domingo, 31 de julho de 2016

4141) Nove cidades (31.7.2016)



(foto: "Kowloon", Greg Girard)

Nome: Simsim. População: 500. Descrição: A cidade-espelho orbital onde toda superfície e todo corpo 3D é reiterado ao infinito por nanossatélites reflectivos em movimento constante. Chamada por alguns velhos pilotos do anderespaço “o olho da mosca”. Referências na cultura popular: um ciclo fractal de canções, em forma de cânon, fazendo referências aos “oito milhões de histórias na cidade grande” e potencializando esse número a cada nova história contada.

Nome: Vão-da-Cabra. População: 20 mil. Descrição: Cidade incrustada nas galerias refrescantes da serra escarpada que acompanha um trecho calcinante do deserto. Uma temperatura que é um alívio no verão, e onde no inverno, trocando-se o roteamento dos canais de ventilação e canais exaustores, é possível ter algum conforto bem agasalhado. Num ecopacto que envolvia uns vinte mil seres, tem um sistema de galerias para os humanos, e três sistemas não misturados para diferentes animais domésticos.

Nome: Don Perenna. População: 18.500. Descrição: Vila de casas de adobe num rincão remoto da Espanha, onde ainda se cantam serestas com lutes, onde se cultivam as tradições do Bicho sem Cabeça e da Corrida da Falsa Fuga, onde a população vai para as ruas para improvisar o que irá fazer com prisioneiros subitamente liberados, que pensam que estão fugindo do cárcere.  Tem um alto índice de mortalidade em mesas de bar, tanto por consunção quanto por divergências.

Nome: Skylobrun. População: 11.000. Ilha flutuante e habitada, capaz de corrigir rota, acelerar ou retardar seu deslizamento pelas correntes marítimas. Periodicamente aporta aos continentes para abastecimento. Sua população, por motivos religiosos, é proibida de desembarcar.

Nome: Janka-Myurk. População: 150 mil. A cidade onde todos usam roupa igual, cabelo igual, onde as casas e as posses são de todos, onde cada um trabalha no que quer, dorme onde preferir, come onde tiver vontade. Todo mês chegam à cidade cerca de 50 mil novos habitantes, ardendo de esperanças, e vão embora outros 50 mil, abatidos pelo desespero.

Nome: Anamimbagk. População: 3.200. Aldeia situada em torno da cratera do vulcão Anamim. Todos moram em casas feitas de madeira que precisa ser cortada e trazida de muito longe. O vulcão tem erupções esporádicas em ciclos de dez anos, quando a cidade precisa ser reconstruída e reocupada. Os habitantes recusam-se a morar longe dali, pois veem no vulcão uma divindade que os protege o tempo todo e só de vez em quando se encoleriza.

Nome: Hin-Ker-Midhal. População: Dois milhões. Capital de um império próspero e poderoso. A cidade consta de oito círculos concêntricos sucessivos, sendo o palácio imperial o derradeiro deles. A passagem para cada círculo interno se dá apenas depois de minuciosas investigações sobre as atividades profissionais, a origem familiar e as opiniões políticas do candidato.

Nome: Ambrellis. População: 7 mil. Descrição: A cidade-aqueduto, onde todas as pessoas vivem à sombra de um aqueduto construído milhares de anos atrás por outra civilização. A construção com mais de vinte quilômetros de comprimento, fornece a única sombra possível no deserto de Khytian, o que faz os moradores transferirem suas tendas para a parte com maior extensão de sombra em cada estação do ano.

Nome: Burguenthal-te-Couan. População: 320.  Teve toda sua população dizimada pela guerra há mais de um século, e tornou-se uma cidade corredor-da-morte. Os habitantes atuais descendem todos de alguma das famílias exterminadas, e só eles têm direito de dormir na cidade. Pessoas de fora que durmam lá serão executadas. Para lá são mandados condenados à morte para passar sua última noite, e há casos de suicidas que ali se hospedam voluntariamente, numa média de três por ano.










sexta-feira, 29 de julho de 2016

4140) Deleuze e a ficção científica (29.7.2016)



Ernesto Sábato, em seu livro de ensaios O Escritor e seus Fantasmas, dizia (cito de memória): “Enquanto o mundo for mundo, existirá um homem que se preocupa com o Universo enquanto sua casa pega fogo, e existirá uma mulher que se preocupa com sua casa enquanto o Universo pega fogo”.

A divisão por gênero é meio injusta, como sempre. Nem todo homem é todo homem, nem toda mulher é toda mulher.  Mas não se pode negar que (independente de sexo, cor, classe, nação, etc.)  essas duas mentalidades existem, essa diferença de foco sobre a vida. Todo mundo conhece alguém que é de um jeito, e alguém que é do outro. Eu próprio pertenço a um dos dois grupos: considero-me o síndico do Universo, enquanto a casa vive à matroca.

Existe no YouTube um clip do filósofo Gilles Deleuze (aqui: https://www.youtube.com/watch?v=_Wer1VGBZi8) explicando a uma jornalista, ou a uma aluna, como ele encara os conceitos de esquerda e de direita. Esta discussão, apesar de importante, é uma das mais sujeitas a equívocos do nosso século, porque a esmagadora maioria das pessoas se informou sobre o assunto através de panfletos partidários de um lado ou do outro.

E também porque (atentem para este sintoma!) a maioria dessas pessoas, de ambos os lados, é incapaz de conversar descontraidamente sobre este tema, prestando atenção ao que o interlocutor diz, tentando entender. É algo traumático. Na terceira frase todo mundo já começa a erguer a voz, arquejar, gesticular agressivamente, insultar alguém e a se considerar pessoalmente ofendido por algo que o interlocutor não disse.

Deleuze (de quem nunca li livro nenhum, mas sei que é um filósofo conceituado, que meus amigos citam com frequência), em vez de recorrer a memes partidários, compara as duas mentalidades contrapondo suas diferentes percepções do mundo.

Quem é de direita, diz ele, tem uma percepção do mundo que é como o endereçamento de um envelope. Primeiro vem a pessoa, o indivíduo, que é o centro de tudo. Depois a rua onde ele mora, depois a cidade, depois o país, os demais países...  Ou seja: do particular para o geral, de dentro para fora.

Essa condição (diz ele) faz com que pessoas privilegiadas como os europeus vejam o mundo sempre a partir de si mesmos, tentem fazer o possível para que aquela sua condição de privilégio dure o maior tempo possível.

Por outro lado, quem é de esquerda pensa (ele ressalva que os japoneses pensam assim também), ao considerar um fato importante qualquer, primeiro no “contorno geral”, na humanidade, depois no seu país, depois na cidade onde vive, depois na casa onde mora com sua família. Do geral para o particular, de fora para dentro.

O filósofo parece sugerir que num trajeto ideológico como este, quando o sujeito finalmente começa a pensar em si, nos seus interesses imediatos e específicos, ele já está consciente da existência de todo o resto. Já está imbuído, impregnado, do mundo a que pertence. Ele tem um Himalaia de premissas coletivas. Tem material até demais para comparar e decidir. É alguém que começa a considerar os problemas não pelos seus interesses pessoais e imediatos, mas pela ponta, pela extremidade mais afastada de si. Ser de esquerda (diz ele) é saber que os problemas do 3º. mundo estão mais próximos de nós do que os problemas do nosso bairro.

A mentalidade de direita, segundo esse raciocínio, seria a de quem parte de si e se considera o modelo para todos os outros. O cara escreve um romance interplanetário, mas os seus Zorgwangs de Betelgueuse-18 se comportam exatamente como escritores novaiorquinos bêbados ou como fuzileiros navais em missão. Como diz o jargão da FC:  “É igual ao Kansas, mas com duas luas no céu.” O Eu como medida-padrão do Universo.

O que me chamou a atenção na frase de Deleuze foi porque eu mais de uma vez, sem nem pensar em esquerda ou direita,  comparei a literatura mainstream e a ficção científica exatamente dessa forma.

A FC, para mim, é uma literatura que começa a pensar pelo Universo, depois considera a Terra e a Humanidade como um todo, e percebe a História, os povos, os países, e chega por fim ao aqui e agora de alguém.  Já o mainstream, o romance realista moderno, começa nos neurônios do protagonista, ou no labirinto do seu ego, depois se expande pela sua memória, considera seu corpo, passa daí para a família, a rua, a cidade, etc.

Ver em primeiro lugar o mundo (ou o Sistema Solar) parece normal a quem pensa em termos de FC, mesmo que não a escreva. Ver o mundo à distância, no tempo e no espaço, nos ajuda a ver que a humanidade está durando no planeta o tempo de uma foto, e vai passar.

Esse é o verdadeiro espírito da ficção científica, mesmo que muitos dos seus leitores não pensem assim (pensam na aventura, ou nas maravilhas tecnológicas, ou em outros aspectos secundários). É “científica”, não por exigir conhecimentos matemáticos ou de laboratório, mas porque sua ótica é a da ciência: a tentativa de entender o fenômeno humano no quadro geral do Universo.

Uma comprovação da existência dessas duas mentalidades pode ser feita perguntando a alguém: “O que é mais importante, você ou a Humanidade?” Muitas vezes teremos uma gargalhada de incredulidade diante de uma pergunta com uma resposta tão óbvia, tão única. “Claro que sou eu, ora!...”. “Claro que é a Humanidade, é evidente!...”

Quem pensa em primeiro lugar no Universo, diz: Eu não sou o centro do mundo. Tudo pode ser diferente de mim, ser diferente é normal. O personagem de direita, herdeiro das mitologias monoteístas, da ética monárquica e da mentalidade geocêntrica, pensa em si em primeiro lugar, e diz, na melhor das hipóteses: Tudo deve ser igual a mim, tudo precisa ser feliz do jeito que eu sou, todo mundo precisa ter tudo que eu tenho.

Não sei se, e como, esse arrazoado todo se encaixa nos conceitos tradicionais da esquerda e da direita na política; problema delas. Mas tenho que reconhecer que existem, sim, essas duas maneiras de ver o mundo.

No mesmo clip, o filósofo diz que politicamente não pode existir governo de esquerda, porque ser esquerda é ser sempre oposição, minoria, pressão por objetivos e mudanças, e ser governo é sempre algo de direita, algo em busca de um “padrão” a ser imposto a todos.

O que coincide parcialmente com uma conhecida opinião do crítico Antonio Cândido, segundo o qual a função do socialismo não é na verdade governar os países, é servir de oposição, espectro e espantalho permanente para o capitalismo, não o deixando dormir de noite, expondo suas vísceras obscenas, encurralando-o nas cordas. Todas as concessões trabalhistas e salariais, todas as políticas sociais feitas pelos patrões aos empregados no último século e meio, diz Cândido, são as conquistas reais do socialismo. No interior do capitalismo.

A frase de Ernesto Sábato sobre as prioridades do homem e da mulher e a frase de Gilles Deleuze sobre a percepção da esquerda e da direita nos revelam, de direções diferentes, a existência dessas mentalidades contrapostas mas vizinhas. Muitos outros exemplos podem ser citados. O problema é que essas duas frases que citei recorrem a metáforas contaminadas de emocionalismo e preconceito. Nelas foram introduzidos elementos de ruído. Numa, a sugestão do conflito homem x mulher; na outra, do conflito esquerda x direita. São dois conflitos perigosos de se usar num exemplo, porque a crise interna do exemplo escolhido acaba engolindo a discussão mais geral, Eu x Universo. Que é a mais importante .







quarta-feira, 27 de julho de 2016

4139) Jeitos nordestinenses (27.7.2016)



(ilustração: Bode Gaiato)

A gente fala muito das palavras nordestinas típicas, coisas como oxente, arretado, paidégua, rubacão, alpercata, petisqueiro... Mas existem expressões mais longas, frases-feitas, modos-de-dizer, que são a cara da nossa maneira de falar. Aqui vão mais algumas. Sempre, é claro, com a ressalva de que provavelmente não são exclusividade do Nordeste.  Podem muito bem ser usadas há muito tempo em outras regiões e eu é que estou desinformado. Por outro lado, a TV, o cinema e a internet já estão se encarregando há muitos anos de disseminar nossos regionalismos, e hoje a gente tanto escuta um nordestino dizendo “Ô meu!”, porque acha bacana, quanto um paulistano dizendo “Esse menino!” porque acha bacana também.

Então bora lá.

TEMPO DO RONCA
Tempo antigo, remoto, a perder de memória.  "Ah, isso é coisa do tempo do ronca, ninguém liga mais pra isso não!" 

O "Badalo" é uma terra que tem, aqui em Taperoá, e que só dá doido!  A velha Maria Galdina é de lá, e vive cantando umas modas-antigas, umas cantigas-velhas, do tempo do ronca e de Dom Pedro Cipó-Pau!
(Ariano Suassuna, Romance da Pedra do Reino, Folheto LXXV)

SE FOR BOM É MEU!
Diz-se esta fórmula mágica sempre que duas pessoas pronunciam simultaneamente, por acaso, a mesma palavra no meio da conversa.  É tipicamente uma “simpatia verbal” de moças para adivinhar namoro futuro. Ao soar a palavra, uma delas exclama: “Se for bom é meu!”, aí contam quantas letras tem a palavra, fazem a relação desse número com o alfabeto (1=A, 2=B, etc.), obtendo assim a inicial do provável namorado.

AINDA SE USA
Expressão para cobrar de alguém a utilização de alguma fórmula habitual de polidez.  "Êi, moço!...  Vai entrando assim, sem mais nem menos?  Com-licença ainda se usa!"  "Ôi, e nem me agradece, nem nada?  Muito-obrigado ainda se usa!"

...E DANOU-SE
Complemento habitual para qualquer número impreciso.  Uma espécie de aditivo de quantidade, em expressões como "O pai dele perdeu um milhão e danou-se, na seca do ano passado." 

Bernadete vivia com Djanira, rapaz.  Aquele mulheraço do Grupo Porta-Voz.  Faz teatro, ela.  Tem um metro e danou-se.  Os peitos, ó.  A bunda desse tamanho, e pernas e coxas avassaladoras.
(Ricardo Soares, Nadir, Ed. do Autor, Campina Grande, 1975, pag. 96-97)

Também se usa: "... e bote-força". "Não, não sei a idade dele... acho que tem uns trinta e bote-força. “Fulano ficou de passar lá em casa às dez da manhã, mas quando apareceu já era meio-dia e bote força”. 

SE NÃO FÔR, EU ESTRALE
Usa-se como reforço para uma afirmativa qualquer. É uma variação sobre a forma mais anódina “Se não fôr, eu me dane”.  “Aquilo é Fulano, lá na curva da estrada!  Olha o jeito de andar...  Se não fôr ele, eu estrale!”   Variantes: “Se não fôr, eu pipoque!”  “Se não fôr, eu estoure! [pronúncia: “estóre”]”, "Se não fôr, eu choche!" (pron.: "chóche"]. 

AMARRE O BURRO ONDE O DONO DO BURRO MANDA
Ao executar um serviço para alguém, deve-se obedecer sem discussão às ordens do “cliente”, sem questionar sua validade ou seu propósito.  “Eu sei que tem cerveja gelada, mas me mandaram comprar cerveja quente.  Amarre o burro onde o dono do burro manda.”  R. Magalhães Jr. registra: “Amarrar o burro à vontade do dono” (Dicionário de Provérbios e Curiosidades. São Paulo: Cultrix, 1964 (2ª edição).

CANTAR O COCO
Diz-se da agitação tormentosa de quem sofre uma dor insuportável.  “Foi chupar confeito, e um pedacinho caiu no buraco do dente -- deu-lhe uma dor que ele cantou o coco por mais de uma hora.”

CARA LISA
Cara-de-pau; cara cínica.  “Deixe de cara-lisa, eu tenho certeza de que quem espalhou esse boato foi você.”   “Fulano já me deve dinheiro, e ontem veio pedir mais, com a cara mais lisa desse mundo.”

TRANQUILO E CALMO
Locução adverbial que significa "com certeza absoluta, sem a menor dúvida".  "Pode deixar que eu já falei com o Prefeito, e seu emprego vai sair, tranquilo e calmo".   Às vezes a frase leva a supor que a função é adjetiva: "Não se preocupe não, velho, que a gente vai ganhar esse jogo tranquilo e calmo"; mas a intenção de quem fala não é de prever que o time terá uma vitória tranquila, e sim a de dizer que, por mais difícil ou conturbado que venha a ser o jogo, o time não deixará de ganhar.

TIRAR O CORPO
Ir embora; cair fora.  "Acho melhor a gente tirar o corpo e ir beber noutro canto, está chegando aí uma turma meio barra pesada."   No resto do Brasil, existe o equivalente “tirar o time”.  O imperativo "Tira o corpo!"  tem a mesma função de "Cai fora!".

-- Certo. Tem medo de Nadir, né?  Pronto.  Chegou ela. -- O muito esperado por ambos.  Nadir mostrou-se aborrecida.  Trazia outra cerveja.
-- Eu tava convidando ele pra farinhada na casa do meu cabeludo, Nadir.
-- Tira o corpo, Ivonete. 
(Ricardo Soares, Nadir, pag. 28)

SEU MENOR CRIADO
Expressão de deferência, meio em desuso, quando se oferece os préstimos a uma pessoa de respeito. "Muito prazer, sou Fulano de Tal, seu menor criado".

Quando eu cheguei na fazenda
vi logo um homem deitado
apertou-me a mão e disse
sou um seu menor criado
poeta e cantador
João Barraca, falado.
(Severino Borges da Silva, Peleja de Severino Borges com João Barraca)

Me diga como vai sua distinta família
Como vai aquela jóia que é sua linda filha
Como vai seu filho, tipo do rapaz perfeito
E sua senhora, lhe transmito meu respeito
Amigo velho, foi prazer ter lhe encontrado,
Eis aqui um forte abraço desse seu menor criado
(Rosil Cavalcanti, “Amigo Velho”, gravação de Luiz Gonzaga)






domingo, 24 de julho de 2016

4138) A arte de inventar regras (24.7.2016)



(foto: saite Catraca Livre)

Escrevi aqui, alguns dias atrás, sobre a chamada “poesia marginal”, movimento que no meu entender trouxe uma influência altamente positiva para as nossas letras.

No que me diz respeito como leitor e autor, a poesia marginal trouxe leveza, coloquialismo, humor e irreverência jovem para a poesia, no campo da temática. No campo da técnica, trouxe a fala das ruas para a página impressa, e devia haver um Prêmio Nobel de Literatura de 5 em 5 anos para quem pratica essa façanha, tão difícil quanto levar a Pirâmide de Quéops do Cairo para Paris.

Dito isto, parece até que sou partidário da extinção de elementos como métrica, rima, estrofe, forma fixa. Nada disso.

O verso livre (sem métrica obrigatória) e o verso branco (sem rima) não vieram para substituir os outros, e sim para serem opções a mais.  Uma nova forma de escrever, quando surge, não pretende extinguir as formas anteriores; e, aliás, não consegue.  São as formas que se extinguem a si próprias, quando deixam de ser úteis para quem escreve.  Rima e métrica (acho eu) continuam tão úteis hoje quanto eram há 200 anos ou dois mil anos.

Minha formação pessoal em matéria de poesia são duas escolas extremamente rígidas e exigentes: o Soneto e o Cordel. Perto dessas duas, a poesia aparentemente rigorosa de João Cabral de Melo Neto (por exemplo) é um carnaval de descontração. Daí que quando a “poesia marginal” pipocou por todos os lados, recuperando certas atitudes e certos processos verbais do Modernismo de 1922, isso foi uma água de coco na boca de quem, como eu, estava acostumado ao café-espresso da forma fixa.

Rima e métrica funcionam como algo que não tem (ao que eu saiba) uma palavra específica em português, mas que podemos definir como “restrições voluntárias” ou “regras arbitrárias auto-impostas”.  Em francês há o termo “contrainte” (pronuncia-se “contrant”) e em inglês o equivalente “constraint” (“constréint”). 

Para que serve isto?  Bem, muitas vezes um excesso de liberdade desorienta o artista (principalmente o iniciante), e algum tipo de restrição o ajuda a focalizar sua imaginação. A aparente dificuldade ajuda o poeta (o artista em geral) a concentrar qualidades que um excesso de conforto deixaria dispersas.

É isto que acontece quando estabelecemos que todas as linhas pares de um poema têm que terminar com os mesmos sons.  Ou que cada verso tem que ter um número fixo de sílabas.  Ou que todas as estrofes tem que ter o mesmo número de linhas, arrumadas da mesma maneira.  O poeta principiante, que pensa somente nas próprias emoções e nas próprias idéias, acha que isto é algo feito para prejudicar sua auto-expressão. Mas não é.

A luta do poeta com essas restrições auto-impostas é como a luta de um atleta com o levantamento de pesos numa academia: pra que fazer todo esse esforço, que não serve para nada?  A resposta é: serve para desenvolver os músculos do atleta. Quando falamos de poesia (e suas restrições: rima, métrica, etc.) esse esforço que parece desnecessário é para tornar o poeta mais hábil.  Fazê-lo explorar os limites do seu vocabulário – e do seu bom-senso, porque não basta encontrar uma palavra que rime com outra, é preciso que esta palavra dê a impressão de que entrou ali pelo seu sentido, e não pelo seu som. 

Do mesmo modo, o esforço para encaixar as idéias num metro, num ritmo, numa cadência, faz com que o poeta apure seu senso de ritmo, sua percepção de sutilezas.  Ele se torna capaz de produzir uma poesia mais leve, mais flexível, mais fluente, que não dê aquela impressão que nos dão os poemas mal feitos: a de uma coisa involuntariamente desconjuntada, sem jeito, cheia de solavancos. 

Num livro fundamental sobre tradução literária e linguagem, Le Ton Beau de Marot (Basic Books, 1997), Douglas R. Hofstadter diz: 

“Se você seleciona com habilidade o material de que vai precisar a fim de satisfazer as regras e restrições que você se impôs, vai dar a impressão de que está controlando o seu meio de expressão, em vez de estar sendo controlado por ele.  É um pouco o que ocorre com as grandes patinadoras no gelo.   A patinadora se identifica a tal ponto com as restrições e impossibilidades no seu trabalho que na hora da apresentação os seus movimentos dão a idéia de que ela está mostrando ao gelo ‘quem é que manda ali’ – quando na verdade sabemos que é o contrário.  A verdade é que, ao longo dos anos, quem manda ali é o gelo, até que o gelo a treinou tão bem que ela agora sabe o que deve evitar, e sabe o que fazer a fim de dar a uma platéia de pessoas leigas a impressão de que ela ‘faz ali o que bem entende’.  É preciso um longo aprendizado, dentro de um conjunto de regras e restrições, para que possa vir a ocorrer essa aparente inversão de comando”.

O poeta Tom Lehrer disse a Hofstadter: “Parece aos outros uma grande habilidade do poeta, mas ele apenas foi forçado a regiões inesperadas do espaço semântico (ou seja, o espaço de todas as idéias possíveis) por causa da rima, que é uma restrição auto-imposta”.  Em outras palavras, Lehrer diz que acaba pensando em imagens que jamais lhe ocorreriam se ele não tivesse a obrigação de rimar as linhas umas com as outras. 

Robert McKee, em seu manual Story – Substância, estrutura, estilo e os princípios da escrita de roteiro (Arte e Letra, 2006), diz o mesmo das aparentes limitações dos gêneros cinematográficos, e escolhe a poesia para dar um bom exemplo:

“Robert Frost disse que escrever verso livre é como jogar tênis sem a rede, porque quem mais estimula a imaginação são as convenções poéticas, que não passam de restrições artificiais e auto-impostas.  Digamos que um poeta decide escrever estrofes de seis linhas, rimando as linhas pares.  Depois de escrever a quarta linha, que já rimou com a segunda, ele se vê meio encurralado.  Precisa rimar a sexta linha com a segunda e a quarta, e o esforço para fazer isto talvez o inspire a imaginar uma palavra que não tem qualquer relação com o seu poema – ela apenas rima – mas essa palavra aleatória acaba gerando uma frase que produz uma imagem mental vívida, uma imagem que repercute nas cinco linhas anteriores, produzindo um novo significado, um novo sentimento, mudando o rumo do poema e lhe trazendo mais sentido, mais emoção.  Graças a essa limitação auto-imposta, o poema acaba alcançando uma intensidade que nunca teria atingido se ele pudesse usar qualquer palavra que lhe conviesse.  (...) O princípio da Limitação Criativa produz liberdade dentro de um círculo de obstáculos”. 

Cada poeta recomeça a poesia do Grau Zero. Cada poeta tem pelo menos uns cinco mil anos de experiências alheias para usar como lhe der na telha. Se ele não gosta de linguagem descontraída e de poemas-piadas, tudo bem, ninguém o está obrigando a escrever assim. Se não gosta de odes pindáricas ou de epigramas, tudo bem, não precisa escrever. Eu não escrevo sextilhas por que alguém me obriga, e sim porque acho a forma bonita, domino meia dúzia de truques relativos a ela, e ela me serve muitíssimo bem para produzir pequenos impactos poéticos no leitor.

O poema é seu. A regra é sua, a ausência de regras (se é disso que você gosta) também. A tradição existe como música inspiradora, não como obrigação. (A “poesia marginal” também já é uma tradição, entre tantas outras.)









sexta-feira, 22 de julho de 2016

4137) Sherlock e as cifras (22.7.2016)



Na sequência inicial do romance O Vale do Medo (que li como O Vale do Terror, numa tradução atribuída a Álvaro Pinto de Aguiar), Sherlock Holmes exibe a Watson uma mensagem criptografada que recebeu de um trânsfuga da quadrilha do Professor Moriarty. O sujeito chama-se Porlock e está tentando repassar uma mensagem a Holmes antes que o Professor desconfie da traição.

Holmes executa aqueles saltos acrobáticos de raciocínio que arrebatam tanto Watson quanto o leitor, mas que dependem sempre de uma suposição ousada do detetive que, ao ser confirmada, vejam só, era exatamente o que ele precisava para que desse tudo certo. Conan Doyle era engenhoso, mas não tão engenhoso quanto seus sucessores no gênero. Era escritor também de romances de aventuras, e Holmes era teatral e prestidigitador também, porque não dava para ser cerebralmente dedutivo todas as vezes.

Holmes mostra a Watson os números rabiscados numa tira de papel que ele extrai de um envelope. Referem-se a páginas e a palavras, diz ele; e rapidamente chegam a um Almanaque onde basta seguir uma numeração indicando página, palavra, coluna, etc. Copiando palavra por palavra, eles reconstituem o recado. ( O seriado de TV Sherlock, com Benedict Cumberbatch no papel título, usou esse código no episódio The Blind Banker, 2010.)

A certa altura da mensagem aparecem ao invés de números palavras, dois nomes próprios, um deles repetido. “Eram palavras que não seria possível encontrar no almanaque utilizado, e ele precisou escrevê-las” diz Holmes. Talvez esse pequeno deslize criptográfico tenha ajudado a desencadear a violenta história que envolvia o passado nebuloso de um tal Sr. Douglas, o senhor da mansão Birlstone.

Salta para 2016. Cory Doctorow (do saite BoingBoing) comentou, numa entrevista, o fato recente de que quando Edward Snowden foi entrevistado num local secreto pela jornalista Laura Poitras, foi registrada uma imagem de um livro de Doctorow, Homeland, entre o pertences pessoais de Snowden. O escritor disse que o livro foi entregue a Snowden pela própria jornalista. O objetivo dos dois era usar um livro para se comunicar com códigos numéricos desse tipo (livro tal, página tal, linha tal, palavra tal), onde é preciso saber que chave (que livro) está sendo utilizada. E como a conversa iria envolver termos técnicos com certa frequência, precisavam de um livro onde essas palavras pudessem ser encontradas facilmente.

Como organizar um código assim, e ser mais esperto do que Sherlock Holmes em pessoa? Duas cópias idênticas de um mesmo livro garantiriam exatidão absoluta. Dá pra tecer muitas variações dramatúrgicas. É possível ter dois livros que pareçam idênticos mas não o sejam; ou o contrário.  É possível também que sejam muito diferentes um do outro (duas antologias de poemas, p. ex.) mas coincidam num número mediano de páginas que são gêmeas, e é lá que se faz o código. Alguns romances recentes usaram variações disto. O Clube Dumas, de Arturo Pérez-Reverte, tem uma subtrama de código envolvendo ilustrações de livros raros.

O código mais bem sucedido de Conan Doyle, no entanto, tinha sido alcançado em 1903 com “The dancing men”, o conto com as famosas fileiras de bonequinhos em diferentes posições, rabiscados a giz, formando um código cujo arrazoado de decifração vai na mesma linha de O Escaravelho de Ouro (1843) de Edgar Allan Poe, o mestre que ele reverenciava.  O criptograma de Poe consistia em letras, números e sinais gráficos comuns. O conto de Doyle ganhou uma marca visual muito forte com o uso dos bonequinhos.  E é um dos melhores de todo o cânone.

Não sei até que ponto era familiar a Conan Doyle o conto do seu rival francês Maurice Leblanc, o criador de Arsène Lupin, porque em 1911 Lupin decifrava “O enigma dos raios solares” (Les jeux du soleil), contando quantas vezes, sucessivamente, um reflexo do sol era projetado de uma janela. Depois de anotada a lista de números, havia um pequeno anticlímax quando Arsène Lupin indicava ao narrador que considerasse 1=A, 2=B, 3=C e assim por diante.

As “histórias de códigos e de cifras” são um nicho específico da literatura detetivesca, mas são também uma espécie de gênero transversal, que pode estar presente em diferentes gêneros: espionagem, guerra, policial, aventura, terror. É qualquer história onde haja um código a ser decifrado por algum personagem, às vezes em conjunto com o leitor.

Voltando à The Valley of Fear, um romance de 1915, a lista de números anotada pelo delator Porlock para Holmes até que podia chamar a atenção e a desconfiança de alguém. Códigos mais sutis são disfarçados em ações anódinas. Um especialista nisto é Rand, um agente do serviço secreto que nos contos de Edward D. Hoch consegue ser mais esperto do que os espiões mais escorregadios. A mensagem subjacente a todos os contos envolvendo Rand é que qualquer série ordenada (e fielmente memorizada por pelo menos duas pessoas) pode servir de encriptação para as letras e os números que usamos para comunicar informações.

Robert Heinlein tem um conto onde aparecem dois presos numa cela. Estão sendo vigiados, em som e áudio, dia e noite, mas o preso mais antigo tinha consigo um baralho. O alfabeto inglês tem 26 letras. Um baralho tem 52 cartas. Valendo-se dessa coincidência, os dois atribuem valores, fingem jogar paciência e trocam mensagens de texto um com o outro, mesmo submetidos a um cerrado Big Brother orwelliano 24 horas por dia.

O Rand de E. D. Hoch é um macaco velho do Serviço Secreto, aquele cara que já viu tudo, mas cada história lhe revela uma novidade. Há um conto em que uma moça do escritório, agente dupla, está vazando informações preciosas para o inimigo. Rand manda examinar tudo dela, em casa, no trabalho, nada encontra. Segue-a pela cidade, por todos os bares que a moça frequenta. Ela conversa, bebe, fuma, ri, diverte-se inocentemente e Rand, a três mesas dali, vigia, vigia, e nada percebe. Até que pensa um dia: “Ela fuma o tempo todo.”  A moça soprava fumaça para a esquerda, para o alto, em jatos longos, em pequenas explosões de fumaça... “O outro cara a seguia de longe, mas podia vê-la sempre, e ela ficava mandando sinais de fumaça”, diz Rand, fechando a pasta do caso.

Há um código especial muito explorado por Ellery Queen: a vítima, depois de ser ferida ou alvejada, e depois do criminoso ter ido embora, ainda tem forças para um último gesto para denunciar quem a matou. Precisa ser algo que indique de maneira clara “Fulano”. Mas não pode ser algo como um nome escrito na areia, porque se Fulano voltar vai apagá-lo depressa. Tem que ser um gesto denunciando o criminoso, mas um gesto que o próprio criminoso não entendesse, nem a polícia. Quem acaba entendendo é Ellery Queen, numa série de deduções miraculosas.

Seria interessante uma história de espionagem onde uma mesma mensagem admitisse duas decifrações diferentes, mas possíveis de justificar, como certas provas de teoremas matemáticos. A série de números, lida com a chave X, diria: “dez encouraçados, cinco torpedeiros, um portaviões, latitude tal, longidude tal”, e decifrada de acordo com outro código os mesmos números estariam dizendo: “há dois agentes russos no Parlamento, três no Almirantado, quatro na Câmara dos Comuns”.






quarta-feira, 20 de julho de 2016

4136) A poesia intraduzível (20.7.2016)



Eu estava passeando pelo Templo de Delfos (http://www.elfikurten.com.br/2015/06/bertolt-brecht.html) quando me deparei com uns versos de Bertolt Brecht que eu tinha lido na idade certa. “Aos que virão” ou “Aos que virão depois de nós”, um longo poema sobre os tempos difíceis em que viveu, e que no caso de Brecht não foram poucos.  

Brecht é um grande poeta, tão grande que até seus poemas políticos são belos poemas (danem-se as exceções). Talvez o elogio de uma ideologia política, de uma religião, de uma bandeira social específica sirva de entrave ou de camisa-de-força para muitos poetas. Para outros, não.

É natural. Há talentos tão transbordantes de poesia que a derramam até nos mais inviáveis recipientes. Os poemas políticos de Brecht talvez tenham sido mais políticos do que hoje, na época em que surgiram, mas para nós valem hoje pelo que têm de poético. Há muitos belos poemas políticos dentro da obra de Carlos Drummond, de Pablo Neruda, de Cecilia Meireles, de Vladimir Maiakóvski, de Bob Dylan.

Brecht, para mim, foi acima de tudo um daqueles socialistas sinceros que nunca acertaram o pé pelo tambor autoritário. Caminhavam sempre numa zona de paixão personalíssima por um certo ideal de igualdade, e em tensão constante com qualquer regime vigente. Como Maiakóvski, como Eisenstein, como Tarkóvski. Dizer que não merecem ser lidos ou assistidos porque são esquerdistas é como não ouvir Bach porque era protestante, ou não ler Rimbaud por ter virado traficante de escravos. Qualquer um deles podia querer ser qualquer coisa. A arte, quando tem, transborda.

Um ponto forte da poesia de Brecht é o modo como ele usa pequenos sofismas filosóficos ou pequenas mudanças de ponto de vista que puxam o tapete do leitor. O chamado distanciamento brechtiano é muitas vezes um ângulo novo de uma história muito conhecida. Ele gosta também de parábolas, koans, microhistórias, canções bíblicas, sentenciosas, onde ele superpõe pequenas metáforas do mundo dos seres vivos e dos objetos à nossa volta. Nesse sentido, seu verso tem uma cadência mais bíblica do que a de muitos poetas cristãos. É a voz bíblica do Eclesiastes, dos Provérbios, dos Salmos, do Livro da Sabedoria. É bíblico quando produz parábolas de quatro ou de seis linhas, em estruturas bem nítidas. É bíblico como Leonard Cohen.

E vejam só, eu aqui deitando e rolando, e a verdade é que nunca li Bertolt Brecht, porque meu alemão não resolve nem as manchetes dos jornais. Só li as traduções dos poemas dele. Primeiro em português, português-de-Portugal e espanhol. Depois em francês e inglês, em muitas antologias, coletâneas, etc. Meu semestre de alemão no Instituto Goethe da Bahia me ensinou um básico muito útil, mas eu não sei se reconheceria aqueles versos que tanto reli, se visse uma estrofe como esta:

In die Städte kam ich zur Zeit der Unordnung

Als da Hunger herrschte.

Unter die Menschen kam ich zu der Zeit des Aufruhrs

Und ich empörte mich mit ihnen.

So verging meine Zeit

Die auf Erden mir gegeben war. (...)

No estado atual dos meus estudos, se lesse isso sem qualquer pista do que era, eu saberia que Städte é cidade, Zeit é tempo, Hunger é fome mesmo, e ficaria em dúvida sobre Erden, mas pensaria se era o mesmo que Earth. Com esses elementos, eu poderia até lembrar do poema de Brecht. Mas a prova final estaria na melodia, na cadência sonora das palavras do poema, aquilo que eu chamo o murmúrio, a toada subjacente, a presença sonora daquilo tudo.


A cidade, o tempo, o não sei o quê, a fome. Os homens, o tempo, alguma coisa séria entre eu e eles. Alguma coisa sobre o tempo, sobre a terra, e um não sei quê final. Um conteúdo assim, derramado nessa ordem, acabaria acordando minha memória, que diria, estremunhada: “aquele poema-textão de Brecht sobre anos de chumbo, Aos Vindouros ou coisa parecida”.

Lá em Delfos os versos aparecem em traduções de Paulo César de Souza e de Manuel Bandeira. Depois, remexi nas minhas estantes e localizei a mais antiga que eu lembrava, de Fernando Peixoto.

Primeiro, a tradução de Paulo César de Souza para esse trecho:

À cidade cheguei em tempo de desordem
quando reinava a fome.
Entre os homens cheguei em tempo de tumulto
e me revoltei junto com eles.
Assim passou o tempo
que sobre a terra me foi dado. (...)

(Digressão: No texto acima tomei apenas uma liberdade: iniciei os versos com letras minúsculas, seguindo o fluxo do texto em si. É dessa maneira que prefiro alinhar o que escrevo ou transcrevo. No original, todas as linhas começam com maiúsculas. Os editores-de-texto de hoje oferecem isso como primeira opção, acho. Mas eu prefiro quando o texto é pontuado como se fosse de prosa, sem levar em conta as quebras de linha; ele dá a impressão de um líquido derramado num recipiente e se acomodando bem direitinho.)

Esses versos de Brecht, curiosamente, têm uma cadência de sextilha. Não estou falando das sextilhas de três dísticos do cantador nordestino ou da Bíblia, mas a sextilha melódica do blues. Tal como nesses blues, a terceira e a quarta linha desse trecho são variações simétricas das linhas 1 e 2; e as duas linhas finais têm uma melodia diferente dessa. Não seria nada difícil verter uma estrofe assim para o inglês (ressalvando que as linhas não rimam entre si).

Falei estrofe mas esse trecho é o início da parte II do referido poema. Tal como Drummond ou Bandeira, Brecht incrustava trechinhos rimados e metrificados no meio de um texto cheio de linhas longas e linhas curtas. O verso visto de longe parece totalmente livre, mas ali dentro há muitos trechinhos de métrica repetida, impecáveis.

Na tradução acima, não se pode pedir melhor junção de um verso de doze sílabas seguido por um de seis sílabas. Para mim, como leitor champoliônico, mesmo que essa contagem 12/6 não seja a mesma em alemão, o tradutor manteve a relação verso longo / verso curto. Porque a natureza de certos tipos de poema requer que esses tamanhos se alternem, e às vezes o tradutor, a bem da compreensão, mexe nas frases e a linha que era grande fica pequena ou vice-versa. Isso para mim, como leitor, é mais incômodo do que ver um decassílabo ser traduzido com 9, com 11, com 12. Se tiver o peso do verso original, que diferença faz uma ou duas sílabas?

A tradução de PCdS segue a cadência, o murmúrio poético do original. Isso é mais fácil de seguir, de certo modo, quando o poeta usa quaisquer formas fixas de estrofe, formas recorrentes (dísticos, tercetos, quadras, sextilhas, etc.).

Além da extensão relativa das linhas, outra coisa importante, que pesa ainda mais na tradução da poesia, é tentar dar às palavras o mesmo peso que têm no original – abrindo ou fechando uma frase, p. ex.  Se isso no original corresponde a mais impacto, se dá um sentido adicional ao texto, é bom que se mantenha, embora nem sempre dê. Uma coisa que eu talvez mexesse seria a ordem proposta por PCdS. Em vez de “À cidade cheguei em tempo de desordem” (um dodecassílabo de que meu ouvido divide em segmentos assim: 3-3-2-4), eu seria menos fiel ao original, inverteria os termos e poderia dizer também: “Eu cheguei à cidade em tempos de desordem”, de cadência equivalente.

Eu botaria esse “tempos” assim mesmo, no plural. Me dá a idéia de tempos muito interessantes, diversos, contraditórios, plurais. (E porque o ouvido me lembra que em nordestinense esse uso, quando no singular, tem outra conotação, quando dizemos: “Não me provoque não que eu estou em tempo de explodir”, “Ele está em tempo de enfartar porque não consegue resolver esse problema”, etc.  É um equivalente nosso ao “a ponto de”.)

Na página aparecia outra tradução, olha de quem, Manuel Bandeira. Fui direto ao começo da Parte II do poema. Eis a versão bandeirana da coisa (com texto minusculado onde cabe):

Para as cidades vim em tempos de desordem,
quando reinava a fome.
Misturei-me aos homens em tempos turbulentos
e indignei-me com eles.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra. (...)

A cadência da primeira linha, neste caso, eu leio como 4-2-2-4. A segunda linha, em ambos, está igual, com seis sílabas e acentuação 4-2. (É engano meu ou o verso original alemão só tem cinco, mais uma átona que não conta?) Veja-se que Paulo César de Souza manteve nas linhas 1 e 3, as linhas longas, a mesma cadência 3-3-2-4: “À cidade cheguei em tempo de desordem”, “Entre os homens cheguei em tempo de tumulto”. Para mim basta esta repetição de cadência para tornar o verso sonoramente verossímil, mesmo (repito) que a contagem das sílabas em português seja diferente do que tem no alemão.

As duas linhas finais deste trecho precisam ser bem escolhidas, porque elas se repetirão pelo menos duas vezes nessa mesma estrofe. Quando Brecht diz “Assim passou o tempo / que me foi concedido na terra”, ele eleva o tom, mesmo usando palavras simples. Eleva porque em vez de descrever situações concretas, datadas, ele está falando meio filosoficamente, é quase um acerto de contas com a vida. Tem que ter o tom bíblico, mais eclesiástico do que escolástico, mais sentencioso do que retórico. ‘Cause the times, they are a-changing.

Os versos de PCdS são um de seis sílabas (cadência 2-4) e um de oito (4-4). Manuel Bandeira diz: “Assim passou o tempo / que me foi concedido na terra”. O primeiro verso é igual ao de PCdS, mas o segundo tem nove sílabas, com cadência 3-3-3, mais uma átona, “...ra”, que não conta. (Mais uma vez: posso estar pronunciando errado, mas em princípio o verso original alemão também tem nove, com cadência 3-2-4.)

Comparando as duas versões, percebi que nenhuma das duas era a que me vinha mais espontaneamente à memória. Essa era uma terceira: a da minha primeira e mais constante leitura, visto que tenho o livro comigo até hoje: Brecht – Vida e Obra (Rio, José Álvaro Editor / Paz e Terra, 1974, 2ª. edição),  de Fernando Peixoto, e o poema (provavelmente traduzido pelo próprio), aparece como Aos que virão depois de nós, no final, nas páginas 347-348.

Eis a tradução de Fernando Peixoto (minusculada ao meu modo):

Eu vim para a cidade no tempo da desordem,
quando a fome reinava.
Eu vim para o  convívio dos homens no tempo da revolta
e me revoltei ao lado deles.
Assim se passou o tempo
que me foi dado viver sobre a terra.

Eu vejo algo de teatral nesse “Eu” que encabeça triunfante os dois dísticos iniciais. Muito mais forte, muito mais energético, do que “À cidade cheguei...”...  “Para as cidades vim...”. Para quem imprime o texto na página pode parecer prescindível, mas não imagino um ator, mesmo um ator brechtiano, que abrisse mão de iniciar uma frase de impacto com um monossílabo tão augusto. A página pode ser sutil, mas a presença física da voz do ator precisa se impor com as armas que tem. A palavra “eu”, em alto e bom som, é uma delas. Não deve ser malbaratada, mas precisa estar sempre a postos.

A tradução de FP me parece (talvez pelo vêzo de saber que ele é diretor de teatro) a menos preocupada com exatidão métrica e mais atenta para a emissão física pela voz de alguém. (Praticamente todo poema de Brecht era assim, mesmo os que não eram poema-de-peça, os que eram poemas-para-publicar.)  Seus primeiro e terceiro versos têm treze e dezesseis sílabas respectivamente, mas só percebemos isto quando os checamos de encontro ao original ou às outras traduções. Em si e por si, são versos longos que podem ser escandidos com vigor sem se diluir no meio do caminho: “Eu vim / para o convívio dos homens / no tempo da revolta”.

Comparando versões assim sempre podemos achar que uma tradução é mais fiel à linguagem, outra é mais bonita, outra mais próxima ao conteúdo, outra reproduz melhor as cadências semiaudíveis. E tudo isto vai produzindo em nossa imaginação uma espécie de ilusão, de fantasia: a fantasia de que lemos as frases escritas por Brecht num idioma que desconhecemos.


(Para mim, e acho que para a maioria dos leitores, isso forçosamente relativiza nossa apreciação dos poemas japoneses de Bashô, dos poemas médio-ingleses de Chaucer, dos poemas russos de Pushkin, dos poemas persas de Omar Khayam, e assim por diante.) 





domingo, 17 de julho de 2016

4135) "Submissão" de Michel Houellebecq (17.7.2016)




Este romance foi lançado na semana do atentado ao “Charlie Hebdo” em Paris, quando vários desenhistas foram assassinados por fanáticos jihadistas. (É esta a versão vigente na época em que escrevo; sei lá o que já terão descoberto sobre esse fato daqui a 50 anos.)  

Houve uma certa saia justa, porque podia ser até o livro certo, mas era na hora errada. Numa hora em que o Islã, ou pelo menos uma parte ruidosa e pungitiva do Islã, praticava uma carnificina, ninguém que tivesse lido ou tomado conhecimento deste livro deixaria de ligar as duas coisas, sabe-se lá com quantas arrobas de preconceito.

Soumission (2015) saiu no Brasil pela Alfaguara, com tradução de Rosa Freire d’Aguiar. É quase uma ficção científica, um romance de antecipação ambientado no ano de 2022, num futuro-próximo em que um candidato muçulmano se elege presidente da França. 

Ben Abbes, o candidato da Fraternidade Muçulmana, vai para o segundo turno contra um candidato de direita, e com isso consegue o apoio da esquerda, e se elege. A França adere ao véu, ao Corão, iniciando um movimento de islamização da Europa.  Alguns personagens anunciam a substituição de uma civilização decadente por outra em ascensão.

Foi estranho estar lendo este livro justamente agora. Comprei por acaso, na calçada, e já estava mais ou menos na metade quando ocorreu o atentado que matou dezenas de pessoas em Nice (e que ainda não se sabe se foi atentado jihadista ou gesto pessoal de loucura). E depois a tentativa de golpe contra o presidente da Turquia, uma história ainda confusa no momento em que escrevo, mas onde houve um componente de atrito entre presidente islamizador e forças armadas “laicas”.

Não tinha lido outras coisas de Michel Houellebecq, que conheço apenas das entrevistas onde ele parece ser um excêntrico, desbocado, cheio de opiniões idiossincráticas, vasta erudição e verve verbal temível. O livro tem tudo isso. Ele também é meio chegado a temas de FC, provavelmente pertence àquela geração de intelectuais franceses que há 40 anos estavam lendo traduções de Philip K. Dick.

O narrador, François, é um professor da Sorbonne, solteirão, sem família alguma, que vive da fama dos seus trabalhos sobre a obra de J.-K. Huysmans, o autor decadentista de À Rebours (1884), Là-Bas (1891) e outros. 

François narra sua rotina, seus namoros com as alunas, suas saídas com garotas de programa, sua frustração profissional, etc., aquela tradicional crise da meia-idade do personagem do mainstream literário do Ocidente. Tudo se encaminha para mais um romance existencialista-realista-parisiense, mas chegam as eleições e Ben Abbas sobe ao poder. 

É uma guinada philipkdickiana na História, e François, a França, os franceses, todo mundo é jogado para uma realidade paralela.

Em momento algum (preciso reconhecer) Houellebecq faz uso de algum tipo de jargão, figura narrativa ou clichê da FC; também não dá aquelas piscadelas cúmplices para certo grupo de leitores de gênero (“prestem atenção neste nome próprio, é para mostrar que eu já li Fulano”). 

Seu livro é para os franceses seus contemporâneos. Pelo uso maciço de personalidades reais (políticos, pessoas da mídia, etc.) deve ser uma leitura divertida onde podemos ver políticos de verdade enredados, mesmo que à distância, numa realidade meio fantástica.

Digo meio à distância porque o narrador de Houellebecq só fala de si mesmo, é um simpático e patético poço de solipsismo. Ele só fala dos próprios problemas, mesmo sendo uma testemunha viva de um momento histórico mais importante do que, por exemplo, a Passagem do Milênio. 

É o Retorno do Reprimido, de certo modo. O refluxo dos colonizados, como uma flecha no coração do colonizador. A Europa invadida pelo Oriente; não pelos seus exércitos, mas pelos seus estudantes, pelos seus profissionais do subemprego, pelos seus carregadores do piano alheio, pelos seus biscateiros e pelos seus operários-padrão, pelos seus refugiados de guerra. 

Um exército que invade em paz. Invade querendo agradar a cidade invadida. Invade não num movimento bélico, mas numa onda geopolítica somada a um vagalhão demográfico. Não é o “uh-tererê!” da guerra.  É o tsunami silencioso dos tempos daquilo que chamamos paz.

E vejam só, na França islamizada-do-dia-para-a-noite de Submissão ninguém pega em armas, os mosqueteiros do rei não saem à rua, os filhos da pátria não formam seus batalhões, a guilhotina não fica fazendo traco-traco até o dia amanhecer. A França de Houellebecq parece aceitar passivamente essa troca de civilizações, quase como se estivesse cansada de ser o centro do mundo. (Sim, a França pensa que é o centro do mundo, e quem pode censurá-la por isso?)  Quase como se a submissão fosse o relaxamento final de uma tensão custosamente mantida; como se entregar-se ao inimigo trouxesse ainda mais prazer do que lutar contra ele.

E no entanto o livro continua a ser um romance existencialista. O leitor com perfil FC ou de romance histórico fica querendo saber o papel dos EUA e da Rússia nesse cataclismo, saber o delicado balanço político de potências vizinhas como Inglaterra, Alemanha, sei lá... Nada. Sabemos pouco do que acontece fora do quarto-e-sala de François.  Do que acontece fora da cabeça de François. 

Ele se deixa progressivamente atrair para o Islã, cuja Sorbonne privatizada lhe promete um salário três vezes maior e o direito a casamento poligâmico. Quem hesitaria? Diante de uma oferta dessas proporções, a França de Houellebecq não hesita, parece entregar-se de graça e sem luta, deixa-se tomar pelo inimigo, descobre na última frase que ama o Grande Irmão.







sexta-feira, 15 de julho de 2016

4134) Os leitores de Edgar Wallace (15.7.2016)





Quando li pela primeira vez o Romance da Pedra do Reino, de Ariano Suassuna, por volta de 1972, um parágrafo me chamou a atenção. Um dos mistérios mais intrigantes do livro é o assassinato do tio de Quaderna, o narrador da história. Dom Pedro Sebastião é morto numa pequena torre sem acesso externo e com a única porta de acesso interno trancada por dentro, além de pessoas permanentemente ali, na base da torre e em volta dela. O fidalgo aparece apunhalado. Quem o apunhalou? Como entrou, e como conseguiu sair?

Esse é o enigma clássico de quarto fechado, ou crime impossível. É o subgênero que inaugurou o moderno romance detetivesco, porque “Os Assassinatos da Rua Morgue”, com que Edgar Allan Poe de certo modo criou o gênero em 1841, é o enigma de duas mulheres mortas num apartamento todo trancado por dentro. Como se evadiu o criminoso?

John Dickson Carr e Clayton Rawson são dois grandes prestidigitadores literários, especialistas nesse número. O locked-room mystery vai de uma precisão enxadrística até uma mirabolância barroca na invenção de métodos cada vez mais requintados de cometer um crime fisicamente impossível. E no entanto não há limite para a engenhosidade de discípulos de Doyle, Christie, Queen, Freeman, Van Dine, Edgar Wallace.

Comentando a morte brutal do seu padrinho sertanejo, no interrogatório a que é submetido pelo Juiz Corregedor que investiga o caso, diz Quaderna:

- O fato foi verificado no processo, Excelência: não havia indício nenhum! Eu não já lhe disse que isto aqui é um enigma sério, um enigma de gênio, um enigma brasileiro, sertanejo e epopéico? Ora, indício! Com indício é canja, qualquer decifrador estrangeiro decifra! No caso, não havia nada: nem vela dobrada, nem disco mortífero, nem botões de camisa, nem abotoaduras de ouro, nem fios de cabelo, nem alfinete novo, nem nada dessas outras coisas que costumam fornecer pistas aos decifradores dos ridículos enigmas estrangeiros!

Em momentos assim, Quaderna é uma espécie de Policarpo Quaresma com recursos de João Grilo para não se levar demasiado a sério. Nessa lista de Quaderna há pelo menos dois enigmas clássicos do crime de quarto fechado; é o autor pedindo a bênção a suas leituras de meninice e juventude.

Ariano se refere a dois romances do inglês Edgar Wallace, um dos maiores produtores e vendedores de romance policial da História: A Pista do Alfinete Novo (ou Na Pista...) e A Pista da Vela Dobrada. Em cada um deles, o objeto citado no título é encontrado na cena do crime e cabe ao detetive demonstrar como, por meio desse objeto, o criminoso conseguiu sair e, do lado de fora, trancar a porta por dentro, mediante cordões, mecanismos, etc.

Wallace foi fartamente traduzido em edições populares no Brasil. Uma busca superficial na web mostra livros seus pelas editoras Globo, Cultrix, Ediouro, Francisco Alves, Civilização Brasileira e Itatiaia.

Uma série importante de romances seus saiu pela antiga Coleção Amarela, da Editora Globo (de Porto Alegre). Publicada entre 1931 e 1956, a coleção publicou um total de 35 livros de Wallace, entre os quais esses dois romances. O Na Pista do Alfinete Novo saiu em 1936, e foi relançado (como A Pista do Alfinete Novo) em 1956; e A Pista da Vela Dobrada saiu em 1939. Ariano, morando no Recife a partir de 1934, pegando livros e revistas dos irmãos mais velhos, teve acesso à coleção, que coincide com um dos bons momentos da editora.

Sergio Karam fez uma pesquisa detalhada sobre a Coleção Amarela, que pode ser acessada aqui, no blog organizado por Denise Bottmann: http://colecaoamarela.blogspot.com.br/2016/07/apresentacao_10.html. Dá para pesquisar ou apenas para banhar os olhos nas reproduções das capas.

Ariano Suassuna gostava de romances policiais, e ao ser perguntado sobre Wallace confirmou lembrar desses dois livros. Além de outro: Os Olhos Velados de Londres, “a história de um criminoso cego”, dizia ele.

De fato: se a Vela Dobrada é o número 83 da coleção, os Olhos Velados é o 84, logo a seguir. Os dois são de 1939. Este terceiro romance eu não li na época, mas dos cerca de 150 livros da Coleção Amarela eu tive e li pelo menos um terço, antes dos 18 anos. Todo mundo leu Edgar Wallace. Até Virgolino Lampião tem uma foto famosa, feita por Benjamin Abrahão, lendo um romance dele.

Havia influência de Wallace no livro de Ariano? Não diretamente; o quarto fechado entra ali como entra João Melchíades ou como entra Castro Alves ou como entra um romance ibérico. É o caldeirão da memória fabulatória, a lembrança das histórias fantásticas, das viagens extraordinárias, dos indecifráveis mistérios.

Dom Pedro Dinis Quaderna, o herói narrador, não é um detetive convencional no Romance da Pedra do Reino. (Na minha opinião, ele é um dos principais suspeitos do tal crime.) Ele tem, no entanto, no seu jeito mercurial de ser, algo de matador de charadas, de enfrentador de grifos e de logogrifos, de xereta da vida alheia, de maquinador, e de poeta meio alucinado prontinho para ser trespassado por uma epifania. Ele quer decifrar o mistério do mundo, esta Onça Parda e Piolhenta.  

Ele pode não ter muito cacoete de detetive clássico, mas se diz, orgulhosamente: “Quaderna, o Decifrador”. Talvez essa fórmula seja até um eco do “Quaresma, Decifrador” mencionado a certa altura dos Contos de Raciocínio, as incursões de Fernando Pessoa neste nobre gênero literário.








terça-feira, 12 de julho de 2016

4133) Como começar um conto (12.7.2016)



(foto: Leszek Bujnowski)

Muitos eventos literários têm como vantagem adicional, além da chance de fazer palestras e participar de mesas, a possibilidade de conversar assuntos bem específicos, assuntos que só interessam a quem mexe com aquilo. Assunto que se você for conversar com parte da família ou dos colegas de trabalho vai encontrar um “hã?” como resposta. Eu estava tomando café da manhã no hotel com uma turma, esperando a van do evento, quando um cara disse:

- Eu gosto quando o conto começa in media res, já em plena ação. O conto que começa com um soco, uma explosão, a ação em pleno acontecimento. Sem firulas, sem aquelas introduções intermináveis de Machado de Assis.

Uma professora que estava na mesma mesa disse:

- Olha, eu até concordo que o recurso é ótimo, mas a verdade é que Machado usava muito. Assim de cara eu lembro dois contos de Machado, pelo menos, que começam assim, zás!...

Rapaz, eram cinco pessoas naquela mesa mas baixou um silêncio que só se ouvia a CPU de cada um a todo vapor.

O primeiro que eu lembrei foi o do alfinete, acho que se chama “História Comum”. Como era mesmo? “De repente caí na copa do chapéu de um homem que passava...” Já mergulhava assim, e além do mais tinha um ponto de vista inusitado, o do alfinete propriamente dito. O “de repente” aí é meu, é mais uma rubrica teatral do que uma parte da história. Não deve ter no original.  E acho que é “A carteira” que começa com algo tipo: “De repente ele abaixou a vista e avistou uma carteira caída na calçada...”  Um terceiro? Será que tem?

“A causa secreta”, o famoso conto várias vezes filmado, começa com um plano cinematográfico, um momento banal colhido de repente, com os três personagens num tablô e o narrador saltando de um para o outro, enquanto um rói as unhas, o outro cofia os bigodes e a mulher ajeita um bordado. Não tem explosão nem pode-se de dizer que é uma plena ação. Mas é um momento do tempo que já estava acontecendo e de repente a narrativa se engata nele. Quando a narrativa consegue produzir essa mágica das mágicas aí é moleza, é só contar a história. Esse conto começa com um momento teatral, um momento de tensa presença silenciosa, onde aparentemente nada acontece e tudo pode acontecer.

Terá um quarto conto? Bem, a professora pediu pra ver as cartas na mão de cada um. Um conferencista ao meu lado lembrou de um começo interessante: “Agora vou contar a história do...”  E aí embatucou. Um relógio de ouro? Um alfinete? (Não gostei porque já tinha lembrado sozinho.)

Outra convidada, já recolhendo a bolsa e as pastas, porque o rapaz da van estava na porta do salão de café do hotel, batendo as palmas das mãos uma de encontro à outra e dizendo bora pessoal:

- Você (eu) deveria lembrar do ‘Conto Alexandrino’, eu já li um texto seu elogiando esse conto, e não lembra do começo dele? E recitou:

“—O que, meu caro Stroibus! Não, impossível. Nunca jamais ninguém acreditará que o sangue do rato, dado a beber a um homem, possa fazer do homem um ratoneiro”.

Todo mundo riu porque a frase é boa. Eu lembrava do conto mas não do começo; fiquei meio em dúvida se começar o conto no meio de um diálogo tinha mais força ou menos força do que pegar no meio de ação sem palavras. Mas essa impressão acabou cedendo lugar a outra mais forte, porque se o texto de Machado era mesmo aquele (e é) olha que coisa, ele coloca cinco palavras de negação antes do verbo acreditar: “não, impossível, nunca, jamais, ninguém.”

A questão do Enter do conto ser com um diálogo foi lembrada por outra amiga nossa, no trajeto para a universidade. Ela lembrou o começo famoso: “Ah, o senhor é que é o Pestana?” – e ela batia as pestanas com graça. Fui conferir “Um homem célebre” e é a mesma coisa: já estava havendo uma festa, com piano e tudo, e essa voz feminina nos coloca no colo da história. Mas não era bem “no meio de uma ação”, era no meio de um bate papo inocente, a câmara discreta entrando pela janela indiscreta da vida.

Daquele café anotei alguns títulos no guardanapo, que não sou besta. Alguém votou em “Um apólogo”, mas este começa assim:

“Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha: ...”

Não tem o que qualquer história minimamente realista nos dá: a sensação de que existia um mundo com tudo aquilo acontecendo e de repente a gente, através da história, está percebendo a existência daquele mundo. Não, isso aí é uma fábula, um mundo abstrato comentando o mundo real humano, mas só começa a existir quando a fórmula mágica é pronunciada. “Era uma vez” é um spell muito poderoso, deve ser poupado, tal como os personagens do Sítio do Picapau Amarelo poupavam o “faz de conta”, a fórmula mágica para tirá-los das enrascadas em que a imprevidência do romancista os colocou.

“Era uma vez” é um “abre-te sésamo”, uma dessas fórmulas mágicas que deixam o autor livre para contar a história que bem quiser. (Claro que não é a única fórmula mágica. Basta ver “A igreja do diabo”, que começa: “Conta um velho manuscrito beneditino que...”) É um começo rápido, um começo zás-trás, mas ele não está captando uma ação in media res, como enfatizava o desafio.

Outro conto machadiano que anotei foi meio às pressas, e ninguém na hora lembrou como era o nome. O que rabisquei no guardanapo foi: 

“O conto onde ele diz que a porta se abriu, mas na mesma hora interrompe e explica quem era o cara que estava contando a história, anos depois de acontecida, à esposa, aí depois ele volta para o fotograma onde tinha parado: “a porta abriu-se, chegou um rapaz, veio visitar os amigos...”

A memória é ingrata, além de traiçoeira. É um dos meus contos preferidos, o conto sobre Elisiário, o homem da opa que podia embrulhar o mundo, “Um erradio”. Um bom começo, mas não saía da minha cabeça o modo como o cara tinha descrito o impacto que esperava doinício do conto: um soco, uma explosão. Houve uma época em que a gente escrevia o conto e apostava todas as fichas numa “abertura Mike Tyson”, ou seja, estontear e abduzir o leitor nas primeiras trinta linhas.

“A cartomante” termina com um tiro, mas nenhum conto de Machado começa com um corte brusco de ação, ação física, não direi um crime ou um tiroteio, que são raridades nos seus contos, mas uma ação intensa, não falada, de um ou mais personagens. Nem por isso ele é o rei de enchimento de linguiça (que por si só não é sempre um defeito). Ele sabe usar com autoridade e economia essas fórmulas mágicas que têm um empuxo narrativo poderoso, capas de erguer juntos a história e o leitor. Olhe só o começo de “Cantiga de Esponsais”:

Imagine a leitora que está em 1813, na igreja do Carmo, ouvindo uma daquelas boas festas antigas, que eram todo o recreio público e toda a arte musical. Sabem que é uma missa cantada; podem imaginar o que seria uma missa cantada daqueles anos remotos. Não lhe chamo a atenção para os padres e os sacristães, nem para o sermão, nem para os olhos das moças cariocas, que já eram bonitos nesse tempo, nem para as mantilhas das senhoras graves, os calções, as cabeleiras, as sanefas, as luzes, os incensos, nada. Não falo sequer da orquestra, que é excelente; limito-me a mostrar-lhes uma cabeça branca, a cabeça desse velho que rege a orquestra com alma e devoção.

Esse conto é pelo menos de 1884, ano em que saiu o metalinguístico Histórias Sem Data. É um conto escrito num passado remoto para nós, onde o autor nos convida (“a leitora” é cada um de nós) a imaginar outro passado que já era remoto para ele.  E ele o faz num movimento cinematográfico perfeito, como uma câmera girando numa grua, descendo e fechando em close. O cinema só seria oficialmente inventado onze anos depois, mas foi a literatura quem ensinou o cinema a ver.

Lero-lero introdutório todo mundo precisa usar de vez em quando. O que importa é que, quando a história pedir, o mesmo sujeito seja capaz do poder de síntese de um começo como o de “Umas férias” (1906):

Vieram dizer ao mestre escola que alguém lhe queria falar.
- Quem é?
- Diz que meu senhor não o conhece, respondeu o preto.
- Que entre.


Nem as histórias de Sherlock Holmes iam tão direto ao ponto.