quinta-feira, 30 de maio de 2024

5067) Leituras de 2024, parte 1 (30.5.2024)







Em geral faço no fim do ano estes pequenos balanços de minhas leituras, mas desta vez vou fazer diferente. Até porque quando chega dezembro tenho dificuldade para evocar detalhes de livros lidos nos primeiros meses... Enfim, vai ser desse jeito.
 
 
“Revenge (Eleven Dark Tales)” de Yoko Ogawa (trad. Stephen Snyder)

Esta autora japonesa, de quem já andei comentando outros livros, pratica aquele tipo de narrativa em que diferentes contos vão se sucedendo e volta e meia encontramos personagens e situações que reaparecem, ou são mencionados, dando-nos a revelação de que tudo aquilo está ligado, aquelas pessoas se conhecem, aquele fato extraordinário narrado num conto é mencionado em duas linhas por um personagem de outro... Romance ou histórias interligadas? Eu chamo isso às vezes “romance de contos”, e na verdade é uma estrutura narrativa antiquíssima, que tem sido remodelada em tempos recentes. As histórias de Ogawa envolvem um homem que é curador de um Museu da Tortura, uma mulher cujo marido cultiva plantas venenosas, um homem que vive com um tigre de Bengala, uma mulher que cultiva cenouras em forma de mão humana... 
 




“Acordei esta manhã ouvindo uma velha canção dos Beatles” (Recife, Ed. Bagaço, 2016) de José Teles

Para quem não está ligando o nome à pessoa, José Teles é há décadas o crítico musical do Jornal do Commercio do Recife, além de autor de livros essenciais como Do Frevo ao Manguebeat, O Frevo rumo à Modernidade, O Malungo Chico e outros. Aqui, ele dá uma folga à música brasileira e mergulha na obra dos Beatles, uma obra cheia de frases mágicas, capazes de despertar centenas de associações memorialistas, afetivas, poéticas. São contos curtos, às vezes historinhas de amor, de choques do cotidiano, fatias da vida real. Aqui, as canções dos Beatles são (perdão pela metáfora tosca) a massa da pizza, e por cima dessa massa sólida e carregada de significado, Teles distribui seus pequenos encontros e desencontros de gente perdida que não se dá por achada e continua procurando. Cada conto tem o título de uma canção, mas muitas outras estão distribuídas e polvilhadas ao longo dos textos, fazendo um contraponto curioso com o que acontece e com o que os personagens pensam, decerto porque nós, que vivemos num mundo onde música é sinônimo de vida, estamos sempre escutando um radinho que toca em algum recanto do cérebro. O livro de Teles comprova uma tese de meu amigo Rômulo Azevedo: existe um Sonoplasta do Mundo, que está sempre vigiando nossa vida e fazendo com que algum radinho-de-pilha de bodega ou altofalante de praça toque a música certa no momento certo. E é apenas uma canção do Norte.
 




“A devoração da sutileza” de Juliana Berlim (São Paulo, Patuá, 2023)

Esta é uma coletânea de contos – e de mini-contos, um gênero que eu pratico de vez em quando, e que tem suas próprias espertezas (e armadilhas). O miniconto se assemelha mais à foto ou ao cartum, porque é o flash de um instante, seja real ou rememorado, como vemos em “A mão incendiada”, “Princeps”, “O deus e o gafanhoto”. Os contos propriamente narrativos mostram com segurança, sem recorrer a enredos mais complexos, episódios que ganham em desenvolvimento, como “Risoto” (um passeio pela memória enquanto a narradora está ao fogão), “Orlando” (a viúva de um general cuidando obsessivamente da casa sob sua guarda), “Dádiva” (um pneu furado no meio da noite fazendo um casal fugir correndo na escuridão), “Espelho” (conto fantástico em que um homem acha um nariz na rua), “Ela/Elegbara” (uma travessia de deserto, na África, conduzida por uma mulher). A autora mostra que pode ousar enredos mais extensos e mais complexos, em que sua imaginação se solte ainda mais. 
 




“Espectrais: contos sombrios na terra da luz” (Eusébio (CE), Ed. do Autor, 2023) de Stelio Torquato

Contos de assombração reunidos em “fix-up”, ou seja, há uma narrativa maior que reúne dentro de si as histórias individuais. No caso, o autor narra ter sido arrebatado pelo vento até uma região remota do interior do Ceará, onde vinte espectros lhe contaram casos acontecidos com eles, e que o autor passa a narrar. São histórias de maldições, botijas enterradas, violências castigadas pela fatalidade, contadas no tom de histórias sobrenaturais realmente acontecidas. Um aspecto interessante da narrativa oral (ou da narrativa escrita que busca reconstituir o universo da narrativa oral) é o fato de que contos isolados tendem a se perder, mas têm mais chance de se fixar quando são engastados numa estrutura maior, como acontece com As Mil e Uma Noites ou com o Decameron de Boccaccio. A “história de alma” ou “história de assombração” nordestina tem uma vitalidade imensa, embora gire também em torno de um certo número de formas básicas (como aliás acontece com a “ghost story” de língua inglesa). O livro de Stélio Torquato, ao criar uma “moldura” para seus contos, mesmo uma moldura claramente ficcional, adere a esse formato de origem oral, do “rosário de histórias”. 
 



“A última noite de José Wilker” de André Balaio (Nova Lima, Caos & Letras, 2023)

Esta coletânea traz alguns contos curtos e a noveleta que dá título ao livro. André Balaio tem narrativa clara e precisa, que se lê fluindo como uma crônica, e tem o pulo-do-gato do contista, que volta e meia joga na página uma surpresa ou um choque descontínuo, fazendo o leitor exclamar consigo: “Comequié?...” e acelerar a leitura. A noveleta conta a história improvável e meio absurdista de um fã do ator José Wilker que fica terrivelmente impressionado com a morte dele (por enfarte, em casa, depois de jantar num restaurante) e resolve encená-la pessoalmente, reconstituí-la. Morador do Recife, o fã parte para o Rio de Janeiro com a intenção de reviver a última noite de Wilker – arranjar uma namorada (porque não tem, e ainda menos no Rio), ir ao mesmo restaurante, depois voltar para casa (ou para o hotel, no seu caso)... É um projeto absurdista que lembra as monomanias de alguns personagens de Georges Perec ou Paul Auster. Faz paralelo com outro conto do livro (“O Arremate”) em que um alfaiate idoso convence o cliente jovem de que foi o autor do gol do título do Botafogo num campeonato carioca, embora tudo pareça desmenti-lo. É a vida imaginária de cada um: uma conta que nunca fecha. 
 



“Contos de Inverno”, de Karen Blixen

Eu já tinha este livro em inglês, resolvi reler agora na tradução elegante de Anna Olga de Barros Barreto (Ed. 34, 1993). Karen Blixen (“Isak Dinesen”, 1885-1962) é uma contadora de histórias à maneira clássica. Suas narrativas são sólidas, bem encadeadas, com começo-meio-e-fim, mas por cima dessa estrutura de pedra existe uma rica decoração de lambris e tapeçarias e forros e estuques e ornamentos. Ela passeia invisivelmente por entre os pensamentos dos personagens, o ambiente onde eles agem, lembranças históricas ou literárias com saborosas digressões ao passado – é uma literatura feita sem pressa, com carinho pelo detalhe, como aqueles quadros dos mestres holandeses. 
 
Contos de Inverno é todo bom e reencontrei aqui, com prazer renovado, histórias como “O Grumete” (talvez o único texto fantástico do livro), “Campo de Dor” (o castigo cruel de um fidalgo sobre um servo e sua mãe idosa), “Os Invencíveis Senhores de Escravos” (uma estação de águas para gente rica, em que algumas pessoas fingem que são ricas e outras fingem que são pobres, para poderem se aproximar socialmente), “O Peixe” (uma história medieval sobre destino e fatalidade, a partir de um anel encontrado no ventre de um peixe), “A Criança Sonhadora” (um casal sem filhos resolve adotar um menino que julga lembrar-se de ter sido filho deles)... Todos os contos são bons.
 




“Sobre o Amor e Outras Traições” de Carmen Moreno (São Paulo, Patuá, 2021)

Conheço a poesia de Carmen Moreno desde que aportei no Rio há algumas décadas, e participamos de muitos recitais e agitos. Este livro é uma coletânea, dividido em vários capítulos temáticos (“O Fim”, “Mudança de Pele”, “Incêndios”, etc.), em que a poesia é emotiva e confessional, mas mantida sob controle com uma notável firmeza, e a expressão, ao invés de se curvar à emoção inicial, usa-a como matéria para atingir outro plano de intensidade. “Ouvindo Nana e Nina – Nenhum amor me deixou. / Moradores de mim, / estes mortos me abrigam / no sótão do eterno. / A cada blue tinto de vinho / dançam boleros nas taças da noite, / e salvam do chão, solidários, / as ébrias sílabas dos meus versos. / Nenhum amor me deixou, não há solidão. / Esta dor não é minha... é da canção.” 
 
Os poemas refletem sobre amor, desamor, família, e refletem o período sombrio da quarentena e suas perdas, no capítulo “Mudança de Pele”: “Ninguém sabe do último abraço / ou a última chance de abraçar, / dizer, desdizer, serenar a língua / desalinhada. / O toque último dos dedos, / no apartar das mãos, / a sílaba final da última palavra, / no átimo do último olhar, / antes de o rosto virar, e o corpo, / por último, dobrar a esquina.”  Uma poesia cada vez mais amadurecida e burilada. 
 



 
“The Wrench” (1978) de Primo Levi (Londres, Michael Joseph, 1987, trad. William Weaver)

Este livro é também aquilo que chamamos às vezes de fix-up. Uma tradução possível seria “arrumadinho”, se este já não fosse o nome de um delicioso prato da culinária nordestina – várias coisas diferentes arrumadas juntinhas, mas separadas, numa mesma travessa ou prato comprido. Em literatura, um fix-up é um conjunto de histórias completas e curtas “amarradas” por um conceito, uma narrativa mais ampla que as coloca arrumadinhas no mesmo contexto. 
 
Primo Levi sugere aqui a convivência temporária entre o Narrador (um técnico em química que está a serviço numa obra de grandes proporções) e Faussone, que é um “rigger”, operário especializado na montagem de grandes estruturas. O livro é traduzido no Brasil como A Chave-Estrela, o título do original italiano (“La chiave a stella”). Faussone é um sujeito prático, pão-pão-queijo-queijo, conhecedor do ofício, um resolvedor de problemas. São cerca de quinze histórias em que Faussone relata ao Narrador algum projeto em que trabalhou e que por algum motivo deu problema. Desde problemas pequenos (um macaco que se infiltra no canteiro de obras e tenta “ajudar”) até uma ponte que não resiste a uma enxurrada e vem abaixo de maneira hollywoodiana. O interessante no modo de narrar de Levi é que há um diálogo permanente entre Faussone e o Narrador, e um subtexto que percorre o livro inteiro é “a arte e a ciência de contar histórias”, porque o Narrador comenta o tempo inteiro os modos e os recursos de narração escolhidos por Faussone, um homem inteligente, de leituras medianas, mas sem o menor traço de academicismo ou intelectualismo. Acho que poucos livros me comunicaram, tanto quanto este, a idéia de que o trabalho de engenharia pode ser curioso e emocionante. 
 
 





segunda-feira, 27 de maio de 2024

5066) Cinema ou teatro-filmado? (27.5.2024)



 
“Teatro filmado” é uma crítica que se faz, de vez em quando, a filmes que ficam presos num mesmo lugar, com a câmera paradona, mostrando os diálogos entre um grupo de pessoas. Cinema, por definição, é o contrário disso. O teatro clássico aconselhava unidade de ação, de lugar e de tempo; e quando a câmera cinematográfica se pôs em movimento, quebrou as quatro paredes do teatro e o céu foi o limite. 
 
Alguns filmes que vi há pouco tempo parecem peças teatrais filmadas. Uns por serem mesmo peças, em sua origem, como é o caso de Disque M Para Matar (“Dial M for Murder”, 1954) de Alfred Hitchcock, adaptado por Frederick Knott de sua própria peça. Tudo ocorre numa sala: ali o crime é planejado, depois executado, depois investigado, e ali se dá o desfecho. Poucas cenas deixam esse cenário único, que só tem três saídas: a porta da frente, a porta do quarto, a porta que dá para o jardim. 
 
Isto é curioso porque Hitchcock é conhecido por suas histórias de intensa movimentação física e de perseguições, desde títulos antigos como Os 39 Degraus (1935), The Secret Agent (1936), Young and Innocent (1937), etc, até filmes como Intriga Internacional (1959), O Homem Que Sabia Demais (1956), Os Pássaros (1960) e outros. 
 
Hitchcock se queixa de que muitos diretores, quando vão filmar histórias com origem no palco, atulham o filme com saídas desnecessárias: gente entrando no táxi, se deslocando pela cidade, descendo do táxi, etc., apenas para mudar de ambiente. (François Truffaut comenta que na França se chama a isto “arejar” o filme.) E ele lembra: a vantagem dessas histórias teatrais é justamente a concentração. Concentração de ação, de tensão, de suspense, de significado. 
 
Para explorar mais ao seu modo essa tensão que não relaxa, Hitchcock fez Festim Diabólico (“The Rope”, 1948), que transcorre inteiro dentro de um apartamento, numa festa cheia de gente, com a câmera “costurando” diálogos e ações numa tomada aparentemente única. 




Outro que vi há pouco é uma produção de 2009: Exam (de Stuart Hazeldine). Todo o filme transcorre numa sala, que poderia muito bem ser um palco (e de fato houve depois uma transposição para o teatro, na Índia, em 2011, com o título de Key). 
 
Na sala, oito mesinhas e oito candidatos a uma vaga de emprego numa multinacional. Eles têm 80 minutos para responder um teste que, previsivelmente, é cheio de “pegadinhas”, duplos-sentidos, regras arbitrárias, etc.  
 
Tudo fica por conta dos diálogos, do esforço dos atores, das reviravoltas do enredo. O que há de interessante? É que restrições de orçamento, etc., fazem com que alguns diretores criem filmes que não têm origem no teatro mas adotam, para sua conveniência, as limitações do teatro. Não é uma peça teatral filmada: é um filme teatralizado (com um só espaço, e ação contínua). 




Um terceiro filme foi uma produção recente: O Alfaiate (“The Outfit”, 2022) de Graham Moore, com Mark Rylance (o bilionário de Não Olhe Para Cima), Johnny Flynn (o playboy-vítima da série Ripley) e outros. É outro caso de filme cuja origem não é teatral: foi escrito diretamente para a tela pelo diretor e Johnathan McClain. 
 
The Outfit é a história de Leonard Burling, um alfaiate inglês na Chicago de 1956. Compromissos de amizade e de clientela o aproximam de uma quadrilha de mafiosos que começa a usar sua alfaiataria como ponto de encontros, recados, pagamentos, etc. Os primeiros minutos do filme mostram Burling (Mark Rylance) e o difícil jogo de equilíbrio que ele mantém junto aos gangsters. A partir de um terço do filme, a ação se acelera, e o que vemos daí em diante é uma daquelas noites intermináveis de violência, ameaça, entradas e saídas de pessoas, e a cada instante uma reviravolta na trama. 
 
A alfaiataria tem a “porta da rua” (esse acessório tão indispensável às narrativas do teatro), uma pequena sala de espera, e dois aposentos espaçosos, isolados por portas por onde os atores evoluem, acompanhados pela câmera. 



(The Outfit: Zoey Deutch, Mark Rylance e Johnny Flynn)


Quando se tem um cenário único (no teatro ou no cinema), o principal requisito é que ele possa ser subdividido para efeitos dramáticos – enquanto no aposento A acontece algo, no aposento B acontece uma ação diferente. Graham Moore explora bem essas idas e vindas, a tal ponto que não temos nenhuma sensação de claustrofobia, e na verdade só me vinha à mente o lado teatral daquilo quando a porta da frente se abria para dar entrada ou saída a alguém, e eu lembrava que praticamente não se tinha visto a rua até então.  
 
O roteiro é muito bom (quem quiser confira o filme, no Amazon Prime), mas acaba se contaminando de algumas pequenas irrealidades que aceitamos com mais facilidade no teatro do que no cinema. Um homem ferido a bala e costurado “no cru”, uma hora atrás, está de repente andando e conversando como se nada tivesse acontecido; um cadáver e uma poça de sangue são “desaparecidos” em questão de minutos quando chega um visitante.  
 
No teatro, temos uma certa generosidade em aceitar detalhes assim, pouco plausíveis, porque sabemos que existe um limite físico, presencial, para o que pode ser feito no palco. No cinema, somos mais exigentes. Ora, não têm truques? Não podem interromper a filmagem, e filmar outra coisa? Então, que sejam escrupulosamente realistas! 
 
Mas o interesse das histórias teatrais de crime não se volta para esse verniz realista, e sim para o jogo verbal entre os personagens, o que dizem, o que escondem, o que revelam, as mentiras que contam (ainda melhores quando a platéia sabe que é mentira)... E no jogo de gato-e-rato que os espertos-armados e os espertos-desarmados travam entre si. 



 
Nisto o filme é bom, e lembra certas “peças de crime” filmadas, como Jogo Mortal (“Sleuth”, 1972, J. L. Manckiewicz) ou Armadilha Mortal (“Deathtrap”, 1982, Sidney Lumet). Uma trama intrincada em que nunca se sabe ao certo quem está traindo quem, quem está contando a verdade, e com que intenção certas ações estão sendo executadas. 
 
Todos estes filmes, e muitos outros, dependem basicamente das armas do teatro (ator, diálogo, enredo) com produção de cinema em volta. O desafio para o diretor de cinema é criar em torno dessa limitação, que é quase asfixiante, um senso de tempo e de espaço capaz de nos fazer esquecer o confinamento. 




É o que faz Lars von Trier em Dogville (2003), abstraindo o cenário físico e apenas demarcando o espaço onde os atores fingem estar encerrados entre paredes de verdade. É o que fazem Rainer Werner Fassbinder em Querelle (1982) e Paul Schrader em Mishima (1985), com a criação de cenários explicitamente artificiais, irrealistas, tanto quanto os de certos filmes do Expressionismo Alemão.  
 
O teste, a meu ver, é sempre este: Esse filme poderia ser transposto para o palco teatral sem grande perda, e até com alguns ganhos? Porque os exemplos acima (com exceção do filme de Hitchcock), não vieram do teatro para o cinema. Foram criados para o cinema, e vão na direção do teatro.   
 
 



sexta-feira, 24 de maio de 2024

5065) Bob Dylan, ano 83 (24.5.2024)



(Bob Dylan, na sua oficina de esculturas em metal) 

 
Trechos do livro de memórias Chronicles, vol. 1 (2004), de Bob Dylan, que hoje completa 83 anos. Trad. BT 
 
(Sobre a infância:)
“Programas de rádio formaram uma grande parte da minha consciência lá no Meio-Oeste, quando eu tinha a sensação de viver numa perpétua juventude. Inner Sanctum, The Lone Ranger, This Is Your FBI, Fibber McGee and Molly, The Fat Man, The Shadow, SuspenseEste último tinha o som de uma porta rangendo, mais horrível do que qualquer porta que você possa imaginar; histórias de estraçalhar os nervos e dar voltas no estômago, toda semana. (...) Uma vez eu perguntei ao cara da sonoplastia como ele recriava o som de uma cadeira elétrica, e ele disse que era fritando bacon. E ossos quebrados? Ele pegou um drops e partiu com os dentes.” (p. 50-51) 
 
(Sobre os anos 1960:)
“Os artistas latinos também estavam rompendo com as fórmulas tradicionais. Artistas como João Gilberto, Roberto Menescal e Carlos Lyra estavam se afastando do samba recheado de tambores e criando uma nova forma de música brasileira cheia de mudanças melódicas. Deram-lhe o nome de bossa nova. Quanto a mim, o que eu fiz para romper com a fórmula foi pegar as harmonias da música folk e colocar nelas um novo imaginário e uma nova atitude, usar bordões e metáforas combinados com um novo conjunto de regras que acabaram evoluindo para formar algo novo, algo que não tinha sido ouvido antes.” (p. 67) 




(Sobre os testes antes de gravar o primeiro disco:)
“Eu não tinha muitas canções, mas estava compondo algumas meio de improviso, refazendo versos para velhas baladas, velhos blues, criando um verso original aqui e ali, do jeito que vinha na minha cabeça – e botando um título novo. Estava fazendo o melhor que podia, precisava sentir que estava merecendo o dinheiro que me pagavam. Nada era capaz de me convencer de que eu era um compositor de verdade, e não era mesmo, não no sentido convencional da palavra.” (p. 227) 
 
(Sobre os primeiros tempos em Nova York, aos 20 anos:)
“Eu não sabia exatamente o que estava procurando, mas comecei a procurar na Biblioteca Pública de Nova York. (...) Numa sala de leitura dos andares superiores comecei a ler, em microfilme, artigos dos jornais  de 1855 a 1865 para saber como era a vida naquele tempo. Não estava propriamente interessado nas questões, mas na linguagem e na retórica da época. (...) Não parecia outro mundo; era o mesmo, só que com mais urgência, e a escravidão não era o único problema. Havia matérias sobre movimentos reformistas, ligas anti-jogo, aumento na criminalidade, trabalho infantil, campanhas anti-álcool, fábricas com trabalho semi-escravo, cultos religiosos. Você tinha a sensação de que o jornal ia explodir, e que ia cair do céu um raio para fulminar o mundo inteiro.”  (p. 84) 



 
“Escrever canções para uma peça não me parecia nada de excepcional, e eu já tinha composto uma ou duas canções para ele [Archibald MacLeish] somente para ver se era mesmo capaz. Sempre gostei do palco, e mais ainda de teatro. Me parecia ser a arte suprema entre as artes. Fosse qual fosse o ambiente da ação, um bar, uma calçada, a poeira de uma estrada no campo, a ação sempre transcorria num eterno agora.” (p. 124) 



(Bob Dylan, quadro da série "New Orleans") 

 
(Sobre New Orleans, onde gravou “Oh Mercy” em 1989:)
“Em  New Orleans a gente quase consegue enxergar outras dimensões. Aqui, tudo existe apenas um dia de cada vez, depois vem a noite, e amanhã tudo vai ser “hoje” novamente. Há uma melancolia crônica pendendo das árvores. A gente nunca se cansa dela. Depois de um certo tempo, a gente se sente como um fantasma a mais daqueles cemitérios, como se estivesse num museu de cera cercado de nuvens carmesim. Um império dos espíritos. Um império dos poderosos. (...) O diabo vem até aqui e dá um suspiro. New Orleans. Estranha, anacrônica. Um bom lugar para viver sentindo as emoções alheias. Nada faz muita diferença e você nunca sofre, e é um bom lugar para deixar que as coisas aconteçam. Alguém põe um copo à sua frente, e a melhor coisa a fazer é bebê-lo.” (p. 181) 
 
(Sobre escutar Robert Johnson no Village, anos 1960:)
“Segurei o disco de acetato de Robert Johnson e perguntei a Dave Van Ronk se já o tinha escutado. Ele disse que não, e pus o disco na vitrola. No instante em que as primeiras notas brotaram do alto-falante senti meus pelos se arrepiarem. As notas do violão eram como punhaladas, capazes de partir as vidraças. Quando Johnson começou a cantar, parecia um cara que tivesse brotado da cabeça de Zeus, vestindo uma armadura completa. Senti que ele era diferente de tudo que eu já tinha escutado. As canções não eram os mesmos blues costumeiros. Eram peças perfeitas – cada canção tinha quatro ou cinco estrofes, cada par de versos se relacionava com os outros, mas nunca de uma maneira óbvia. Era algo totalmente fluido. No começo tudo surgia rápido demais, mal dava para assimilar. Ele cobria todo o território, em alcance e em variedade de temas, versos curtos, de alto impacto, que resultavam numa vasta narrativa panorâmica, era o fogo da raça humana se elevando daquele pedaço de plástico que girava na vitrola.” (p. 282) 



 
“O mundo moderno, um mundo maluco e complicado, me despertava pouco interesse. Não tinha relevância, não tinha peso. Não me seduzia. O que era vibrante, atual e significativo para mim eram histórias como o naufrágio do Titanic, as inundações de Galveston, John Henry partindo rochas com a marreta, John Hardy matando um homem a tiros numa ferrovia da Virginia. Tudo isto era atual, feito às claras, aos olhos de todos. Estas eram as notícias que eu levava em conta, acompanhava, usava para minhas anotações.” (p. 20) 
 
“Desde a infância me acostumei a ver trens, e a ouvir o seu barulho, e sempre me senti seguro. Os grandes vagões fechados, os vagões de minério, os vagões de carga, vagões de passageiros, os carros Pullman. Na minha cidade natal era impossível ir de um lugar a outro sem a certa altura ter que parar num cruzamento e ficar esperando que um longo trem terminasse de passar. As ferrovias cruzavam as estradas rurais, e às vezes as duas corriam paralelas. O som de um trem passando à distância faz com que eu me sinta em casa, me dá aquela sensação de que não há nada faltando, de que não corro nenhum perigo e que todas as coisas se encaixam.”  (p. 31) 




(Marcus Carl Franklin, no papel de Bob Dylan / Woody Guthrie, em "Não Estou Lá", de Todd Haynes)
 






terça-feira, 21 de maio de 2024

5064) Sete tristezas (21.5.2024)




1
Saul Ormolov, segundo violino da Orquestra Filarmônica de Cracóvia, 42 anos de idade, 23 de orquestra, é feliz na sua vida familiar e na sua profissão, mas cultiva uma melancolia secreta em sua relação com Pavel Bednarek, 61 anos, primeiro violino da mesma orquestra. Os dois são amigos há décadas, as famílias têm boas relações, costumam convidar-se para jantar em casa duas ou três vezes por ano, e Saul costuma referir-se a Pavel como “o meu mestre”. O sentimento incômodo na alma de Saul é o fato de que, embora Pavel o tenha incentivado e ajudado ao longo de toda a carreira, e tenha ficado do seu lado em algumas situações cruciais envolvendo emprego, salário, etc., é muito raro que Pavel elogie o seu modo de tocar e, mais ainda, que admita ter aprendido alguma coisa com quem ele próprio chama de “o meu melhor discípulo”. Não se trata de vaidade ou egocentrismo da parte de Saul, que no exterior e no íntimo é um indivíduo sereno e modesto. É que ele deve tanto a Pavel que experimentaria uma enorme felicidade se viesse a saber que em algum momento fez algo que satisfez o mestre, que deu ao mestre um certo orgulho do discípulo. Saul não gosta de ser o único que recebe e aprende, queria apenas saber que em algum momento ele também ensinou, ele também alegrou. 
 
2
O sucesso editorial não chegou todo de uma vez para Charlotte Reys Buchanan, que estreou com o romance Seventeen Days, eleito “melhor livro do ano” pelo Chicago Examiner, louvado pela crítica, mas com vendas modestas. Dois outros romances se seguiram até a sua explosão de vendas com Never My Love, best-seller do New York Times durante dois meses. Seguiram-se livros sempre aclamados, à razão de um por ano; mais de trinta milhões de exemplares vendidos, capas em revistas, novos prêmios (chegou a ser finalista do Booker Prize britânico em 2015), num total de 28 romances e seis coletâneas de contos. Entrevistada quatro meses antes de sua morte aos 80 anos, ela declarou: “Conquistei praticamente tudo que uma ficcionista pode ambicionar, e nada tenho a me queixar dos meus editores, do meu público. Uma coisa apenas me incomoda, é saber que o melhor livro que escrevi na vida foi o meu livro de estréia, e desde então não produzi nada que sequer se assemelhasse a ele.” 
 
3
João Luís Vallardo, 41 anos, de São Paulo, saiu de casa esperançoso naquela manhã, tão esperançoso que prometeu a sua filhinha Henriqueta, de sete anos: “Papai vai receber um pagamento hoje, e amanhã compra seu joguinho”. No metrô, rumo a Vila Madalena, arrependeu-se da generosidade, porque as dívidas eram muitas, mas depois desarrependeu-se, porque a filha era estudiosa e compreensiva, merecia um presente caso as vacas ficassem gordas. Ao entrar no escritório do Dr. Madero, este ergueu os olhos de um documento, ouviu seu relato sobre o serviço concluído há mais de uma semana, a espera do pagamento, e retrucou: “O senhor me desculpe, eu não combinei nada disso, pelo que entendi o senhor iria executar este serviço em troca do perdão daquela dívida.” João disse: “Isso foi proposto pelo senhor, eu não concordei, e enfim chegamos a um acordo de 10 mil reais, contra-entrega.” O homem cravou-lhe dois olhos como quem crava dois pregos, e disse: “Eu não me lembro dessa conversa. E o senhor faça o favor de se retirar.” De nada adiantaram quarenta minutos de dignidade ofendida, de tentativas de conciliação, de propostas de meio-termo, de raiva impotente; o outro disse, na cara de pau: “Eu não acertei nada disso com o senhor. Dona Lourdes, acompanhe o cavalheiro. Passe bem.” Ele retirou-se derrotado, trêmulo, estupefato, preso a um novelo de ímpetos homicidas, suicidas e incendiários. Caminhou a esmo pela Fradique Coutinho, Mourato Coelho, Teodoro Sampaio, Henrique Schaumann, Cardeal Arcoverde, Pedroso de Morais, Rua dos Pinheiros, Potiguar Medeiros, Avenida Rebouças... Chegou em casa coberto de suor e poeira, Henriqueta surgiu aos pulos e aos pedidos, ele a abraçou e disse: “Desta vez não deu certo, meu amor, papai não recebeu, o país está em crise.” 
 
4
A melancolia nos olhos verdes de Adrienne Lavalier, 22 anos, estudante da Sorbonne, moradora de Saint Germain des Près, tem como causa indireta sua paixão repentina e incondicional por Juvenildo Cardoso, 23 anos, percussionista, morador de Montmartre, depois que se conheceram ao longo de alguns shows de rock, mas tudo mudou quando foram pela primeira vez a um restaurante, e Juvenildo fez o que sempre fizera desde seus velhos tempos em Jequié, puxou a cadeira, sentou-se, já pensando em pedir uma bebida e depois uma comida, e só então percebeu Adrienne ainda de pé, junto à cadeira intocada, à espera de um gesto que não veio, porque Juvenildo não fazia noção do que se esperava dele. E depois que isso se repetiu algumas vezes, forçando Adrienne à humilhante concessão de puxar a própria cadeira, o amor, mais uma vez, foi para o espaço.   
 
5
Sobrou para o pobre do Dilsinho da Matriz, 20 anos, craque do passinho, fera do cavaco, compositor de futuro, tanto que fez parte da famosa “mesa da garagem”, na casa-bar de Mãe Carminha, onde numa madrugada eufórica de 2017 foi composto o samba vencedor “Braços Pro Céu”, que conduziu a escola G.R.E.S. Unidos de Vila Descalça ao histórico campeonato da Terceira Divisão carnavalesca, com o enredo “Ascensão e Queda do Padre dos Balões”. Ao receber uma cópia do CD, ainda quentinho do forno, ele leu: “Composição: Paulo Padeiro, Misael Clemente, Odorico 7mbro, Luís Manuel, Rafa de Militão, V. J., Camaçari, Peu Peu e Dentinho.”  Com timidez e angústia ele questionou: “Não botaram meu nome? Aquele verso ‘Chora meu povo / sonha de novo / e faz de conta que existe o Carnaval’ não é meu?! Letra e melodia?!”  Camaçari coçou os dreads, constrangido, e explicou: “Sim, sim, mas, essas coisas, você sabe como é. Já tinha gente demais.” 
 
6
Sandro Maciel, 72 anos, inteiro de corpo, leve de espírito, teve uns perrengues de saúde, mas coisa leve, levinha, nada comprometedor, mas mesmo assim sua esposa Dona Lindalva, 66 anos, baixou uma Lei Seca de trinta dias, jogou todas as bebidas no lixo, jogou até o Álcool 70 do tempo da covid. Sandro tentou argumentar, foi racional, foi clínico, foi explicativo, tentou ser ameaçador mas definitivamente não era seu estilo, resignou-se com os trinta dias e deliberou aproveitá-los para finalmente ler “A Montanha Mágica”. Na primeira vez que Dona Lindalva precisou sair, ela fechou por fora as duas portas do apartamento no 18º. andar, segura de que o detento não teria chance. Mal ela se afastou, Sandro pulou da poltrona e começou a investigar rotas de fuga, solerte como um cão farejador. Por fim chegou à área de serviço onde havia uma janela estreita mas promissora, ainda coberta com a rede plástica do tempo em que Sandrinho, hoje casado e pai, era apenas um infante. Ele cortou os fios, estava em pleno processo de escapar para o poço do edifício e a platibanda que dava acesso aberto ao corredor dos fundos, quando escutou às suas costas a voz gélida da carcereira: “Pode descer daí, foi só um teste, e guarde as energias que hoje de noite você vai pagar seus pecados.” 
 
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Maria das Graças Santana, 26 anos, graduada em jornalismo, era uma das mais entusiasmadas profissionais da equipe do portal de notícias A Voz da Serra, na cidade de Santa Marta do Norte. Elogiada pelo seu pique de trabalho, pontualidade, estilo fluente, ela sentia que o que lhe faltava para poder sonhar mais alto era uma grande reportagem, um furo, ou uma grande entrevista. Pensou ter chegado sua chance quando num evento cultural alguém a designou aleatoriamente para a mesa do Dr. Expedito Perlingeiro, 78 anos, cacique dos transportes públicos em Santa Marta, e este, em plena degustação de uísques duplos, botou-se de importante diante dos olhos azuis e arregalados da jovem, sem nem saber quem era ela, e contou com detalhes uma reunião-a-portas-fechadas que tivera na véspera com um Senador da República, de quem extraiu revelações desconcertantes sobre a política local. Maria das Graças voltou para casa às 2 da madrugada e só foi dormir às cinco, depois de publicar no portal as revelações estarrecedoras que ouvira sobre as atividades do dito Senador. Acordou às 9, pulou da cama com urgência para ver quantos acessos, e se deparou com uma curta mensagem do seu editor-chefe: “Gracinha, não sei onde você encomendou seu cérebro, mas quero lhe informar que o Senador é o financiador do nosso portal. Acorde, criatura”. 
 
 
 
 
 
 
 





sábado, 18 de maio de 2024

5063) James Joyce e o surrealismo (18.5.2024)




Há cerca de cem anos, a Literatura e o Inconsciente estavam embarcando numa lua-de-mel intensa e desconcertante. Como em tantas luas-de-mel, o desejo mútuo era avassalador, mas ao mesmo tempo era preciso renegociar expectativas, demarcar jurisdições, sincronizar ritmos, assimilar surpresas, descartar inadequações, apresentar trunfos, regar terrenos promissores, virar a mesa quando preciso, cultivar a antiga arte do armistício negociado. 
 
Digo “há cerca de cem anos” porque nenhuma aventura literária é datada. Para quem precisa de uma âncora cronológica, lembro que o primeiro Manifesto do Surrealismo foi publicado por André Breton em 1924. 
 
Quando falamos da atividade literária talvez seja mais útil focalizar décadas do que anos; e as décadas entre as duas Guerras Mundiais foram um período muito rico na história da Europa. Uma festa num edifício com incêndio no porão. 




O Surrealismo já existia como espírito e prática. Era um oitavo-passageiro alimentando-se da energia do movimento Dada. E em 1920 já era publicado o livro Les Champs Magnétiques, escrito a quatro mãos por Breton e Philippe Soupault, considerado uma das primeiras experiências oficiais da “escrita automática”. 
 
A escrita automática é a prática paradoxal de escrever sem pensar, escrever sem raciocinar, sem julgar, sem premeditar efeitos, sem ajustar-se a regras. Na definição clássica de Breton, no manifesto de 1924: 
 
Surrealismo, s.m. Automatismo psíquico em estado puro mediante o qual se propõe exprimir, verbalmente, por escrito ou por qualquer outro meio, o funcionamento do pensamento. Ditado do pensamento, suspenso qualquer controle exercido pela razão, alheio a qualquer preocupação estética ou moral.
(André Breton, Manifestos do Surrealismo, Ed. Nau, Rio, 2001, trad. Sérgio Pachá, p. 40)  



(placa no Hôtel des Grands Hommes, Place du Panthéon)


Durante esse mesmo período, esfingeticamente alheio ao Surrealismo (será?), James Joyce estava em Paris, na reta final de elaboração de seu Ulisses, que sairia finalmente em 1922. 
 
A publicação de um livro é muito diferente do nascimento de uma pessoa. Um livro só começa a existir para o público depois que é editado, mas muitas vezes (é o caso do Ulysses) ele já existia não só para seu autor, mas para pessoas que acompanhavam sua criação. Já era uma realidade literária, mesmo que numa bolha restrita. 
 
James Joyce desembarcou em Paris em meados de 1920, vindo de Trieste e Zurique. Les Champs Magnétiques tinha acabado de surgir, e as polêmicas bretonianas estavam taxiando para decolar. Joycismo e Surrealismo eram dois vulcões fumaçando à distância, levemente conscientes da existência um do outro. 
 
E cada um deles mergulhando sem medo no magma ardente do inconsciente, e cuspindo-o para o alto em forma de lavas e palavras. É curioso observar que de todo o grupo Surrealista foi justamente Philippe Soupault o único que tornou-se amigo de Joyce e frequentou seu círculo de amizades literárias até o fim da vida – se bem que as amizades de Joyce, tal como as de André Breton, estavam sempre sujeitas a chuvas e trovoadas. 



(Philippe Soupault)


Qual seria a divergência entre o Surrealismo e a literatura joyceana? Ambos pareciam buscar o fluxo-de-consciência, o acasalamento freudiano entre palavras, a algaravia primordial, um nonsense permanente e libertador, os duplos-sentidos eróticos onipresentes.  Sua divergência não era proposital nem antagônica: eram apenas dois projetos literários distintos, bebendo na mesma fonte, numa Paris em que havia um movimento de vanguarda em cada esquina. 
 
Curiosamente, o Surrealismo enxotava a pontapés o conceito de estética literária, como se vê na definição acima. O propósito de Breton, por incrível que pareça, dava à Ciência um protagonismo que ia além da mera prosa, da mera poesia. Sua fascinação por Marx e Freud não derivava apenas do impulso revolucionário da filosofia de ambos, mas por serem tentativas de resolver cientificamente, pragmaticamente, os problemas das sociedades e das mentes humanas. 
 
É certo que o surrealismo, que vimos adotar socialmente, de caso pensado, a fórmula marxista, não pretende dar como algo de somenos valia a crítica freudiana das idéias: muito pelo contrário, considera tal crítica a primeira em importância e a única assentada em bases firmes. 
(“Segundo Manifesto”; pág. 191-192)
 
Coube a Breton, anos depois, fazer um diagnóstico dessa divergência, e é curioso como ele trata de maneira um tanto desdenhosa a literatura. (Ao expurgar alguns dos ex-companheiros, ele muitas vezes os acusava de estar querendo fazer literatura, e não surrealismo.) 




Em “Do Surrealismo em suas Obras Vivas”, texto de 1953 incluído no volume dos “manifestos”, Breton argumenta:
 
Embora manifestem uma vontade comum de insurreição contra a tirania de uma linguagem inteiramente aviltada, procedimentos como a “escrita automática”, na origem do surrealismo, e o “monólogo interior”, no sistema joyciano, radicalmente diferem em seus fundamentos. (pág. 356) 
 
Para Breton, Joyce pretende fazer, de sua prosa, 
 
... um fluxo que ele se esforça por fazer jorrar de todos os lados e que tende, afinal, à imitação mais próxima possível da vida (e, assim fazendo, ele se mantém no âmbito da arte, recai na ilusão romanesca, não evita tomar lugar na longa linhagem dos naturalistas e expressionistas). 
 
É uma formulação mais madura e mais diplomática do desabafo feroz de Breton no “Segundo Manifesto”: 
 
Que poderiam esperar da experiência surrealista os que de algum modo se preocupam com o lugar que ocuparão no mundo? (pág. 154) 
 
O autor dos Campos Magnéticos não está preocupado com a linha evolutiva da literatura européia, ou algo equivalente. E diz: 
 
A essa mesma corrente – muito mais modestamente, à primeira vista – o “automatismo psíquico puro” que comanda o surrealismo oporá a vazão de uma fonte que apenas cumpre explorar suficientemente fundo, no interior de cada um, e da qual não seria possível tentar dirigir o fluxo sem a certeza de estancá-lo. (pág. 356-357) 
 
Breton afirma que o surrealismo descobriu e dominou a técnica de acessar o Inconsciente, ou de transformar o Inconsciente em discurso. Ora, todo artista que proclama suas descobertas exagera seus méritos e seu alcance. A descoberta surrealista é (para mim) uma das mais importantes da literatura moderna, e entendo o entusiasmo (e a relativa empáfia) de André Breton ao dizer: 
 
[A] idéia surrealista visa, simplesmente, à recuperação total de nossa força psíquica por um meio que mais não é do que a descida vertiginosa ao interior de nós mesmos, a iluminação sistemática dos lugares ocultos e o obscurecimento progressivo dos outros lugares, o passeio perpétuo em plena zona proibida. (pág. 166). 
 
[J]á não se trata, essencialmente, de produzir obras de arte, mas de iluminar a parte não revelada e, por conseguinte, revelável, do nosso ser. (pág. 382) 
 
O otimismo de Breton se justifica em função da juventude, do entusiasmo, do furor polêmico (a existência do Surrealismo é pontilhada de pelejas, de rompimentos, de defenestrações). 



(André Breton, por André Masson)
 

A “escrita automática”, contudo, nunca chega a constituir um produto final, quando se trata de publicar livros: é matéria-prima, a ser retrabalhada literariamente. Um texto de Stéphanie Parent (da Université du Québec à Montréal) examina os manuscritos originais de Les Champs Magnétiques, a obra em que a escrita automática foi oficialmente lançada; e constata como o texto foi corrigido, revisado, consertado e em muitos pontos melhorado pelos dois poetas, principalmente por Breton. 
 
Aqui:
https://admin.oic.production.nt2.ca/wp-content/uploads/2013/06/cf4-12-parent-le_manuscrit_des_champs_magnetiques.pdf
 
O jogo verbal do Inconsciente é um fenômeno fascinante, mas não podemos menosprezar o puxão gravitacional da literatura. James Joyce se entregou a ele com total abandono, e os Surrealistas, Breton inclusive, com um misto de recalcitrância e esperneio. Nada de mais. A prosa surrealista (estou nestes dias terminando a leitura do Peixe Solúvel, 1924, de Breton) não pode se comparar à ossatura narrativa sólida (ainda que surpreendente) do Ulysses. Talvez se aproxime do fluxo menos linear do Finnegans Wake
 
Se bem que James Joyce, mesmo quando elogiava autores de vanguarda, dizia: “Se perguntarem a eles o que significa alguma passagem tipicamente obscura de seus livros, não saberão o que dizer. Quanto a mim, sou capaz de justificar cada palavra de cada livro meu.”  












quarta-feira, 15 de maio de 2024

5062) Palavra de sertanejo (15.5.2024)



(Praça da Bandeira ) 


São as histórias antigas de Campina Grande, cujo povo brilha mais pela imaginação do que pela fidelidade aos fatos. Os fatos, para os campinenses, são uma espécie de argila úmida, que o narrador vai modificando à medida que conta, com tal detalhismo e destreza que um notebook PC em poucos minutos se transforma num Mac.  
 
Esta aqui me foi contada por Bastinho. Um “caba bom”, da minha geração, que tem uma loja de auto-peças na rua Índios Cariris, é torcedor do Treze, e nos velhos tempos frequentava o Caldo de Peixe do velho Ferreira e o Sinatra Bar, de Rostand. 

Gordão, sorridente, tem uma voz de estremecer paredes. Nos tempos em que a gente ia para lá com violão na mesa, ele se chegava, puxava cadeira, desfiava Altemar Dutra até ficar todo mundo com lágrimas nos olhos. 
 
Nesta vez, eu estava em Campina e fiquei bebendo com uma turma de meia dúzia, no abrigo da Praça da Bandeira. No meio da conversa alguém mencionou um caso recente de assinatura falsificada, que só foi descoberto quando a família pegou o carro e veio de Puxinanã para Campina para checar no Cartório. 
 
– Você devia ter conhecido meu avô – disse Bastinho. – Com ele não tinha esse problema. 
 
Ele falava para todos, mas se dirigia a mim, porque sabia que eu moro no Rio de Janeiro, e alimentava a esperança de que suas histórias acabassem na TV Globo. 
 
– Como era o nome dele? – incentivei. 
 
– Paulo Bezerrão – disse Bastinho. – A gente não é da família Bezerra. O apelido é porque uma vez ele matou um bezerro com um murro. 
 
– Eita mentira – disse alguém. – Tem prova? 
 
– Não tem porque naquele tempo não existia celular nem Instagram – disse Bastinho, franzindo a testa e estufando o peito. – Mas tem a palavra da minha avó, que viu a cena e mesmo assim noivou com ele. 
 
– Quem tem boca diz o que quer. Se for por isso, meu avô foi na Lua e voltou – disse Nicanor, um bêbo meio sem assunto. – Diga que é mentira! 
 
– Isso aí não é mentira, é ilusão – disse Biliu de Campina, fingindo que ajeitava a aba do chapéu. – É você pensando que é engraçado. 
 
Antes que Nicanor pegasse ar, eu trouxe o assunto de volta. 
 
– Mas o que é que teu avô tinha a ver com falsificação? 
 
– Rapaz, é uma história comprida. Bezerrão herdou de um tio dele, que eu não sei mais quem era, uma terra meio ruinzinha, lá na região de Imaculada. Nesse tempo ele morava em Água Branca, foi antes do meu pai nascer. Nessa terrinha tinha uma casa meio estragada, uns moradores, uns roçadinhos, ele ia lá de vez em quando mas nunca se interessou. Acontece que ele criou uma dívida de jogo com um amigo dele, era bastante dinheiro, chegaram quase a se intrigar por causa disso. 
 
“O amigo, um tal de Teófilo, propôs que Bezerrão passasse essa terra pro nome dele. Eram dois velhos teimosos, com pouca paciência pra vida prática, só queriam saber de caçada, bebida, farra. Em vez de irem num cartório, Bezerrão assinou um documento e passou o terreno para Teófilo. E isso não mudou nada, porque o outro também não se interessou pela terra. Queria só ter a posse. 
 
– Isso não está me cheirando bem – disse Biliu. – Não tem terra tão pequena que não se possa medir sete palmos. 
 
– Não foi o caso – disse Bastinho. –  Mas Bezerrão morreu, teve um colapso. Algum tempo depois Teófilo morreu também, quando bateu numa vaca com a camionete, na estrada para Tabira. E quando foi alguns anos atrás, surgiu uma questão na terra, porque o governo queria desapropriar um trecho, essa coisa de sempre. Quem era o dono? 
 
– O dono não já era Teófilo? – perguntei. 
 
– Era o que as duas famílias sabiam, mas quando foram atrás do documento... Primeiro remexeram a casa toda pra poder achar, porque as coisas do velho Teófilo eram uma zona total. Acabaram achando, um envelope grande, sujo, amassado, enfiado numa Bíblia sem capa. E aí começou o problema. Eles viram que a Bíblia pegou uma chuva ou alguma coisa assim, e se molhou, e o envelope também. 
 
– Apagou a tinta toda – disse algum sádico. 
 
– Não chegou a isso, mas perdeu-se a assinatura de Bezerrão, o pedaço de baixo do documento se desmanchou. Ficou só o termo de posse, numa caligrafia que talvez fosse de minha avó, mas enfim, todo mundo já na cova... e um documento que parecia de verdade, mas incompleto. 
 
– Mas se as famílias conheciam a história, não haveria problema – disse eu, sempre conciliador e otimista. 
 
– Por meu pai e por nós não haveria – disse Bastinho. – Mas um primo meu entrou na justiça, e tirou não se sabe de onde uma versão de que Bezerrão tinha dado a terra ao pai dele, também já morto. Isso envergonhou nossa família, mas era palavra contra palavra. 
 
– E um documento sem assinatura. 
 
– Isso mesmo. O juiz era gente boa, mas explicou: estava com as mãos e os pés atados, por falta de uma evidência concreta. 
 
– E então... chegou alguém e falsificou a assinatura – sugeriu alguém. 
 
Bastinho encrespou-se: 
 
– Você está pensando o quê?!  Minha família é pobre mas tem honra. 
 
– Metade disso é verdade – disse Biliu. 
 
– E como ficou o caso, então? 
 
– Fomos pra Imaculada. Eu, meu irmão Paulinho, e minha irmã Dionéia. Nos reunimos com os netos de Teófilo, um pessoal bacana, pessoal educado, mas sem mentalidade prática, sem muito traquejo pra sair desse tipo de situação. Chegamos lá de tarde, tivemos uma conversa, jantamos, depois do jantar sentamos todos na mesa e eles trouxeram o documento. Envelope antigo, papel antigo, tinta desbotada, e meio palmo da folha se esfarrapando, no lugar onde tinha a assinatura. E foi nesse momento, modéstia à parte, que eu percebi uma coisa. 
 
Um carro passou diante do abrigo, tocando um forró em toda altura, mas afora isso não se escutava um pio naquela roda. 
 
Bastinho contou, caprichando no gestual com mãos e dedos: 
 
– Eu pedi o documento... segurei, assim... levantei... olhei de encontro à luz elétrica... parecia tudo normal. Eu estava até emocionado, porque disseram que era a letra de minha avó, que eu nem conheci. Mas aí, sabe o que eu vejo? Junto da data, logo na cabeça da folha, tinha uma mancha que me chamou a atenção. Botei a folha na mesa, alisei ela, assim. Era uma mancha de goma arábica. 
 
– Goma arábica – repetiu alguém, baixinho. 
 
– E pregada nela, sabe o quê? – Ele ergueu no ar o polegar e o indicador, fingindo que segurava um fragmento invisível. – Um cabelinho. Pregado no papel com goma arábica! Era um fio de barba de Bezerrão. Assinatura de sertanejo antigo; por via das dúvidas. 
 
Novo silêncio, mas fervilhante de hipóteses mentais. 
 
– E aí? – disse eu. 
 
– Aí?  Aí, nada – disse Bastinho, despreocupado, enquanto enchia o copo de novo. – Teste de DNA, assunto resolvido, o juiz aceitou o documento, meu primo botou o rabo entre as pernas, e entrou por uma perna de pato, saiu por uma perna de pinto. 
 
– Foi muita sorte – comentei. – Muita sorte do fio de barba não ter se perdido, e de você ter percebido que ele estava ali. 
 
– Foi sorte, mas foi também inteligência – replicou Bastinho, satisfeito, alisando maquinalmente o frondoso bigode grisalho. – Só acha quem procura. 
 
– Ou quem botou – disse Biliu baixinho, mas nesse instante o carro do forró passou de novo e acho que só quem escutou fui eu. 

 


(Biliu de Campina)






domingo, 12 de maio de 2024

5061) Roger Corman, 1926-2024 (12.5.2024)



 
Poucos cineastas dos EUA me despertam tanta simpatia quanto Roger Corman, falecido esta semana, aos 98 anos. E isto sem ele ter dirigido uma obra-prima sequer, sem nunca ter feito um filme que me produzisse uma impressão profunda. Gosto dos filmes dele, em geral, mas se eu fizesse uma dessas listas de Meus 100 Filmes Preferidos não creio que nenhum deles fosse incluído. 
 
Corman foi diretor, produtor, roteirista, e acima de tudo um apaixonado pelo ofício de fazer e exibir filmes. Há muitos cineastas que têm vontade de dirigir um filme, mas só presta se for um grande filme, um filme admirável, um filme que abale as estruturas... Não era o caso dele. Avaliando sua própria obra, ele vê nela títulos que vão de “ótimo” a “constrangedor”, mas nunca pede desculpas ou se arrepende dos filmes ruins que fez. Por que? Acho que talvez ele dissesse que cinema é como basquete ou beisebol. Num dia você sai ganhando, no outro sai perdendo, o importante é não parar de jogar. 



Filmar era uma espécie de esporte coletivo para Corman, um cara inquieto, sorridente, brigão, extrovertido, arregimentador de pessoas, resolvedor de problemas. Não tinha preconceitos intelectuais, o que significa que podia fazer um filme de tremenda apelação comercial e depois um filme inspirado em Freud, e ver os dois resultados com a mesma empatia. 
 
Se eu tivesse mesmo que escolher algo dele, ficaria com a série de filmes que ele fez usando a obra de Edgar Allan Poe: House of Usher (1960), The Pit and the Pendulum (1961), The Premature Burial (1962), Tales of Terror (1962), The Raven (1963), The Haunted Palace (1963), The Masque of the Red Death (1964) e The Tomb of Ligeia (1964). 




A obra literária de Poe, nesses filmes, passou na esquina e deu tchau. Corman aproveita apenas o título, alguns personagens e situações, e constrói com eles um gênero que eu classifico como “Terror Ornamental”, ou seja, é um filme fantasiado de filme de terror. Não tem a intenção de aterrorizar, apenas de usar os clichês e as convenções do gênero para divertir o público. 
 
Em seu ótimo livro de memórias, How I Made A Hundred Movies in Hollywood And Never Lost a Dime (Da Capo Press, 1998; lançado em 1990), ele narra como seus filmes de baixíssimo orçamento eram feitos. Por exemplo: ele tinha uma verba de 20 mil dólares para cenários, os quais, depois do filme, ficavam guardados no estúdio. Como o filme seguinte começava a ser rodado logo depois (confiram as datas aí em cima), ele somava a nova verba para cenários aos cenários do filme anterior (colunas, arcadas, salões, escadarias, torres de castelo, etc.). E a cada novo filme esses cenários iam se acumulando, de modo que a cada filme a produção parecia ser mais cara, quando na verdade cada um tinha sempre a mesma quantia. 




Stanley Kubrick era famoso por mandar repetir um take cem vezes até ficar satisfeito; nesse mesmo período de tempo Corman rodaria um filme inteiro. Ele era o cara que levava uma equipe de cinco técnicos e cinco atores para fazer um filme de terror em 8 dias, num casarão abandonado. No fim de cinco dias o filme estava rodado e ele dizia: “Vamos aproveitar e fazer outro?!”  Escreviam o novo roteiro em uma noite, e começavam a filmar na manhã seguinte. 
 
Corman foi, de certa forma, um cineasta brasileiro. Sustentou sua barraquinha dentro do estômago do Leviatã de Hollywood. Talvez a única diferença em relação aos nossos udigrudis seja a sua ausência de pretensões intelectuais, de política revolucionária. Ele fez filme policial, de terror, filme de motoqueiro, filme de sacanagem, filme de monstro, sempre com um olho na bilheteria e outro na platéia. E era um homem inteligente, com leituras variadas. 



Um dos seus melhores filmes, para mim, é O Homem dos Olhos de Raios-X (1963). Aliás, não só para mim, mas para meu parceiro Lenine, que adora esse filme a ponto de ter feito uma música inspirada nele: 
 
https://www.youtube.com/watch?v=3JAokd455Vg
 
É a história de um cientista (Ray Milland) que adapta seus olhos para terem visão de Raio-X e depois, desorientado com tudo que vê, perseguido pela sociedade, acaba arrancando-os. O título foi-lhe dado de graça por Jim Nicholson (da AIP, American International Pictures). Corman diz: 
 
Ele é um cientista tentando deliberadamente desenvolver visão raio-X, ou visão expandida. Essa visão vai progredindo cada vez mais até que no fim ele tem uma experiência místico-religiosa, de poder enxergar o centro do Universo, ou o equivalente a Deus. (...) Personagens de muitos dos meus filmes usam óculos escuros: Paul Birch em Not of This Earth, e Xavier, Peter Fonda e Bruce Dern em The Wild Angels. Enxergar, olhos, visãoserá isto um tema que costura meus filmes, ou mera coincidência? Ou será que Prehistoric World é similar a Raio X e a The Trip no sentido de que mostram um homem disposto a explorar o que existe além do mundo visível, limitado?
(How I Made A Hundred Movies..., pág. 117-119, trad. BT)
 
É significativo que um filme de Corman nunca tenha ganho um prêmio importante, mas ele tenha recebido inúmeros prêmios como diretor e produtor. Sua contribuição não é através de obras de alto impacto, mas do impacto reiterado, diversificado, incessante, abridor-de-caminhos, de dezenas de filmes de baixo orçamento onde ele literalmente pegava uma câmera, chamava uma rapaziada e dizia “vamos ver o que sai daqui”. 



Pouco profissional? Não acho. Certa vez, Corman filmou no Sul do Pacífico (um “filme de avião”) sem perder um dia, mas uma equipe que chegou depois da dele enfrentou chuvas torrenciais. Ele explica que sempre teve consigo manuais de pilotos de companhias aéreas, sempre atualizados, indicando as probabilidades de chuva. Quando seu amigo Francis Coppola anunciou que estava indo filmar Apocalypse Now nas Filipinas, ele foi o único a avisar: “Cuidado, a estação das chuvas lá é de maio a novembro.” Não deu outra. 
 
E ainda assim, ele diz que quando estava filmando histórias de aventuras aéreas o roteiro era dividido em três partes: Dia Azul, Dia Nublado e Dia Qualquer Coisa. E se defende: 
 
Eu tinha sete combates aéreos para filmar, e esses livros eram minha bíblia. Quem foi que disse que as batalhas da I Guerra só ocorriam em dia de sol? Ninguém ficava esperando por uma “luz boa”. Mas eu tinha que manter a consistência num mesmo combate, e usávamos os livros para segurar a continuidade. O Dia Qualquer Coisa era para os combates que começavam com céu azul, digamos, e os aviões voavam para dentro das nuvens. Nunca perdi um dia de filmagem, a não ser quando choveu.
(pág. 173) 



 
Sua esposa desde 1970, Julie Halloran, dizia:
 
Na primeira vez em que saímos para jantar, ele disse: “Estou super-ocupado agora, mas em duas semanas minha vida vai estar sob controle novamente.” E isto tem sido a vida da gente desde então. A única coisa que varia é o período em que ele acha que vai ter a vida sob controle de novo; nunca é menos que uma semana, nem mais do que um mês. Mas ele está sempre super-ocupado. 
(pág. 232)
 
Corman definia seu próprio estilo com precisão, sem modéstia, sem empáfia:
 
Com esses filmes eu consegui reunir alguns dos elementos definitivos do meu estilo: enredos surpreendentes a partir de premissas um tanto macabras; cortes rápidos, câmera fluida e móvel; composição visual usando a profundidade de campo; personagens pouco convencionais, bem esboçados; e boas interpretações do elenco dos “Atores Corman”. 
(pág. 62)
 
Diz-se por aí que cada grande cineasta trouxe para o cinema alguma coisa que só ele poderia ter trazido, e ninguém mais. Corman nunca fez grandes tentativas de adentrar o majestoso salão do Cinema de Arte. Foi sempre o artista de rua que fica entretendo o pessoal da fila, enquanto os portões do Big Show não se abrem, e muitas vezes se torna a lembrança mais vívida que aquele público vai levar para casa ao fim da noite. 




Quando estava se preparando para filmar The Trip (o famoso filme em que Peter Fonda experimenta LSD), Corman decidiu experimentar a droga ele próprio. Ele comenta: “Eu sempre andei com uma turma de malucos, e sempre fui o mais careta da turma”. Ele chamou seus melhores malucos e os levou para um parque, perto de uma cachoeira.
 
Resolvi ficar deitado. E então o ácido bateu. Passei as sete horas seguintes de rosto para baixo, no chão, embaixo de uma árvore, sem me mexer, absorvido pela viagem mais maravilhosa que se pode imaginar. Entre outras coisas, tive ali a certeza de ter inventado uma nova forma de arte. Essa nova forma era o mero ato de pensar e de criar, e ninguém precisaria de livros ou de filmes ou de músicas para comunicá-la; qualquer um poderia simplesmente deitar no chão, em qualquer lugar, de rosto para baixo, e a obra de arte seria transmitida através da Terra, da mente de seu criador diretamente para a mente do público. Até hoje acho que isto poderia funcionar, e seria uma coisa maravilhosa. Pense nos custos que poderíamos economizar somente com produção e distribuição!
(pág. 146)