terça-feira, 18 de julho de 2017

4253) Como descobri que não sou fã de nada (18.7.2017)




Não foi propriamente assim que aconteceu. Estou apenas traçando uma versão mais aerodinâmica, para simplificar o relato.

Eu estava num evento ligado a Bob Dylan, abertura de uma exposição em São Paulo dedicada ao bardo de Minnesotta. Teve DJ, teve som ao vivo, teve um coquetel. Eu conversava numa roda de conhecidos, e de repente me vi diante de uma moça simpática, jovem, que falava de um jeito que eu achei bem interessante. O diálogo era a respeito de alguma outra coisa, mas a certa altura ela perguntou:

– E você, é fã de Dylan?

– Claro – eu respondi.

– Diga sua música preferida. Não!... Ninguém tem uma só, todo mundo tem muitas. – Eu já achei inteligente essa ressalva, e me animei todo. – Diga uma que você gosta.

Puxei de uma cartola qualquer um coelho aleatório.

– “Desolation Row”.

Os olhos dela se iluminaram.

– Que maravilha! Eu também. Deixe ver... você gosta mais das versões antigas tipo Royal Albert Hall e Dublin, ou das mais recentes, tipo Locarno, Oslo...?

Comigo não tem tempo ruim, de modo que eu dei um gole da bebida e respondi, na cara de pau:

– Eu acho que eu gosto da versão original, do disco.

Ela me olhou com um misto de dó, magnanimidade e irrisão. E disse:

– Ah. Então você não é um fã. Você é um ouvinte casual.

O país das artes é vizinho do país das religiões, e o trânsito através de suas fronteiras, em ambas as direções, é intenso. Às vezes a gente pensa que está num deles, e quando vê, todo mundo em volta está falando o idioma do outro.

O fã não é alguém que se limita a gostar, é alguém que desenvolve um culto voraz. Camões dizia, erradamente ao meu ver, que “transforma-se o amador na coisa amada”. Eu acho que o amador, e o fã nada mais é que isto, transforma o mundo na coisa amada. Pra onde ele se vira, só enxerga aquilo.

O fã transforma a coisa amada num labirinto fractal onde cada detalhe se subdivide e se supermultiplica em um milhão de outros. Não basta ser fã de (vá lá) Camões. É preciso rastrear todas as versões que o soneto de Jacó e Labão já teve, é preciso saber na ponta da língua todos os endereços onde o poeta pendurou seu casaco, é preciso colecionar memorabilia, é preciso ter uma coleção de perguntas de algibeira para dinamitar as pretensões dos incautos.

Lembro do saudoso crítico de cinema André Setaro, de Salvador, meu parceiro etílico e meu contemporâneo, que assinava críticas na Tribuna da Bahia quando eu fazia o mesmo, com mais rapidez e menos perspicácia, no Correio da Bahia.

Um dia entro eu num daqueles velhos cinemas nos arredores do Pelourinho para assistir, se não me engano, Trama Macabra, o derradeiro filme de Hitchcock, quando esbarro com Setaro. Cruzei a cortina e encontrei-o de pé, junto àquele tradicional balcão de metro e meio de altura que protegia a fila mais afastada da tela. Conversamos ali enquanto iam sendo exibidos o Canal 100 e os trailers. Quando surgiu a ponteira indicativa do filme, falei:

– É o filme agora. Bora sentar?

Ele me olhou com cara de fã ofendido e disse apenas:

– Filme de Hitchcock assiste-se de pé, em sinal de respeito.

E fê-lo. Talvez só o tenha feito porque sentei poucas filas à frente e o fiquei vigiando com o rabo do olho, e ele então não teve outro jeito senão manter a pose; mas fê-lo, ora que diabo.

O fã se confunde muitas vezes com o colecionador, porque uma coisa conduz à outra com a mesma fluidez com que ser noivo conduz a ser marido. O colecionador é um cara que casou com uma missão, e muitas vezes essa missão nem é um ser específico, com cara na foto e nome no cartório; é um mero conceito abstrato.

Meu pai tinha um amigo que colecionava qualquer exemplar de qualquer periódico, desde que fosse o “ano 1, número 1”. De tudo que saía em Campina, Seu Nilo comprava um exemplar e remetia para esse cidadão, cujo nome minha incúria não guardou para a posteridade. E se considerarmos o índice de mortalidade infantil das publicações brasileiras, as literárias em especial, penso nas raridades valiosíssimas que ele terá amealhado no correr das décadas.

Porque existe um mercado subterrâneo para alimentar o fã-colecionador. Algum tempo atrás eu estava bebendo no Amarelinho da Cinelândia, numa mesa grande onde havia um ou dois amigos e outros caras que conheci na hora. Passou uma garota lindinha, meio hippie, distribuindo filipetas de shows de rock que ia haver no Teatro Odisséia e no Circo Voador. Um cara ao meu lado chamou a garota e pediu uma filipeta de cada e pôs na mesa, junto do pacotinho de amendoim. Estranhei um pouco porque o cara tinha jeitão de quem gosta de ver shows de Dona Ivone Lara, não do Macaco Bong.

– Você vai ver esses shows? – perguntei.

Ele deu um gole do chope, leu com atenção todas as filipetas, e guardou no bolso da jaqueta, enquanto respondia:

– Eu não vejo os shows, eu coleciono isso.

– Você é fã de rock?

– Eu mesmo não – disse. – Mas conheço fã de rock. No ano passado eu vendi uma filipeta dessa, do primeiro show dos Paralamas do Sucesso, por cinco mil reais.

Como disse um economista amador, demanda gera oferta e oferta gera demanda. Um rabisco a carvão feito por Van Gogh, cujo valor estético roça o zero, é vendido por milhões de dólares para um fã que vai... expô-lo no Metropolitan? Não, trancá-lo num cofre, junto com a certeza de possuí-lo.

Diante disso, nós, “ouvintes casuais” (não, não esqueci, moça, continua encravado, e doendo) temos apenas que nos recolher à carapaça da nossa ignorância e prosseguir rastejando no chão desse oceano de possibilidades. Por mais que a gente pense que ama Luís Buñuel ou The Incredible String Band ou Ellery Queen sempre vai aparecer à nossa frente um indivíduo blasé perguntando se a gente sabe a marca de talharim que o ídolo preferia.

Um rapaz estava numa festa na mansão da família de um amigo de faculdade. Lá pelas tantas, começou a conversar com a avó do amigo, uma senhora setentona, simpática, boa de papo. Depois de alguns minutos, a senhora suspirou e disse:

– Mas o que é isso, o senhor tão jovem, a festa cheia de gente jovem, e eu aqui lhe incomodando... Vá circular, se divertir.

– Qual nada – acudiu ele de imediato. – Estou gostando muito de conversar com a senhora.

– Ninguém da família conversa comigo – confidenciou ela. – Eles dizem que eu sou doida.

– Não é possível. A senhora, tão lúcida, tão inteligente. Por que eles dizem isso?

– Porque eu gosto muito de pão-de-ló.

O moço se surpreendeu:

– Pão-de-ló? Mas isso não tem nada de mais. Eu também adoro pão-de-ló.

Os olhos da madame chamejaram e ela cravou no braço dele cinco dedos de ferro:

– Então vamos lá em cima no meu quarto. Eu tenho vinte e cinco malas cheias de pão-de-ló.

Ela era uma fã.








3 comentários:

Fraga disse...

Clap! Clap! Clap! (Braulio, se vc percorresse o Brasil contando essas histórias, com esse viés nas artes e crítica de costumes, eu seria dos que pagaria ingresso pra ouvir vc. Ducaraio, sempre saboroso. Gracias, abrrr!_

Refúgio disse...

Você é um colecionador dê casos Braulio. E um generalista especializado.

Anônimo disse...

Um ótimo contador de causos. Sempre paro para ler o que tem para contar o Bráulio Tavares.