(Daniel Day-Lewis, em Lincoln)
Dizem que quando Steven Spielberg filmou a sua
cine-biografia de Abraham Lincoln, o tique-taque de relógio que ouvimos no
filme é de um relógio que de fato pertenceu a Lincoln.
Dizem que quando Luchino Visconti, em Morte em Veneza (1971) mostra Dirk
Bogarde lendo um jornal, trata-se de um exemplar autêntico de um jornal local,
da época em que transcorre o filme (1911).
Esses detalhes têm importância? Um espectador comum jamais
vai perceber a diferença. Mesmo um crítico de cinema ou um historiador
precisariam de alguma informação prévia para reparar em tais detalhes.
Na verdade, esse exibicionismo de perfeição acontece para as pessoas que fazem o filme, não
para as que o assistem. Não faz parte do filme (ou só o faz muito pouco): faz
parte da vida deles, da semana de trabalho deles.
Para conseguir o tal relógio e o tal jornal foi preciso
que pessoas da equipe de produção entrassem em contato com a instituição
(museu, biblioteca, etc.) que tinha a guarda dos objetos, enviasse um pedido
formal, negociasse a abertura de um seguro contra perdas e danos, etc.
O objeto provavelmente foi conduzido, vigiado e levado de
volta por pessoas com essa única tarefa para executar.
Inumeras vezes alguém perguntou no set: “Quem é esse pessoal de fora? O que estão fazendo aqui?”, e
alguém respondeu: “É o pessoal que está cuidando do relógio raro”, ou algo
assim.
Claro que nem sempre tudo corre bem. No filme de Quentin
Tarantino Os Oito Odiados (2015), o
ator Kurt Russell despedaçou um violão de 1870, uma raridade insubstituível, cedido
pelo Martin Museum. Havia réplicas, feitas com essa finalidade, mas na hora da cena
alguém não fez a troca, e o ator pensou que estava tudo pronto. O violão de 145
anos virou estilhaços.
“Coisas da vida; paciência,” diria Alec Baldwin com
estoicismo.
(O Martin Museum)
A primeira crítica que se faz é, inevitavelmente: “Pra que usar um instrumento tão raro e
correr esse risco? Por que não fizeram simplesmente uma imitação bem feita, ou
mais de uma, e devolveram logo o original?”.
E mais uma vez volta a possível explicação: porque quando
o elenco e a equipe sabem que estão lidando com material raro e verdadeiro,
aquilo impõe um pouco de respeito no espírito desses profissionais que precisam
lidar diariamente, na sua profissão, com a encenação, a rua “cenográfica”, o
figurino fake.
Conta-se que um diretor de Hollywood, antes de filmar a
cena da atriz principal descendo uma escadaria para um baile, exigiu um colar
de diamantes verdadeiros, coisa para mais de 100 mil dólares. O assistente
propôs uma imitação de 200 dólares. O diretor disse: “Uma mulher tem outra
postura quado ela sabe que está
trazendo cem mil dólares ao pescoço.”
( John Wayne, em Red River)
Não é muito diferente da lenda que se conta sobre John
Wayne. Quando ele filmou Rio Vermelho,
uma das suas melhores atuações da vida inteira, o diretor Howard Hawks mandou
confeccionar presentes para pessoas especiais da equipe: cinturões com fivela
de prata e as iniciais do dono gravadas. Hawks e Wayne trocaram, depois, os
respectivos cinturões, e Wayne usou o cinto com as iniciais de Hawks em vários
clássicos que filmou nos anos seguintes, como Eldorado, Hatari, O Homem que Matou o Facínora e Rio Bravo. Como um talismã de qualidade.
Não é ao público que esses detalhes se destinam, é à
equipe. É para a fantasia íntima de quem está filmando, e não é só das
estrelas. É também de gente que chega no set
às 4 da manhã para começar a preparar o equipamento dos que chegarão às 6.
Trabalho profissional em equipe exige disposição,
seriedade, profissionalismo, todo esse vocabulário motivatório que os coaches usam à mancheia. Mas exige
também dois dedos de fantasia, três dedos de simbolismo e quatro de fetiche,
para que todos acreditem que estão criando juntos uma coisa de verdade, uma
coisa importante, e que essa coisa faz parte da vida deles, de segunda a
sexta-feira.
Se contarem a algum desses profissionais o detalhe do
relógio, do jornal ou do colar, ele vai assentir, e dizer (lá com suas
palavras) que sente orgulho de estar participando de uma coisa bem feita. Ele
sabe que o público não vai saber disso, e de certa forma esse detalhe torna
ainda mais valiosa a presença desse objeto. Ele
sabe que a equipe teve em mãos algo precioso.
Porque esta é uma condição peculiar dos artistas, e
quando digo artistas me refiro a todo mundo que trabalha na criação de uma obra
de arte: eletricistas, marceneiros, maquiadoras, cantoras, roteiristas,
assistentes, cenógrafas, diretores de fotografia... “Um filme”, “uma peça de teatro”, “um balé”,
tudo isto tem dentro de si duas coisas. Uma, é o produto que o público vê.
Outra, é a aventura de fazê-lo, e isso o público não fica sabendo.
A criação do mercado de filmes em DVD, com sua abundância
de “extras” e “bônus”, gerou alguns sub-produtos interessantes.
O “Making Of” (com um F só, revisor) dá ao público uma
vaga idéia do trabalho insano que é a realização de um filme, a ralação diária
de centenas de pessoas para colocar na tela uma história que foi imaginada por
meia dúzia.
Outro bônus da era DVD são as “versões comentadas” do
filme. Alguém, geralmente o diretor, vai assistindo o filme em tempo real e
fazendo comentários sobre cada coisa que aparece. Explica detalhes técnicos,
compara uma cena com outra, relata episódios pitorescos ou assustadores, chama
a atenção para um objeto... Num mundo ideal, todo filme teria uma versão assim.
Os bons filmes ganhariam em riqueza psicológica, em verossimilhança, teriam
quem sabe algumas surpresas para o público. Até os maus filmes ficariam mais
interessantes.