Eu estava passeando pelo Templo de Delfos (http://www.elfikurten.com.br/2015/06/bertolt-brecht.html)
quando me deparei com uns versos de Bertolt Brecht que eu tinha lido na idade
certa. “Aos que virão” ou “Aos que virão depois de nós”, um longo poema sobre
os tempos difíceis em que viveu, e que no caso de Brecht não foram poucos.
Brecht é um grande poeta, tão grande que até seus poemas
políticos são belos poemas (danem-se as exceções). Talvez o elogio de uma
ideologia política, de uma religião, de uma bandeira social específica sirva de
entrave ou de camisa-de-força para muitos poetas. Para outros, não.
É natural. Há talentos tão transbordantes de poesia que a
derramam até nos mais inviáveis recipientes. Os poemas políticos de Brecht talvez
tenham sido mais políticos do que hoje, na época em que surgiram, mas para nós
valem hoje pelo que têm de poético. Há muitos belos poemas políticos dentro da
obra de Carlos Drummond, de Pablo Neruda, de Cecilia Meireles, de Vladimir
Maiakóvski, de Bob Dylan.
Brecht, para mim, foi acima de tudo um daqueles socialistas
sinceros que nunca acertaram o pé pelo tambor autoritário. Caminhavam sempre
numa zona de paixão personalíssima por um certo ideal de igualdade, e em tensão
constante com qualquer regime vigente. Como Maiakóvski, como Eisenstein, como
Tarkóvski. Dizer que não merecem ser lidos ou assistidos porque são
esquerdistas é como não ouvir Bach porque era protestante, ou não ler Rimbaud
por ter virado traficante de escravos. Qualquer um deles podia querer ser
qualquer coisa. A arte, quando tem, transborda.
Um ponto forte da poesia de Brecht é o modo como ele usa
pequenos sofismas filosóficos ou pequenas mudanças de ponto de vista que puxam
o tapete do leitor. O chamado distanciamento brechtiano é muitas vezes um
ângulo novo de uma história muito conhecida. Ele gosta também de parábolas,
koans, microhistórias, canções bíblicas, sentenciosas, onde ele superpõe
pequenas metáforas do mundo dos seres vivos e dos objetos à nossa volta. Nesse
sentido, seu verso tem uma cadência mais bíblica do que a de muitos poetas
cristãos. É a voz bíblica do Eclesiastes, dos Provérbios, dos Salmos, do Livro
da Sabedoria. É bíblico quando produz parábolas de quatro ou de seis linhas, em
estruturas bem nítidas. É bíblico como Leonard Cohen.
E vejam só, eu aqui deitando e rolando, e a verdade é que
nunca li Bertolt Brecht, porque meu alemão não resolve nem as manchetes dos
jornais. Só li as traduções dos poemas dele. Primeiro em português, português-de-Portugal
e espanhol. Depois em francês e inglês, em muitas antologias, coletâneas, etc. Meu
semestre de alemão no Instituto Goethe da Bahia me ensinou um básico muito
útil, mas eu não sei se reconheceria aqueles versos que tanto reli, se visse
uma estrofe como esta:
In die Städte kam ich zur Zeit der Unordnung
Als da Hunger herrschte.
Unter die Menschen kam ich zu der Zeit des
Aufruhrs
Und ich empörte mich mit ihnen.
So verging meine Zeit
Die auf Erden mir gegeben war. (...)
No estado atual dos meus estudos, se lesse isso sem
qualquer pista do que era, eu saberia que Städte
é cidade, Zeit é tempo, Hunger é fome mesmo, e ficaria em dúvida
sobre Erden, mas pensaria se era o
mesmo que Earth. Com esses elementos,
eu poderia até lembrar do poema de Brecht. Mas a prova final estaria na
melodia, na cadência sonora das palavras do poema, aquilo que eu chamo o
murmúrio, a toada subjacente, a presença sonora daquilo tudo.
A cidade, o tempo, o não sei o quê, a fome. Os homens, o
tempo, alguma coisa séria entre eu e eles. Alguma coisa sobre o tempo, sobre a terra,
e um não sei quê final. Um conteúdo assim, derramado nessa ordem, acabaria acordando
minha memória, que diria, estremunhada: “aquele poema-textão de Brecht sobre
anos de chumbo, Aos Vindouros ou
coisa parecida”.
Lá em Delfos os versos aparecem em traduções de Paulo
César de Souza e de Manuel Bandeira. Depois, remexi nas minhas estantes e
localizei a mais antiga que eu lembrava, de Fernando Peixoto.
Primeiro, a tradução de Paulo César de Souza para esse
trecho:
À cidade cheguei em tempo de desordem
quando reinava a fome.
Entre os homens cheguei em tempo de tumulto
e me revoltei junto com eles.
Assim passou o tempo
que sobre a terra me foi dado. (...)
(Digressão: No texto acima tomei apenas uma liberdade:
iniciei os versos com letras minúsculas, seguindo o fluxo do texto em si. É
dessa maneira que prefiro alinhar o que escrevo ou transcrevo. No original,
todas as linhas começam com maiúsculas. Os editores-de-texto de hoje oferecem
isso como primeira opção, acho. Mas eu prefiro quando o texto é pontuado como
se fosse de prosa, sem levar em conta as quebras de linha; ele dá a impressão
de um líquido derramado num recipiente e se acomodando bem direitinho.)
Esses versos de Brecht, curiosamente, têm uma cadência de
sextilha. Não estou falando das sextilhas de três dísticos do cantador
nordestino ou da Bíblia, mas a sextilha melódica do blues. Tal como nesses
blues, a terceira e a quarta linha desse trecho são variações simétricas das
linhas 1 e 2; e as duas linhas finais têm uma melodia diferente dessa. Não
seria nada difícil verter uma estrofe assim para o inglês (ressalvando que as
linhas não rimam entre si).
Falei estrofe mas esse trecho é o início da parte II do
referido poema. Tal como Drummond ou Bandeira, Brecht incrustava trechinhos
rimados e metrificados no meio de um texto cheio de linhas longas e linhas
curtas. O verso visto de longe parece totalmente livre, mas ali dentro há muitos
trechinhos de métrica repetida, impecáveis.
Na tradução acima, não se pode pedir melhor junção de um
verso de doze sílabas seguido por um de seis sílabas. Para mim, como leitor
champoliônico, mesmo que essa contagem 12/6 não seja a mesma em alemão, o tradutor
manteve a relação verso longo / verso curto. Porque a natureza de certos tipos
de poema requer que esses tamanhos se alternem, e às vezes o tradutor, a bem da
compreensão, mexe nas frases e a linha que era grande fica pequena ou
vice-versa. Isso para mim, como leitor, é mais incômodo do que ver um
decassílabo ser traduzido com 9, com 11, com 12. Se tiver o peso do verso
original, que diferença faz uma ou duas sílabas?
A tradução de PCdS segue a cadência, o murmúrio poético
do original. Isso é mais fácil de seguir, de certo modo, quando o poeta usa
quaisquer formas fixas de estrofe, formas recorrentes (dísticos, tercetos,
quadras, sextilhas, etc.).
Além da extensão relativa das linhas, outra coisa
importante, que pesa ainda mais na tradução da poesia, é tentar dar às palavras
o mesmo peso que têm no original – abrindo ou fechando uma frase, p. ex. Se isso no original corresponde a mais
impacto, se dá um sentido adicional ao texto, é bom que se mantenha, embora nem
sempre dê. Uma coisa que eu talvez mexesse
seria a ordem proposta por PCdS. Em vez de “À cidade cheguei em tempo de
desordem” (um dodecassílabo de que meu ouvido divide em segmentos assim:
3-3-2-4), eu seria menos fiel ao original, inverteria os termos e poderia dizer
também: “Eu cheguei à cidade em tempos de desordem”, de cadência equivalente.
Eu botaria esse “tempos” assim mesmo, no plural. Me dá a
idéia de tempos muito interessantes, diversos, contraditórios, plurais. (E porque
o ouvido me lembra que em nordestinense esse uso, quando no singular, tem outra
conotação, quando dizemos: “Não me provoque não que eu estou em tempo de
explodir”, “Ele está em tempo de enfartar porque não consegue resolver esse
problema”, etc. É um equivalente nosso
ao “a ponto de”.)
Na página aparecia outra tradução, olha de quem, Manuel
Bandeira. Fui direto ao começo da Parte II do poema. Eis a versão bandeirana da
coisa (com texto minusculado onde cabe):
Para as cidades vim em tempos de desordem,
quando reinava a fome.
Misturei-me aos homens em tempos turbulentos
e indignei-me com eles.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra. (...)
A cadência da primeira linha, neste caso, eu leio como
4-2-2-4. A segunda linha, em ambos, está igual, com seis sílabas e acentuação
4-2. (É engano meu ou o verso original alemão só tem cinco, mais uma átona que
não conta?) Veja-se que Paulo César de Souza manteve nas linhas 1 e 3, as
linhas longas, a mesma cadência 3-3-2-4: “À cidade cheguei em tempo de
desordem”, “Entre os homens cheguei em tempo de tumulto”. Para mim basta esta
repetição de cadência para tornar o verso sonoramente verossímil, mesmo
(repito) que a contagem das sílabas em português seja diferente do que tem no
alemão.
As duas linhas finais deste trecho precisam ser bem escolhidas,
porque elas se repetirão pelo menos duas vezes nessa mesma estrofe. Quando Brecht
diz “Assim passou o tempo / que me foi concedido na terra”, ele eleva o tom,
mesmo usando palavras simples. Eleva porque em vez de descrever situações
concretas, datadas, ele está falando meio filosoficamente, é quase um acerto de
contas com a vida. Tem que ter o tom bíblico, mais eclesiástico do que
escolástico, mais sentencioso do que retórico. ‘Cause the times, they are a-changing.
Os versos de PCdS são um de seis sílabas (cadência 2-4) e
um de oito (4-4). Manuel Bandeira diz: “Assim passou o tempo / que me foi
concedido na terra”. O primeiro verso é igual ao de PCdS, mas o segundo tem
nove sílabas, com cadência 3-3-3, mais uma átona, “...ra”, que não conta. (Mais
uma vez: posso estar pronunciando errado, mas em princípio o verso original
alemão também tem nove, com cadência 3-2-4.)
Comparando as duas versões, percebi que nenhuma das duas
era a que me vinha mais espontaneamente à memória. Essa era uma terceira: a da minha
primeira e mais constante leitura, visto que tenho o livro comigo até hoje: Brecht – Vida e Obra (Rio, José Álvaro
Editor / Paz e Terra, 1974, 2ª. edição), de Fernando Peixoto, e o poema (provavelmente
traduzido pelo próprio), aparece como Aos
que virão depois de nós, no final, nas páginas 347-348.
Eis a tradução de Fernando Peixoto (minusculada ao meu
modo):
Eu vim para a
cidade no tempo da desordem,
quando a fome
reinava.
Eu vim para o convívio dos homens no tempo da revolta
e me revoltei ao
lado deles.
Assim se passou o
tempo
que me foi dado
viver sobre a terra.
Eu vejo algo de teatral nesse “Eu” que encabeça
triunfante os dois dísticos iniciais. Muito mais forte, muito mais energético,
do que “À cidade cheguei...”... “Para as
cidades vim...”. Para quem imprime o texto na página pode parecer prescindível,
mas não imagino um ator, mesmo um ator brechtiano, que abrisse mão de iniciar uma
frase de impacto com um monossílabo tão augusto. A página pode ser sutil, mas a
presença física da voz do ator precisa se impor com as armas que tem. A palavra
“eu”, em alto e bom som, é uma delas. Não deve ser malbaratada, mas precisa
estar sempre a postos.
A tradução de FP me parece (talvez pelo vêzo de saber que
ele é diretor de teatro) a menos preocupada com exatidão métrica e mais atenta
para a emissão física pela voz de alguém. (Praticamente todo poema de Brecht
era assim, mesmo os que não eram poema-de-peça, os que eram
poemas-para-publicar.) Seus primeiro e
terceiro versos têm treze e dezesseis sílabas respectivamente, mas só
percebemos isto quando os checamos de encontro ao original ou às outras
traduções. Em si e por si, são versos longos que podem ser escandidos com vigor
sem se diluir no meio do caminho: “Eu vim / para o convívio dos homens / no
tempo da revolta”.
Comparando versões assim sempre podemos achar que uma
tradução é mais fiel à linguagem, outra é mais bonita, outra mais próxima ao
conteúdo, outra reproduz melhor as cadências semiaudíveis. E tudo isto vai
produzindo em nossa imaginação uma espécie de ilusão, de fantasia: a fantasia
de que lemos as frases escritas por Brecht num idioma que desconhecemos.
(Para mim, e acho que para a maioria dos leitores, isso
forçosamente relativiza nossa apreciação dos poemas japoneses de Bashô, dos
poemas médio-ingleses de Chaucer, dos poemas russos de Pushkin, dos poemas
persas de Omar Khayam, e assim por diante.)