou entrar na selva espinhosa das “versões (letras) de músicas estrangeiras”. Estou pensando no lado musical, simplesmente. Se alguém regrava uma música já existente, o que deve predominar na sonoridade resultante? A semelhança com o original? A novidade na interpretação?
 
E é aqui que entramos na segunda atitude: a de criar um “novo arranjo”.




Fazer um novo arranjo de uma canção é algo que está de certo modo implícito no trabalho de fazer um cover, mas vai um pouquinho mais adiante. Não pretende ser uma mera cópia. Tenta fazer (como se diz tanto no meio musical) uma “releitura” da música de Fulano. Uma interpretação nova. Colocar nela uma informação nova que antes não existia ali.
 
Daí uma distinção tão usada no jargão musical – a distinção entre cantor e intérprete. “Fulana de Tal é uma grande cantora, mas não é somente isso – ela é uma intérprete, ela nos faz ver a canção de outra maneira, com outros olhos, outra sensibilidade.”  Veja-se como a palavra “intérprete” tem esas duas conotações: alguém que canta músicas de uma maneira muito pessoal, e alguém que traduz falas de uma língua para outra.
 
Cada uma destas atitudes pode ir até limites extremos, e tender até para a caricatura.
 
Quem faz um novo arranjo para uma canção alheia está buscando espaço para criar dentro de algo que foi criado por outra pessoa. (O tradutor literário tem esse direito?  Essa liberdade?  Esse dever?)




Em casos assim, o arranjador musical não pode, ou não quer, repetir o que foi feito na música que está regravando. Ele quer escolher algum elemento presente dela e realçá-lo, expandi-lo... e descartar outros elementos que não lhe interessam.
 
Um tradutor de poesia tem liberdade para agir assim?
 
Na acomodação ao leito-de-Procusto da métrica e da rima, um tradutor tem que descartar muita coisa do original ao longo do caminho.  Ninguém se queixa. Métrica e rima constituem um dogma intocável em certas escolas poéticas. Têm que ser obedecidas a qualquer custo.
 
Ou talvez nem tanto: podemos ver métrica e rima como um desafio a mais, um problema excitante (e divertido) a mais. Um sarrafo colocado mais alto – e muitas vezes vale a pena dispensar algo para ter o prazer dessa tentativa.
 
Este critério, porém, tem que valer também para outros tipos de sarrafo. Se o que me interessa mais, ao conceber este novo arranjo (=tradução) é o jogo de idéias do original, posso fazer esta experiência, como um maestro-arranjador que diz: “Vou pegar esta canção, dispensar a letra, os versos, e fazer um arranjo puramente orquestral, intrumental.”
 
Músicos fazem isso o tempo todo, e ninguém chama de “mutilação do original”. É uma leitura – e uma leitura tão pessoal e única que deixa imediatamente clara a possibilidade, e a necessidade, de muitas outras leituras diferentes, tão pessoais e únicas quanto aquela.
 
Esta receita, esta fórmula do “arranjo novo” será então uma regra impositiva para todas as traduções? De maneira alguma. É um modelo que pode ser tentado em alguns casos, sempre de acordo com os recursos do tradutor, e temperado pelo seu bom senso.




Veja-se como exemplo, até banal, as numerosas traduções em prosa da Ilíada, da Odisséia, de outros clássicos. Esses tradutores estão privilegiando a narrativa, e abrindo mão do aspecto formal mais característico dessa poética: o verso, o hexâmetro.
 
Para manter o verso, a maioria dos tradutores corta e recorta a narrativa a cada passo. Outro tradutor pode se sentir no direito de desconstruir o verso e dar relevo à narrativa.
 
Um caso semelhante é o de muitas traduções do poema The Raven de Edgar Allan Poe. Um dos elementos essenciais do “DNA” deste poema é a disposição de suas estrofes, e a posição das rimas, inclusive de rimas internas. É um artesanato cuja originalidade e efeito são orgulhosamente reivindicados por Poe em seu famoso ensaio “A Psicologia da Composição”.
 
Ora, muitos tradutores abrem mãos disto e traduzem “O Corvo" com concepções estróficas e métricas completamente distintas. Emílio de Menezes e Benedicto Lopes optam por traduzi-lo em uma sequência de sonetos em decassílabos. Poe, que tinha pavor de ser enterrado vivo, terá se revirado no túmulo?




Um levantamento cuidadoso dessas versões foi feito por Cláudio Weber Abramo no livro O Corvo – gênese, referências e traduções do poema de Edgar Allan Poe (São Paulo: Ed. Hedra, 2011), onde ele dá numerosos exemplos de como os tradutores não hesitam em recorrer a infidelidades semânticas para poderem manter a fidelidade da métrica, da melopéia.
 
É uma encruzilhada tradutória onde, como os cantores de blues, o tradutor acaba vendendo a alma ao diabo para poder mostrar seu poema em paz. São dois diabos, na verdade, cada um chamando-o, com promessas tentadoras, para um eixo verbal diferente.
 
Abramo  faz muitos reparos às traduções de “O Corvo” por Machado de Assis  e por Fernando Pessoa, dois figurões merecidamente ilustres, e eu concordo com os seus reparos. Ele observa (no capítulo “Uma infelicidade machadiana”) que Machado não traduziu o original inglês, e sim a versão francesa de Baudelaire, o que se depreende “... da ocorrência dos mesmos erros, das mesmas adições, das mesmas omissões e das mesmas palavras nos mesmíssimos lugares das traduções de um e de outro”. Ele acrescenta que Machado “altera o desenho rítmico e melódico do poema original, quebrando os versos em dois, reduzindo em uma unidade os blocos rítmicos principais de cada estrofe (são onze em Poe, dez nele).”




A tradução de Fernando Pessoa (diz Abramo) tentou replicar a musicalidade do original, mas baseando-se numa contradição (pág. 106): “o emprego  de palavras curtas e idéias sintéticas – tudo o que o inglês tem por excelência e o português, também muito caracteristicamente, não tem”. Eu diria, aliás, que esse é o limite mais crucial para quem traduz poesia de um idioma tão monossilábico e percussivo quanto o inglês para um idioma tão polissilábico e ondulatório quanto o nosso.
 
Voltamos, no entanto, à mesma crossroads anterior: deve-se ser fiel ao som, ou ser fiel ao sentido?
 
Surge uma voz e um voto de peso nesta discussão: o de Vladimir Nabokov, mais que um tradutor: um escritor bilingue. O autor de Fogo Pálido se insurgiu com as traduções anglófonas do clássico poema de Púchkin, o Eugene Oniégin (1837), poema totalmente construído com sonetos, estrofes (que ficaram conhecidas como “the Onegin stanzas”) cujas rimas seguem este padrão: ABAB-CCDD-EFFEGG.




Em seu indispensável Le Ton Beau de Marot (Basic Books, 1997), Douglas Hofstadter dedica dois longos e exaltados capítulos (o 8 e o 9) à discussão do que podemos chamar aqui “a Heresia Nabokoviana”. Porque Nabokov teve a pachorra de escrever uma espécie de panfleto descendo a chibata nas traduções em inglês do poema: James Falen, Walter Arndt, Sir Charles Johnson, Oliver Elton, etc.; e propõe uma tradução rigorosamente semântica (diz ele) do poema. Em prosa.
 
A discussão é comprida e fascinante. Hofstadter, mesmo tratando Nabokov com o máximo respeito, horroriza-se com a idéia de que rima e métrica podem ir para o espaço sem prejuízo visível. (O livro de Hofstadter, aliás, tem como subtítulo: “In Praise of the Music of Language”). Mas ele transcreve os argumentos de Nabokov, que diz:
 
Pode um poema como Eugene Onegin ser traduzido eficazmente com a manutenção das rimas? A resposta, naturalmente, é que não. Reproduzir as rimas e traduzir o poema inteiro, literalmente, é matematicamente impossível. (...) É no momento em que o tradutor se dispõe a reproduzir o “espírito”, e não o mero sentido do texto, que ele começa a traduzir o autor. Ao transportar o poema de Pushkin para o meu inglês, eu sacrifiquei, em benefício da completude do significado, todos os elementos formais, inclusive o ritmo iâmbico onde quer que mantê-lo implicasse em prejudicar a fidelidade. Em favor desta minha idéia de literalismo, sacrifiquei tudo: elegância, eufonia, clareza, bom gosto, usos modernos, e mesmo a gramática – tudo que esses mimetizadores afetados prezam mais do que a verdade.
(pág. 258-259, trad. BT)
 
Nabokov era do tipo que esfrega as mãos de contentamento quando enxerga no horizonte a poeira de uma polêmica que se aproxima.



Para mim, o que o autor de Lolita pretendia era fazer um “novo arranjo” para o poema de Puchkin, um arranjo valorizando o que ele considerava essencial. A solução dele é a melhor? Hofstadter não acha, e dedica longas páginas comparando estrofes inteiras traduzidas em verso e os mesmos trechos traduzidos com o “literalismo” nabokoviano – que sempre saem perdendo na comparação, para Hofstadter (e para mim também).
 
Enfim – existe, enraizada em nossa cultura tradutória atual, a neurose da “fidelidade”, da busca de reprodução do máximo possível dos efeitos produzidos no original. Muito mais a tentativa de uma regravação cover do que um novo arranjo.
 
E na transversal da encruzilhada, é claro, outro diabinho solerte nos convida a um trabalho em que o texto original seja o ponto de partida para outro texto que, sem alegar e sem procurar “fidelidade”, busque nesse original alguma inspiração, proponha uma expansão, alguma paráfrase, revele entrelinhas latentes no original... Isso não é tradução? Não há problema: inventa-se outro nome, mas os poetas já faziam isto antes mesmo que a expressão “arranjo musical” estivesse em circulação, e tudo indica que continuarão fazendo.