sexta-feira, 31 de dezembro de 2010
2441) O pequeno e o muito (31.12.2010)
Escrever é, em muitos casos, jogar no papel tudo que a gente pensa, e deixar fermentando. Chega um ponto em que basta a gente olhar de novo e muitas frases parecem estar implorando para ser cortadas. Já cumpriram sua função. Ficaram ali do lado, contaminando as frases com que se misturaram, impregnando-as de si mesmas; e agora podem sair. Caneta nelas!
Isso ocorre muito com adjetivos. A gente enche uma frase de adjetivos com a intenção de fazer o leitor entender o que a gente está pensando. “O cavaleiro, altivo e imponente, desmontou do seu corcel suado e arquejante, e encaminhou-se vagarosamente para o portão fechado, no qual desferiu pancadas surdas e profundas que ecoaram nos corredores do misterioso castelo”.
Beleza! Está dito tudo. Dito principalmente para nós, que na primeira passada da escrita precisamos ter essa cena, com todas as suas ressonâncias, bem nítida na imaginação.
Pegando a página dias depois, não precisamos mais daquele nhenhenhém. Já sabemos. Basta dizer: “O cavaleiro desmontou e foi até o portão do castelo, no qual bateu com o punho cerrado”. A imponência do cavaleiro, o arquejo do cavalo, a sonoridade das batidas e o mistério do castelo devem estar subentendidos pelo conjunto da narrativa. Cada adjetivo é como um crachá a mais pendurado no peito de um substantivo. Economizemo-los!
Em suas anotações de diretor (Notas Sobre o Cinematógrafo) Robert Bresson dizia:
“Duas simplicidades. A má: a simplicidade ponto-de-partida, buscada antes de tudo o mais. A boa: simplicidade-resultado, recompensa de anos de esforços”.
A simplicidade deve vir desse desbastamento, mas ele só tem sentido se num primeiro momento a gente despejar tudo. É preciso, é indispensável escrever (nesse primeiro momento) tudo que a gente está pensando, porque a gente sempre tem medo de que alguma coisa pensada se perca. Melhor botar tudo e esperar para ver o que fica, o que se resseca e cai sozinho, e o que precisa apenas de um pequeno toque para virar poeira.
É por isso que reescrever é mais prazeroso do que escrever. Para escrever, a gente tem que transformar em palavras os impulsos sem forma que tomam conta da nossa mente. Achar a palavra certa é um sacrifício; mas cortar palavras erradas é um prazer cruel.
Não preciso de você. Nem de você, nem de você. Já está tudo dito. Sai, sai, sai, cai fora, e você também. Já sei o que eu quero dizer.
No primeiro momento, escrever é um trabalho aditivo, de produzir formas (verbais). No segundo é um trabalho subtrativo, como a escultura: tirar o que é supérfluo, deixando o essencial.
Paul McCartney dizia no filme Let It Be: “Eu pego uma ideia bem simples e vou complicando, complicando muito. Quando ela está muito complicada, eu passo a simplificar”.
Um PhD. em literatura não definiria melhor esse processo de adições e subtrações, de filmagens e montagens. A criação começa pelo barroco e se encerra pelo minimalismo.
quinta-feira, 30 de dezembro de 2010
2440) "O novo regionalismo" (30.12.2010)
(Árido Movie)
Fala-se numa crise do regionalismo literário nordestino, como se nas últimas décadas não tivesse aparecido nenhum autor capaz de se comparar com José Lins do Rêgo, Graciliano Ramos, José Américo de Almeida, Rachel de Queiroz etc. A principal razão para isto é a de sempre: não aparece ninguém parecido porque todo mundo quer escrever parecido com eles, e eles não estavam querendo escrever como ninguém. Isto me lembra a frase de Robert Bresson: “Fulano quer imitar Napoleão e se esquece de que Napoleão não imitava ninguém”.
Um dos problemas do regionalismo literário é tentar obedecer em 2010 a uma temática e uma maneira de escrever que se consolidaram por volta de 1930 ou 1940. O maior símbolo disso é a presença recorrente, ainda hoje, dos “beatos e cangaceiros” como os dois grandes fenômenos de massa do Nordeste. Ora, hoje não existem mais beatos e cangaceiros: existem evangélicos e traficantes de drogas. Esta é a realidade do Nordeste de hoje. Essa mudança histórica não invalida a qualidade de, por exemplo, um filme regionalista como Deus e o Diabo na Terra do Sol, mas para se saber do Nordeste de hoje é melhor assistir Árido Movie de Lírio Ferreira, que fala numa seita mística baseada na adoração da água e numa fazenda que substituiu o plantio do algodão pelo da maconha. É mais parecido com hoje-em-dia.
O Nordeste de hoje é isto. O que Graciliano & Cia. escreveram continua valendo como documento histórico e como obra literária de valor permanente, mas para fazer um livro sobre retirantes famintos à altura de Vidas Secas precisa ser mais escritor do que Graciliano foi, porque a comparação é hoje inevitável. Por outro lado, o primeiro sujeito talentoso que escrever um grande romance sobre a praga do crack na Zona da Mata não vai ter concorrentes ilustres com quem ser comparado, porque esse romance não existe.
Um caminho interessante que se abre para o regionalismo nordestino é a exploração de elementos místicos e futuristas, recriando um Nordeste diferente dos clichês habituais. Vejo isto em livros como Pequenas Catástrofes do potiguar Pablo Capistrano, da releitura bíblica de W. J. Solha em Relato de Prócula, do visionarismo futurista do cearense Carlos Emílio Corrêa Lima em Ofos e muitos outros que certamente não conheço. O Nordeste de hoje conserva elementos do Nordeste de Zé Lins, Rachel & Cia., mas superpostos a eles estão novos elementos temáticos que só muito lentamente estão sendo incorporados.
Por que? Acho que é porque o escritor nordestino (a começar por mim mesmo) não conhece o Nordeste. Vive num apartamento, indo de carro para o trabalho, fazendo compras no shopping e de noite lendo romances regionalistas de 50 anos atrás. Conhece o Nordeste através dos livros, e não das BRs. Se pegasse uma mochila e passasse seis meses viajando de ônibus pelo interior, se hospedando em dormitórios e comendo prato-feito, voltaria para cada com doze romances prontos para serem escritos.
2439) "O Ulisses alemão" (29.12.2010)
Berlin Alexanderplatz (1929), de Alfred Doblin, o romance escolhido pelo escritor Joshua Cohen para ser o equivalente alemão do Ulisses de Joyce, tem seu nome mais conhecido, hoje, por causa do filme dirigido em 1980 por R. W. Fassbinder, um épico com 14 horas de duração feito para a TV mas também exibido em alguns cinemas. A TV Educativa (RJ) o exibiu em fins de semana consecutivos anos na década de 1980, quando tive a chance de ver um ou dois episódios. Sobre o romance de Doblin, Cohen faz este comentário: “Uma narrativa épica e infatigável sobre o ‘demimonde’ berlinense. Recheado de assassinatos, prostitutas, e o assassinato de uma prostituta. Franz Biberkopf, um sujeito de pouca inteligência, é libertado da cadeia para viver na prisão maior que é a República de Weimar. Doblin foi jornalista, psiquiatra e veterano da I Guerra Mundial. Ele germanizou o olho e o ouvido panorâmicos que James Joyce tinha para captar a gíria das ruas, e ao fazê-lo criou um das melhores romances de decadência do seu século”.
Doblin foi uma figura curiosa nas letras alemãs, porque a sua primeira obra de peso foi um romance ambientado na China do século 18, Os Três Saltos de Wang Lun (1915). Em seguida ele se juntou ao grupo expressionista que agia em torno da revista Der Sturm, onde publicou numerosas histórias, mas logo afastou-se deles para seguir uma linha literária mais personalista, da qual Berlin Alexanderplatz é o melhor exemplo. O nazismo o forçou a emigrar da Alemanha para a França em 1936, e nesse período ele publicou sua trilogia amazônica, ambientada na América do Sul: A Terra sem Morte, O Tigre Azul e A Nova Jângal. Com a invasão nazista ficou algum tempo num campo de refugiados na França, até emigrar para os Estados Unidos, de onde voltaria para a Europa após o fim da guerra.
Numa antologia do conto expressionista alemão, Malcolm Green comenta: “A vida de Doblin exibiu um movimento pendular entre polos opostos: quando jovem psiquiatra, ele aspirava à sobriedade e à razão, mas apanhado pelo caos da vida começou a desenvolver um ponto de vista anti-racionalista. O socialista e ‘grande inquisidor do ateísmo’ dos anos 1920 sucumbiu a um misticismo natural que conduziu a sua conversão ao catolicismo quando no exílio, em 1941”. Seu grande épico berlinense é, de suas obras, a mais conhecida, e talvez a que melhor exprime o país em que nasceu.
Berlim é decerto uma das cidades-entroncamento da história européia no século 20. Mesmo antes de se transformar no símbolo da Guerra Fria após a II Guerra Mundial, a cidade foi nos anos 1920 um bazar de decadência social, caos econômico, criatividade artística e fervura política. O movimento Expressionista, por um lado, no cinema e na literatura, produziu obras notáveis. Por outro lado, o teatro e a poesia de Brecht foram pontos altos da arte política do século passado. Há sem dúvida material para um grande romance na medula desse momento histórico.
2438) A matéria dos sonhos (28.12.2010)
Jorge Luis Borges fala, em seu conto “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, de um planeta fantástico em que as coisas são criadas pelo pensamento. Por exemplo: Fulano perde uma caneta no escritório e pede aos colegas que a procurem. Depois, percebe que tinha deixado a caneta em casa, mas esquece de avisar. Um dos amigos, movido pela expectativa de que a caneta está no escritório, encontra-a e entrega ao dono, que agora tem duas canetas idênticas.
Em outro exemplo, ele fala de uma expedição arqueológica em que os trabalhadores recebem uma descrição prévia dos artefatos que se espera desenterrar ali; eles são encontrados, mas sempre com alguma deficiência, devido aos ruídos de comunicação no processo. Encontram, por exemplo, moedas enferrujadas que têm gravada uma data posterior à da escavação.
Oscar Wilde, que muito influenciou Borges, dizia com razão que é mais frequente a vida imitar a Arte do que o contrário.
Vejam por exemplo o caso do filme O Falcão Maltês, o clássico do filme policial “noir” dirigido por John Huston. O falcão é uma estátua negra que se diz valer mais de 2 milhões de dólares, e pela qual os indivíduos traem e assassinam uns aos outros durante uma hora e meia.
Era um filme “B”, estreia do diretor (Huston só tinha trabalhado até então como roteirista). Humphrey Bogart, que interpreta o detetive Sam Spade, fez o filme inteiro usando suas próprias roupas, de tão minguado que era o orçamento. Para o falcão foram confeccionadas algumas estátuas de cobre, outras de resina (mais leves). A fabricação de todas elas juntas custou cerca de 700 dólares.
Estas estatuetas valem hoje cerca de 2 milhões de dólares, ou seja, exatamente o que o falcão valia no filme (e mais, também, do que o orçamento completo do filme). Por que? Contêm jóias, tesouros? Não: contêm (na frase famosa de Sam Spade que encerra o filme) “a matéria de que os sonhos são feitos”.
Todas as riquezas humanas são riquezas simbólicas. Valem porque acreditamos que valem. Um cheque ou uma nota de 100 reais só valem isto por uma convenção, um acordo tácito. O papel de que são feitos não pode valer tanto.
Os falcões valem porque o filme tornou-se (indiretamente; não foi feito com este propósito) um enorme comercial despertando nas pessoas o desejo de possuí-los, porque se tornaram símbolos de algo famoso. É o nosso desejo que os torna reais, em primeiro lugar, e depois os torna valiosos.
Uma frase famosa de G. K. Chesterton diz que “os romanos não amavam Roma porque ela era uma grande cidade; ela se tornou uma grande cidade porque eles a amaram”. É o sonho nosso que projetamos nas coisas que as faz crescer de importância e de valor.
A Bolsa de Valores, p. ex., surgiu de início como uma aferição do valor das empresas, e depois virou um sistema de avaliação que depende mais do estado de espírito de compradores e vendedores (seus sonhos, expectativas e ilusões) do que da solidez da empresa em si.
2437) "Drummond: Sentimental" (26.12.2010)
Um dos traços mais curiosos de Carlos Drummond, que se revela tanto nos seus poemas quanto nos vislumbres de sua vida pessoal (entrevistas, depoimentos de amigos, etc.) é a sua capacidade de oscilar instantaneamente entre o funcionário público sério e o menino travesso, um garoto malicioso com veia sentimental. Só para ficar em dois poetas que lhe foram próximos, não vemos com facilidade essa oscilação em Vinícius de Moraes, que aparentava ser só o menino, nem em João Cabral, que aparentava ser só o funcionário carrancudo. Drummond, não. Num estalar de dedos, o Padre Antonio Vieira se transformava em Carlitos. E vice-versa.
“Sentimental” é um poema de Alguma Poesia (seu livro de estreia, que está completando 80 anos) e revela esse lado menino e romântico que ele se divertia em entremostrar, muitas vezes inserindo um poema nesse tom entre dois outros mais circunspectos. “Ponho-me a escrever o teu nome / com letras de macarrão...” Não sei se os supermercados de hoje ainda vendem o macarrão de letrinhas que me divertiu muito na infância, compondo palavras enfileiradas na toalha da mesa, ou, com maior dificuldade, usando a colher para fazer as letras boiarem em fila, já empapadas e amolecidas, no caldo escuro da sopa de feijão. Descobrir na adolescência que O Maior Poeta Brasileiro também fazia isso me trouxe uma bem-vinda sensação de cumplicidade.
É um poema semiótico sobre as dificuldades do amor transformado em linguagem (“Desgraçadamente falta uma letra / uma letra somente / para acabar teu nome!”, “E há em todas as consciências um cartaz amarelo: / ‘Neste país é proibido sonhar’”) e ele reverbera de maneira curiosa num poema posterior de Drummond, incluído em seu livro seguinte (Brejo das Almas). É o poema “As namoradas mineiras”, que mostra um namorado menos romântico, menos sonhador, mais tecnológico e moderno. Esse namorado profissional não enfrenta mais as limitações das letrinhas de macarrão. Ele tem uma namorada em cada um dos 215 municípios mineiros: “Enquanto na Capital um homem indiferente, / frio, desdobrando mapas sobre a mesa, / põe o amor escrevendo no mimeógrafo / a mesma carta para todas as namoradas”. É o contraste entre o artesanato (as letrinhas de macarrão, encontradas e enfileiradas de uma em uma, como nas tipografias manuais do cordel) e o mimeógrafo serializador, a carta-de-amor na era da reprodutibilidade técnica.
No primeiro poema Drummond registra o sonho adolescente do menino que se distrai, brincando de estar apaixonado, durante a ceia. No segundo, imagina a burocratização do amor na vida adulta, o amor do funcionário público, o amor do casamento careta e profissional. O uso da palavra escrita é a ponte entre essas duas fases da vida e duas faces do amor. As letrinhas de macarrão e o mimeógrafo são a face ingênua e a face implacável do Modernismo, um mundo novo que começa com uma aparente liberdade e acaba com massificação
sábado, 25 de dezembro de 2010
2436) Natal 2010 (25.12.2010)
(xilogravura: Lynd Ward)
... e o Natal, sorrateiro, se aproxima
como quem não quer nada, e já querendo;
vem feérico, álacre, metuendo,
amarrado a cetins e prestações.
E o mundo inteiro estende os seus cartões
e mergulha mais fundo no vermelho...
E daí? As vitrines são espelho
do mais fundo desejo encastoado:
o de amar para em troca ser amado
e comprar com presentes um futuro.
Foi-se o tempo em que a noite era de escuro!
Hoje é tudo um Niágara de luz,
e as turbinas de quantas Itaipus
alimentam tamanha Babilônia?...
Na minha treva, brilha só a insônia.
Na minha festa, uma canção: tumulto.
Quando é Natal eu me concedo indulto
e brindo, e canto, e rio, e até abraço.
Esqueça o que escrevi. Faça o que eu faço,
pois é tempo de encontro e ritual.
Dezembro se derrete em água e sal
nas calçadas do Rio, flamejantes,
como os dezembros que vivemos antes
até que chegue o não viver nenhum.
E eu fico aqui, enchendo o meu balloon
com a mesma linha-guia de Teseu
que no dédalo oscuro se atreveu
deixando apenas texto atrás de si;
meu carretel é tudo que escrevi,
uma ponta na mão, outra lá fora.
Olho a janela. Nem sinal de aurora.
Tão somente a bendita escuridão
(toda noite parece a projeção
de um filme que nos rapta e nos define;
a insone madrugada é o ultra-cine
em que o mundo se enxerga refletido
nesse cristal esférico e polido,
a membrana-por-dentro do Universo)
...e cada estrela dá de graça um verso
e assim será por toda eternidade.
Mas da vida eu já vi mais da metade,
e, mais perto do fim que do começo,
trocaria os vinténs do que conheço,
por um salto de volta à estaca-zero.
Vibrar uníssono com o mundo, eu quero.
Seguir sempre pensando, além centúrias.
Venha a vida, suas dores, suas fúrias,
seus desesperos, seu viscoso tédio.
Quero seguir vivendo; meu remédio
é a mesma doença que me esgota.
Do mundo eu não dispenso nem um jota,
um ceitil, um farelo, um grama, um quark.
Quero tudo, o mais punk ou o mais dark,
mas que seja um aval de Estar Aqui.
Quero sempre viver o que não vi,
avançar, bicicleta em corda-bamba,
mergulhar na ladeira que descamba
rumo a tudo (o que inclui o rumo ao nada)
quero a vida, esta veia dilatada,
latejando num só diapasão.
E quanto vai durar meu turbilhão?
Quanto tempo, o meu vórtice antientrópico?
Este esforço tão vão, mesmo ciclópico,
de vencer o duelo com o Ninguém?
Maior do que Solaris era Lem.
Mais complexo que a trama do “Ulisses”
era Joyce, sua dor, suas doidices.
Toda obra de arte é um resíduo
de um tumulto ambulante, um indivíduo,
que passou como passa um redemunho.
Estou vivo. Abro os olhos. Cerro o punho.
Faz um ano somente. O rio passa.
Pouco importa o esforço da barcaça
de tentar contrapor-se à correnteza.
Melhor soltar-se livre que ser presa
ao sonho de remar rumo à nascente.
Logo... estendo o cartão. Compro o presente.
É Natal. Custa nada, ser feliz?
Custa nada, dizer: “É o que eu quis”,
este loop com o verso lá de cima?...
sexta-feira, 24 de dezembro de 2010
2435) Por que escrevemos (24.12.2010)
Escrevemos por dinheiro. Somos mercenários? Não vejo por quê. Um bancário iria passar oito horas no caixa, diariamente, só por idealismo ou para dar sua contribuição ao sistema financeiro? Um político se daria a todo aquele nhém-nhém-nhém somente por amor à pátria?
Todo mundo trabalha por dinheiro: operários, camponeses, professores, balconistas, camelôs, enfermeiros, advogados, taxistas. O X da questão não é “não querer dinheiro”, porque de dinheiro todo mundo precisa. O X é: não fazer nada somente pelo dinheiro, porque isto roça pela prostituição; fazer a mesma coisa em circunstâncias em que não haja dinheiro envolvido; enobrecer e valorizar esse dinheiro.
Sempre que eu ganho um dinheiro com um texto de cordel, por exemplo, eu me sinto na obrigação de reinvestir um pouco dele (e do meu tempo) no cordel, cuja existência me permitiu ganhá-lo.
Escrevemos por vaidade. Para ver nosso nome no jornal, nossa foto na revista, nossa entrevista na TV. Escrevemos para ser reconhecidos em público; “Olha lá... Aquele é Fulano de Tal. Pense num cara inteligente!”. Quem não gosta disso? Eu gosto, e muito. Não importa o nome que se dê: vaidade, orgulho, amor próprio, auto-estima. Todo mundo precisa, lá num porãozinho bem escuro e íntimo, justificar a própria existência diante de si mesmo.
Todo mundo precisa dizer: “eu sou o cara que faz tal coisa, e faz bem”. Sem isso ninguém levanta da cama de manhã. Principalmente no inverno, e sabendo que a conta bancária está no vermelho. Escrevemos para podermos dizer: “Ora dane-se, eu sou o Raio da Silibrina, tão pensando o quê?!”
Escrevemos por missão. A missão nos é imposta de fora para dentro ou de cima para baixo, não importa. Nossa missão quem nos dá são os outros, e disso não tem como fugir. A vida é uma combinação de mares e de ventos levando nosso barquinho. Claro que temos velas e temos remos, mas, mandar no vento ou nas ondas? Nem pensar.
Às vezes pensamos que nossa missão é uma coisa, e a vida nos dá outra, e é nessa outra que descobrimos melhor quem somos. É bom realizar os sonhos, mas é bom também sabermos que podemos realizar coisas com as quais não tínhamos sonhado. Às vezes é até melhor.
Escrevemos por prazer. Nelson Rodrigues dizia que sem sorte ninguém consegue sequer atravessar uma rua. Pois digo eu que sem prazer ninguém sequer conjuga um verbo. O prazer não é constante e contínuo. Escrever é cansativo, desgastante e muitas vezes é como atravessar um deserto. Mas se é o que você gosta de fazer, há sempre a possibilidade de na próxima página ou no próximo parágrafo as coisas se combinarem daquela forma que produz o prazer que buscamos.
O prazer de fazer bem feito e de acreditar (pelo menos) que nunca na História do mundo alguém pensou a frase brilhante que a gente acabou de digitar. O prazer é sempre possível; basta apenas a gente esquecer o dinheiro, a vaidade, a missão, e não parar de escrever.
2434) O código de Kryptos (23.12.2010)
Já comentei aqui na coluna (“O mistério de Kryptos”, 24.6.2005 - http://tinyurl.com/2924br6) o criptograma esculpido nos jardins do quartel-general da CIA, na Virginia. A Agência encomendou uma obra de arte que “produzisse sentimentos de bem-estar e esperança”, e o vencedor da concorrência foi David Sanborn. A obra contém quatro painéis com textos em código, e desde sua criação, há dez anos, o criptograma virou uma mania entre alguns milhares de malucos no país. Três painéis já foram decifrados e o último, um bloco de 97 caracteres, continua mais impávido do que a Esfinge do Egito.
Um artigo no New York Times (http://tinyurl.com/2bdmx58) comenta este fato, e entrevista Sanborn, o qual começou a dar pequenas dicas para facilitar o esforço de decifração. Ele indicou, por exemplo, que as letras de 64 a 69, que são NYPVTT, significam respectivamente BERLIN. Nada mau para arregaçar as mangas e começar um trabalho! Os três outros textos já decifrados são, respectivamente: 1) um texto dizendo “Entre as sombras sutis e a ausência de luz jazem as nuances da iqlusão” (com este erro de digitação, proposital, para confundir os decifradores; 2) uma brincadeira com a localização geográfica do prédio, dando latitude e longitude; e finalmente 3) um longo trecho do egiptólogo Howard Carter em que ele narra o momento em que abriu a tumba de Tutankhamon.
Os criptogramas têm uma aparência aleatória, mas sabemos com certeza que por trás deles há algo que faz sentido. O primeiro aspecto ecoa nossa perplexidade diante da aleatoriedade do mundo real (desde que estejamos dispostos a vê-lo como ele é). Tudo que existe na Natureza está aqui sem intenção da parte de alguém. O segundo aspecto nos garante a recompensa final de que “isto faz sentido”, e, se não a descoberta desse sentido, pelo menos a convicção de que ele existe.
Nada nos assusta tanto quanto o Acaso em seu estado bruto. Nada nos reconforta tanto quanto a certeza de haver uma resposta. Se alguém me mostra uma sucessão aleatória de letras (JDUEYEEOFUNNDKPAOIGFR) é como se me mostrasse uma foto de Júpiter ou do fundo do mar, ou seja, um lugar que está vedado para mim por toda a eternidade. Mas basta alguém me cochichar: “É uma mensagem cifrada...” e esse pequeno caos se transforma magicamente em algo a um passo de distância. Eu posso. Está ao meu alcance. É só ter as ideias certas e fazer o esforço necessário.
Os cientistas agnósticos se maravilham quando descobrem as regularidades espantosas da Natureza. Na Filosofia da Ciência existe um enorme departamento destinado a mostrar de que maneira a Ordem pode brotar do Caos. Organismos altamente sofisticados podem se desenvolver sem a intervenção de uma Inteligência Superior, apenas com um processo de feedback que incrementa as variações bem sucedidas. É como se jogássemos um bilhão de letras para o alto e ao cair elas formassem sonetos de Camões, romances de Alexandre Dumas, a resposta do Código de Kryptos.
quarta-feira, 22 de dezembro de 2010
2433) Cada qual sua auto-ajuda (22.12.2010)
No curto espaço de algumas semanas conversei com duas amigas que estão aderindo aos livros de auto-ajuda. Numa livraria, encontrei com Margarete (nome fictício, para proteger-lhe a identidade) e sentei para um café de meia-hora. Falamos da meteorologia, da vida em geral, e fomos comparar os livros que tínhamos comprado. Ela estava lendo algo que se intitulava (acho) Você não pode parar a chuva. Peguei, constatei a capa, folheei com o polegar e perguntei: “Presta?...” Ela deu uma banguela de dez minutos. Estava comprando o livro para presentear uma amiga; era o quinto exemplar que comprava naquele mês, porque aquele livro tinha mudado sua vida. “Harmonia é a palavra chave”, disse ela, “harmonia com o universo, com o fluir as coisas, com a mudança das estações, harmonia com o tempo. Descobri que eu precisava perder o inconformismo com a realidade. Parar de dar murro em ponta de faca. Fluir com a correnteza, cê tá entendendo? Em vez de nadar, tornar-se uma coisa só com a correnteza”. Foi nessa pisada por um tempão e fiquei olhando para ela. “Claro, Margarete”, falei, “eu acho que cada um tem que encontrar justamente isso: sua harmonia interior”. Ela agarrou minha mão com os olhos brilhando: “Você entendeu tudo!”.
Tempos depois pego o metrô e sento ao lado de Gertrudes, que não via há tempos. Fomos falando uma coisa e outra, até que ela sacou um livro da bolsa. Creio que se chamava A Vida é sua... se você quiser. E ela começou também a pregar para mim as qualidades do livro. Falou que tinha deixado de ser uma pessoa acomodada, passiva, complacente. Que o livro lhe ensinou a criar oportunidades ao invés de esperar que aparecessem; a impor suas próprias condições antes que os outros impusessem as deles; a defender seus interesses numa negociação ao invés de já começar buscando uma solução que conviesse aos dois. “Cada pessoa entra numa disputa pensando 100% em si”, disse ela; “eu entrava pensando 50% em mim e 50% no outro, então estatísticamente estava perdendo pelo placar de 75 a 25%”. Falou que agora “botava pra quebrar” (ela é advogada) e que há seis meses não perdia uma causa.
Vejam só o que é a vida. Porque esta Gertrudes sempre foi (aos meus olhos) a pessoa mais batalhadora e argumentativa que eu já vi; enquanto que Margaret é (sempre foi) uma menina zen, contemplativa, do tipo que fica olhando uma laranja amadurecer. E agora eu encontrava cada uma delas atribuindo a um livro miraculoso um conjunto de qualidades que eu, mero observador imparcial, já via nelas há anos. Imaginei como seria a reação de cada uma delas se lesse o livro da outra; se iriam sentir que aquele outro livro lhes seria benéfico. Pensei depois que existem dois tipos de livros de auto-ajuda: os que mudam nossa vida, quando estamos precisando, e os que simplesmente nos fornecem uma receita, com assinatura ilustre, para um remédio que já tomamos por conta própria desde que botamos o pé no chão do mundo.
terça-feira, 21 de dezembro de 2010
2432) O Homem Bicentenário (21.12.2010)
Este filme de Chris Columbus se baseia na noveleta homônima de Isaac Asimov, que ganhou em 1976 o Prêmio Nebula de ficção científica. É a história de um robô (interpretado por Robin Williams) que ao longo de dois séculos evolui passo a passo até se transformar, se não num ser humano biologicamente idêntico (o que seria quase impossível) pelo menos em alguém tão semelhante a uma pessoa que, nas cenas finais, é assim reconhecido pelo governo. Os numerosos romances e contos de Asimov sobre o “Ciclo dos Robôs” mapeiam essa evolução, começando com os desajeitados robôs de corpo metálico, com aparência de escafandristas, até os andróides com visual humano e interior cibernético. Asimov se serviu disto para fundir suas histórias de robôs com seu outro ciclo, o da “Fundação”, um império galáctico cujos protagonistas humanos (ficamos sabendo depois) eram, em grande parte, meros andróides evoluídos dessa forma.
É interessante notar que o conto de Asimov é de 1976, quando os EUA comemoravam os 200 anos de sua independência, e a palavra “bicentenário” estava por toda parte. Ao invés de comentar os 200 anos transcorridos, Asimov fez uma projeção para os próximos 200 anos. É possível ver na história de Andrew, o robô, um processo de conquista de liberdade, cidadania e direitos humanos que de certo modo ecoa o dos cidadãos norte-americanos após a Independência. A certa altura do filme, o robô (cuja habilidade como artesão o torna milionário, encorajado pelos seus proprietários, uma família liberal) diz que quer comprar sua liberdade. (Como será que se diz “alforria” em inglês?) O patrão lhe diz que ele é livre para fazer o que quiser, e ele retruca que quer um atestado formal de liberdade, explicando: “Milhões de seres humanos morreram para conquistar isso, então deve ser algo muito importante, e eu gostaria de experimentá-lo”.
A noveleta e o filme, portanto, são percorridos por um subtexto político evidente. Um robô é alguém governado de maneira inflexível pelas Três Leis da Robótica, que o obrigam a obedecer os humanos, protegê-los e proteger a si próprio. Já um ser humano é protegido pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, que à época da publicação da noveleta era quase bicentenária também, e que está integrada de forma indissolúvel ao espírito da Revolução Norte-Americana de 1776 e da Revolução Francesa de 1789. Um robô, como um escravo, é alguém que quer deixar de ter apenas deveres para ter também direitos, para ser também um cidadão. Um robô se torna um ser humano não apenas quando conquista tecidos, músculos e glândulas artificiais, mas quando entende, conquista e pratica a cidadania, a liberdade. Até mesmo a contraditória liberdade de, podendo ser imortal, preferir ser como os humanos, sentir dores, envelhecer, morrer. Ele se torna um cidadão por ser, como dizia Edmund Burke ao Parlamento britânico sobre os colonos da América, “incapaz de barganhar a jóia íntima de sua alma”.
domingo, 19 de dezembro de 2010
2431) Drummond: poemas natalinos (19.12.2010)
Fazer poemas sobre o Natal é algo que se espera de qualquer poeta. Um teste de admissão ao Empíreo dos Vates: será que o caro amigo consegue dizer algo de novo sobre um tema tão desgastado? O livro de estreia de Carlos Drummond, Alguma Poesia (cujos leitores comemoram 80 anos de seu lançamento) trazia logo dois. O primeiro, “O que fizeram do Natal”, começa com uma descrição melancólica: “Natal. / O sino longe toca fino. / Não tem neves, não tem gelos.” A descrição do ambiente se prolonga cheia de diminutivos: “coitadinho”, “burrinho”, “estrelinha”, “o deus nuzinho”) certamente ecoando a sensibilidade maternal das beatas e as dimensões do presépio. É somente no final que a guilhotina modernista decapita a cena: “mas as filhas das beatas / e os namorados das filhas, / mas as filhas das beatas / foram dançar black-bottom / nos clubes sem presépio”. Note-se a eficácia da repetição da frase. Quando o poeta repete “mas as filhas das beatas”, é como que considerando a menção aos namorados das filhas uma lembrança repentina e incômoda, e quisesse às pressas retomar o discurso interrompido: “Mas, como eu ia dizendo, as filhas das beatas...” E essa história de dançar black-bottom, seja isto o que for, é Modernismo puro.
O outro poema, talvez um dos mais divertidos de Drummond, é “Papai Noel às avessas”, em que Papai Noel entra de madrugada pela porta dos fundos, examina a casa com olho de profissional, belisca alguma comida na cozinha, rouba os brinquedos das crianças e vai embora com o saco cheio às costas. Como desmistificação do espírito natalino, é uma ótima piada. Como narrativa, é excelente, e poderia ser usado como guia num oficina de roteiro para curta-metragem. Drummond sempre teve um olho cinematográfico e muitos bons momentos de sua poesia são decupagens perfeitas, de cortes precisos, de uma cena visualmente bem concebida.
Há no poema os pequenos detalhes de linguagem com que Drummond dá tapas de luva na poética do século anterior. Veja-se o uso de expressões plebeias (“que nem”, “pegar fogo nas”, ao invés de “atear fogo às”) e de imagens dessacralizadoras para além da mitologia propriamente religiosa (“um presidente da república de celulóide”). Quando o poeta diz que “a eletricidade bateu nas coisas resignadas”, que um galo “comunicou o nascimento de Cristo” e que o luar “abençoava os legumes”, cada expressão destas é uma pequena deseducação imposta ao leitor, como quem diz: “desaprenda o jeito antigo de falar dessas coisas, de pensar nessas efemérides, aquilo não existe mais”.
O Modernismo foi um processo de substituir o olhar romântico pelo olho “esperto” com que Papai Noel localiza um queijo e come. Olho de rato, talvez; mas olho vivo, olho malandro, olho finório, olho irônico. Os poetas parnasianos e simbolistas eram tudo, menos espertos. A esperteza não vem do Empíreo dos Vates nem do Parnaso das Musas, vem das ruas, como veio o Modernismo, e para onde ia a poesia de Drummond.
sábado, 18 de dezembro de 2010
2430) “The Unforgettable Fire” (18.12.2010)
Acabei a leitura do livro que, sob esse título, conta a história da banda U2, que por motivos variados é uma das minhas preferidas. Comecei a escutar o U2 por volta de 1991 quando saiu o disco Achtung Baby, e foi essa a minha primeira impressão sonora. Depois veio Pop, que na época achei um disco muito barulhento e preferi suspender julgamento. Mas aí comprei e conheci, meio em flashback, The Joshua Tree, que foi (no pitoresco estilo da imprensa roqueira) o disco que os catapultou para a fama. Do U2 o que eu sempre soube foi que era uma banda irlandesa, envolvida com política. A banda tem Bono, um vocalista melodramático no palco e sagaz fora dele, e The Edge, o homem-guitarra-orquestra, que para mim está para a banda assim como Keith Richards está para os Rolling Stones. A cara é o outro, mas o cérebro é ele. (A banda é complementada por dois galegos, baixista e baterista, que fazem questão de permanecer nos bastidores, coisa rara no rock).
O livro conta a história da banda, onde os rapazes cresceram, estudaram, como se conheceram, etc. E se encerra em 1987, com a explosão de The Joshua Tree e a gravação do filme Rattle and Hum. Os últimos vinte anos estão fora, mas o que me interessava era o começo. Por exemplo, nunca imaginei que a influência religiosa fosse tão forte, mais até do que a política. Houve um momento crucial em que o grupo Cristão Carismático a que pertenciam Bono, Edge e Larry (o baixista Adam estava noutra) exigiu que abandonassem o rock, por ser um culto ao ego. Depois de muita reunião, os três decidiram manter a religião, afastar-se da ortodoxia e continuar tocando.
O livro de Eamon Dunphy é em muitas sentidos uma biografia de fã. Detesto biografia de fã, onde a cada página encontramos parágrafos tipo “Naquela noite, chorando no travesseiro, aquele adolescente rebelde jurou que um dia os adultos incompreensivos haveriam de reconhecer o quanto estavam errados...” É a História escrita de trás para diante, os fatos do passado explicados e coloridos pelos triunfos do presente. O bom biógrafo escreve cada momento da história que conta como se não soubesse o que vai acontecer no futuro, porque é assim que a vida é vivida. Há um apêndice escrito (com sensatez, em geral) por John Waters, que diz tietagens como: “Os Beatles podem ter tido esperança. Os Stones podem ter ansiado por isto. Springsteen pode ter tentado. O U2, porém, SABIA que um dia seria A Maior Banda do Mundo”. Os Sebomatos também sabiam.
Por outro lado, Dunphy é perceptivo e ácido em suas críticas aos excessos decadentes do rock (sexo, drogas, egotrips, mau profissionalismo) e ressalta o lado até meio ascético que o U2 tem (ou tinha – não sei como é agora). Interpretações e ingenuidades à parte, é um livro com muita informação sobre a banda e sobre o contexto religioso-político-social de onde ela emergiu, e isto é o bastante para justificá-lo.
sexta-feira, 17 de dezembro de 2010
2429) A pergunta boba (17.12.2010)
Todos nós, profissionais calejados, rimos quando vemos na TV a jovem repórter principiante (sim, minhas amigas, não é preconceito meu, mas geralmente é uma mulher) perguntando ao entrevistado famoso quem ele levaria para uma ilha deserta ou qual a sua cor favorita.
São perguntas idiotas, mas no estreito mundinho mental em que ela foi forçada a viver, o das revistas-para-meninas e revistas-para-moças, essas perguntas são feitas com enorme frequência. Ela cresceu ouvindo-as e certamente imagina viver numa cultura em que não apenas todo mundo tem uma cor favorita, mas todo mundo se interessa em saber qual é a cor favorita dos outros.
Grande parte das perguntas feitas em entrevistas não são coisas que o público quer saber, e muito menos coisas que o jornalista quer perguntar. São perguntas que ele herdou. Perguntas que passam de geração em geração de repórteres, pelo simples fato de que é mais fácil usá-las de novo do que ter uma ideia nova.
Grande parte das perguntas feitas em entrevistas não são coisas que o público quer saber, e muito menos coisas que o jornalista quer perguntar. São perguntas que ele herdou. Perguntas que passam de geração em geração de repórteres, pelo simples fato de que é mais fácil usá-las de novo do que ter uma ideia nova.
Além do mais, quem critica jornalistas não sabe o que é todo dia ter que encher aquela página que parece ter um hectare de superfície branca. Todo dia ter que reinventar o mundo a partir do zero. Todo dia ter que perguntar algo a desconhecidos, a alguém sobre quem o repórter leu meia lauda de informações colhidas às pressas, enquanto sobe no elevador para bater na porta do entrevistado.
Daí que muitas vezes o repórter faz uma pergunta besta e o entrevistado dá uma resposta áspera. Perguntaram a Nelson Rodrigues “que recado ele daria aos jovens”. Nelson jogou este paralelepípedo: “Envelheçam!”. Coitados dos jovens, que tiveram de obedecer-lhe a contragosto.
Daí que muitas vezes o repórter faz uma pergunta besta e o entrevistado dá uma resposta áspera. Perguntaram a Nelson Rodrigues “que recado ele daria aos jovens”. Nelson jogou este paralelepípedo: “Envelheçam!”. Coitados dos jovens, que tiveram de obedecer-lhe a contragosto.
O repórter (desta vez imagino que era um rapaz) certamente estava acostumado a entrevistar velhos cheios de conselhos e palavras de ordem.
Consta que alguém perguntou a Ariano Suassuna o que ele achava da Aids, e ele retrucou: “Prefiro Dostoiévski”. Menos mal para o entrevistador, que voltou para a redação com uma resposta pitoresca, ainda que revestida de um certo azedume. Ariano é o tipo do escritor que se irrita com a mania de se querer saber a opinião de um escritor sobre qualquer assunto, como se pelo fato de ser escritor ele tivesse obrigação de ter uma frasezinha espirituosa ou uma idéia revolucionária a respeito de qualquer tema.
Há autores que raramente dão entrevistas (Rubem Fonseca, Guimarães Rosa, etc). Não é por serem antipáticos ou misteriosos, é para não terem que dizer “onde encontram idéias para escrever tantos livros” ou “tipo, como foi que pintou essa coisa, assim, de escrever”.
Consta que alguém perguntou a Ariano Suassuna o que ele achava da Aids, e ele retrucou: “Prefiro Dostoiévski”. Menos mal para o entrevistador, que voltou para a redação com uma resposta pitoresca, ainda que revestida de um certo azedume. Ariano é o tipo do escritor que se irrita com a mania de se querer saber a opinião de um escritor sobre qualquer assunto, como se pelo fato de ser escritor ele tivesse obrigação de ter uma frasezinha espirituosa ou uma idéia revolucionária a respeito de qualquer tema.
Há autores que raramente dão entrevistas (Rubem Fonseca, Guimarães Rosa, etc). Não é por serem antipáticos ou misteriosos, é para não terem que dizer “onde encontram idéias para escrever tantos livros” ou “tipo, como foi que pintou essa coisa, assim, de escrever”.
O problema não é a dificuldade de dar uma resposta, é o constrangimento de ter que escutar a pergunta. Perguntaram a Jorge Luis Borges o que faria se fosse nomeado Ministro da Economia da Argentina, e ele explicou: “Renunciaria”. Acho que é por isso que se perguntam tantas coisas, mesmo bobas, aos escritores. Eles só dão respostas pra lá de sensatas.
quinta-feira, 16 de dezembro de 2010
2428) Mark Twain e a Internet (16.12.2010)
Uma diversão de quem mexe com ficção científica é tentar descobrir em textos antigos a menção a alguma coisa que não existia no tempo em que o texto foi escrito, e que pode ser interpretada como um vislumbre profético.
Não que a função da FC seja predizer o futuro, assim como a função da literatura policial não é provar que o crime não compensa. Mas um escritor inteligente e bem informado é capaz de extrapolar o desenvolvimento ou as consequências futuras de algo que já existe no seu tempo.
No saite Cracked tomei conhecimento de um conto de Mark Twain que eu tinha (em The Science Fiction of Mark Twain, Archon Books, 1984, editado por David Ketterer) mas nunca lera.
O conto é “From the London Times of 1904” e foi publicado em 1898. A história, contada sob a forma de reportagem, é vista como uma prefiguração da Internet.
Um homem, o Capitão Clayton, é acusado do assassinato de seu desafeto, o cientista Szczepanik, inventor do “telectroscópio”. Este invento, depois de demonstrado na Feira Mundial de Paris, em 1901, é conectado à rede telefônica mundial. Diz Twain:
“Este sistema aperfeiçoado de telefone sem limite de distância foi introduzido, e assim os fatos diários de todo o planeta tornaram-se visíveis a qualquer pessoa, podendo ser comentados, também, por testemunhas separadas por qualquer número de léguas”.
Condenado à morte, Clayton pede para passar seus últimos dias observando o que se passa no resto do mundo através do telectroscópio.
“A conexão foi feita com a estação telefônica internacional, e dia a dia, noite a noite, ele chamava um recanto do globo, depois outro, e observava sua vida, estudava suas estranhas paisagens, falava com seus habitantes, e percebia que graças a esse maravilhoso instrumento ele era quase tão livre quanto as aves no ar, mesmo prisioneiro por trás de cadeados e barras de ferro”.
O desfecho da história é quando o condenado reconhece, num evento que está acontecendo em Pequim (a coroação do Czar da China!), a suposta vítima, Szczepanik, que tinha fugido à fama mudando de nome e de aparência; e tudo acaba bem.
A simultaneidade do processo é destacada por Twain, após o reconhecimento:
“Um mensageiro levou a notícia a Szczepanik no pavilhão, e era possível ver a perplexidade em seu rosto enquanto escutava. Então ele veio até a outra extremidade da linha, e falou com Clayton e com o governador e os demais”.
Nada mau para quem escrevia em 1898, não é mesmo?
O telefone era uma invenção recente, mas de rápida propagação nos EUA. Em 1890 cobria toda a Nova Inglaterra; em 1893 tinha alcançado Chicago, em 1897 Minnesota, Nebraska e Texas, e em 1904 cobria todo o continente.
Twain reúne em seu conto despretensioso algumas ideias básicas, se não da Internet inteira, pelo menos do Skype: a malha telefônica, a transmissão de imagens e sons em tempo real, a possibilidade de visualização de cenas e de diálogo áudio-visual entre pontos remotos do globo.
quarta-feira, 15 de dezembro de 2010
2427) Os monstros do colonialismo (15.12.2010)
(Marlon Brando interpretou no cinema tanto Moreau quanto Kurtz)
Ter lido num intervalo de alguns meses estes dois livros me mostrou o quanto são semelhantes em forma e substância, se bem que na maioria dos ensaios que consultei sobre cada um não vejo menção ao outro. Refiro-me a A Ilha do Dr. Moreau de H. G. Wells (1896) e O Coração das Trevas de Joseph Conrad (1899). O livro de Wells é uma novela de ficção científica com ressonâncias alegóricas; o de Conrad é uma novela realista com ressonâncias góticas (no sentido do triunfo de forças malignas e incompreensíveis sobre as racionalizações da mente civilizada).
O livro de Wells é o relato de Prendick, um náufrago que vai parar numa ilha remota no Pacífico onde Moreau, expulso da comunidade científica pelas suas experiências cruéis, dedica-se a vivisseccionar animais para transformá-los em arremedos de seres humanos, produzindo assim um Homem Cão, um Homem Macaco, um Homem Leopardo, além de híbridos semi-humanos como a Hiena Suína e o Cavalo Rinoceronte. Todos eles têm uma consciência rudimentar equivalente à de um ser humano bronco, todos falam, todos andam eretos e são proibidos de comer carne. Para mantê-los sob controle, Moreau inventa uma Lei que eles repetem sem cessar, terminando o rosário de proibições com o refrão: “Então não somos Homens?”. Qualquer violação da Lei será punida com o retorno à Casa da Dor, o laboratório onde foram criados (as cirurgias que os transformam em semi-homens são feitas sem anestesia).
O livro de Conrad fala da viagem de Marlow, o narrador, em busca de Kurtz, administrador de um remoto entreposto comercial na África. Kurtz é elogiado por todos que o conhecem como sendo um homem notável, artista, intelectual, idealista, dedicado a civilizar os africanos. Quanto mais se aprofunda na floresta, ao longo de meses, Marlow vai se espantando com a desumanização absurda que os negros sofrem pela invasão branca; e quando encontra Kurtz percebe que este se transformou num contrabandista de marfim, assassino, e que participa com os negros de rituais abomináveis (que o livro não explica quais são, mas que horrorizam o narrador).
Moreau é morto pelos homens-animais; Kurtz morre de doença na viagem de volta, murmurando: “O horror, o horror”. Heart of Darkness é uma versão realista da alegoria mostrada em “A Ilha do Dr. Moreau”. O choque entre civilizados e primitivos, ao invés de civilizar estes últimos (ao invés de transformar “animais” em “homens”) gera um atrito espantosamente cruel que acaba por animalizar a todos. É da natureza do colonialismo usar um discurso missionário e civilizatório (“estamos aqui para transformá-los em criaturas superiores, iguais a nós”) e uma prática que acaba por desumanizar os próprios civilizados. No livro de Wells, Prendick foge da ilha e retorna a Londres, mas fica vendo os homens-animais em cada rosto com que cruza nas avenidas. São dois livros para se ler e se lembrar em conjunto, quase como se um fosse o espelho reverso do outro.
terça-feira, 14 de dezembro de 2010
2426) “Outland – Comando Titânio” (14.12.2010)
Este filme de FC dirigido por Peter Hyams (o mesmo de 2010, o ano em que faremos contato) não é um grande filme mas tem uma narrativa tensa, que combina bem com a ambientação claustrofóbica. (Ele concorreu ao Prêmio Hugo de “Best Dramatic Presentation”, perdendo para Os Caçadores da Arca Perdida.) Pode funcionar muito bem num curso ou numa oficina de roteiro, para discussão de elementos de gênero, porque é uma mescla perfeita de três gêneros: a FC, o filme policial e o faroeste.
A história se passa numa estação mineradora, num satélite de Júpiter de onde se extrai o titânio. A estação é visitada uma vez por semana por uma nave que traz material, suprimentos, turmas de operários para revezamento, etc. Sean Connery é O’Niel, um chefe de segurança (chamado de xerife, “marshal”) recém-chegado após algumas mortes misteriosas terem ocorrido. Logo de cara ele percebe que tem alguma coisa muitíssimo errada, e que isso provavelmente tem a ver com Sheppard, o diretor da mina. Não demora muito para ele descobrir que uma droga ilegal está sendo contrabandeada para a estação, sob a orientação do diretor. A droga faz os operários produzirem o dobro, mas depois de algum tempo provoca alucinações e ataque homicidas. O’Niel prende alguns dos traficantes, mas descobre que Sheppard chamou dois matadores profissionais que deverão chegar na próxima nave, daí a 70 horas. Ele começa a percorrer os corredores pressurizados da base, falando com uns e com outros, e descobre que ninguém, entre as centenas de operários da mina, está disposto a arriscar a vida para ajudá-lo.
O filme é FC pela ambientação interplanetária, futurista. É um thriller policial pela trama em que se sucedem mortes misteriosas, uma investigação científica, o desmascaramento dos criminosos, o confronto violento. É a categorização como faroeste que coloca o crítico numa situação curiosa. Pode haver faroeste sem cavalos, cowboys, índios, etc.? Pode ser faroeste sem a ambientação rural dos EUA no século 19? Eu diria que sim. O filme partilha com o faroeste uma característica mais sutil: a ambientação da vida na fronteira (no caso, uma fronteira interplanetária), e a presença de um representante do Estado tentando manter a ordem num ambiente em que vigora a lei-do-mais-forte. Há também, colateralmente, a citação explícita a Matar ou Morrer (1952), em que um homem sozinho aguarda, sem ajuda, a chegada dos bandidos que vêm para matá-lo.
Tão típico quanto os cavalos, para o western, é esse conflito e essa superposição de dois sistemas sociais. Um drama em que homens de um rude ambiente rural têm que se dobrar a uma lei remota, concebida nos gabinetes do mundo urbano. (É este o grande tema de clássicos como O Homem que Matou o Facínora de John Ford.) O western não é só a luta entre cowboys e índios, é também a história da luta entre a pistola do Sertão e o Código Penal trazido pelos representantes de um “contrato social” mais amplo.
domingo, 12 de dezembro de 2010
2425) Vou ali comprar cigarro (12.12.2010)
Eram 18:43 de uma noite de verão quando o dr. Amadeu Felinto, dobrando o jornal que lia, ergueu-se da poltrona, vestiu de novo o paletó, caminhou pelo corredor e, chegando à sala onde sua esposa, D. Marilena, estava pondo a mesa do jantar, anunciou: “Vou ali comprar cigarro e já volto”. Ela assentiu com um gesto, continuou a distribuir talheres e pratos no leiaute costumeiro, mas, ao ouvir a porta da frente se fechando, estremeceu.
Toda mulher sabe. Está gravado nos seus neurônios com o mesmo dedo de fogo com que os Dez Mandamentos estão gravados nas Tábuas de Moisés. Se um dia, antes do jantar, um marido sair dizendo que vai comprar cigarros, ele nunca mais volta. Dobrará aquela esquina pela última vez e nunca mais será visto. Sumirá na multidão, perderá o nome e o rosto, as impressões digitais, o código genético. Virará uma sombra sem substância, como o Wakefield do conto de Hawthorne. Um espectro que uma maldição milenar e enigmática proíbe de retornar ao lar.
D. Marilena puxou uma cadeira e sentou-se, pois percebeu que a vertigem a faria desabar. As crianças brincavam no quarto; a TV estava ligada baixinho na sala; o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era tranquilo em redor de D. Marilena. Só não estava tranquilo seu coração, corroído pelo mais sulfúrico dos ácidos: o pavor diante do Estava Escrito. Naqueles minutos cruciais que determinaram toda sua vida futura, ela equacionou bens contra despesas, a poupança contra as mensalidades escolares dos filhos, as prestações e seu minguado salário de enfermeira. Traçou um plano de resistência às ironias e falsa piedade das vizinhas. Localizou com presteza uma dúzia de conhecidos que em breve começariam a ligar: “A sra. precisa sair, espairecer, a vida continua...”, e para cada um rascunhou uma desculpa convincente. Não, não amaria mais ninguém depois de Amadeu. Mesmo sendo abandonada de forma tão humilhante. Até o momento daquela derradeira e fatídica frase, ele tinha sido um marido ideal. Mesmo tendo sumido para sempre, era o marido ideal.
Ergueu-se. Foi à cozinha verificar se água do café já fervera. Passou o café numa mistura de piloto automático e sonambulismo, calculando quando pediria pelo carro, pois não sabia dirigir. Descartou de início quaisquer proventos da seguradora, pois sabia que seguradoras só pagam diante de cadáveres, não de homens que saem para comprar cigarros e se transformam em ectoplasma.
Pôs o café na garrafa térmica, arrolhou-a. Foi à porta do quarto. Clarice e Amadeuzinho brincavam, nos últimos momentos felizes que teriam. Não deram pela sua presença; como reagiriam à ausência do pai? D. Marilena foi até a sala, e teve a sensação de estar vendo aqueles móveis e paredes pela primeira ou pela última vez. A porta se abriu. Dr. Amadeu entrou tranquilo, cigarro aceso nos dedos, olhou-a: “Que cara é essa?” Ela arrancou um suspiro, foi até ele, retirou um fiapo de sua lapela e disse apenas: “Demorou...”
sábado, 11 de dezembro de 2010
2424) “Praça Saens Peña” (11.12.2010)
Tenho visto poucos filmes brasileiros, mas um que me deixou pensativo foi Praça Saens Peña de Vinicius Reis. A Tijuca foi um dos primeiros lugares em que morei no Rio, quando foi inaugurada a estação Saens Peña do metrô. Criei um afeto pelo bairro; e mesmo radicado na Zona Sul, que adoro, sinto-me pessoalmente ofendido sempre que o pessoal da ZS faz piada (e como faz!) com quem é da Zona Norte. Quanto mais você se afasta da Zona Sul, mais o Rio fica parecido com qualquer cidade brasileira. Em geral, quando se diz “o Rio de Janeiro” é apenas uma abreviatura de “a Zona Sul do Rio de Janeiro”. As praias.
O filme de Vinicius Reis fala de pessoas que moram num apartamento apertado, sonhando com casa própria, pagando as contas do mês na ponta do lápis. O marido, Paulo (Chico Diaz) dá aulas num colégio e fica entusiasmado quando uma editora o incumbe de escrever um livro sobre o bairro. Começa a recolher histórias, e a certa altura aparece entrevistando Aldir Blanc, tijucano ilustre. A esposa, Maria Padilha, fica meio jogada para escanteio e acaba tendo um caso com um rapaz cujo apartamento posto à venda ela foi avaliar. A filha única do casal sente o que está se passando e perde o diálogo com os pais.
Raras cenas do filme se passam fora da Tijuca. Tudo é contado de uma maneira intimista, aparentemente banal. O filme fala de droga (um tijucano, interpretado por Guti Fraga, queixa-se de que a polícia invadiu-lhe o apartamento e fuzilou seu filho no meio da casa). Mas a violência não aparece. A não ser, reiteradamente, nas conversas. Isto é realismo. É assim que grande parte dos cariocas vivencia a violência: falando sobre ela, todos os dias.
Uma cena resume o espírito deste tipo de cinema. A mulher casada vai à noite no apartamento do rapaz solteiro. Os dois sentam de lados opostos de uma mesinha pequena, encostados à parede, com uma iluminação meio fraca, ficam tomando cerveja na lata e comendo queijo. Charme zero. O rapaz pega a faca, tira uma fatia de queijo, come, oferece a ela... E os dois vão, para usar uma expressão em voga, “se conhecendo melhor”. É o que os romancistas franceses chamavam de “tranche de vie”, uma fatia de vida, um pedaço intensamente real, pelo menos na minha realidade, que já tomei muitas vezes aquela cerva.
O cinemão, no entanto, se tiver que colocar uma cena de um casal se conhecendo melhor, impõe que seja num colorido bar na praia, ou um restaurante metido a besta com maître de black-tie e champanhe na flauta. A cena do filme de Vinicius Reis me comoveu porque me deu aquela sensação cada vez mais rara no cinema de hoje, de ver algo importante que não é tratado como espetáculo. Que parece uma coisa acontecendo de verdade. Atores, diálogos, luz, gestual, o subtexto implícito empurrando um para o outro... Parece besteira, mas é até um negócio meio amedrontador, porque a gente vê o quanto o cinema pode, quando quer, se aproximar de nossos momentos mais íntimos.
sexta-feira, 10 de dezembro de 2010
2423) WikiLeaks e os Little Brothers (10.12.2010)
(Julian Assange)
O mundo está acompanhando a batalha de Julian Assange, o cara do saite WikiLeaks, perseguido por governos do mundo inteiro, tendo à frente o dos EUA, por divulgar documentos secretos. Num mundo cada vez mais impregnado de informação transmissível (os telefonemas que dou, as compras que faço no cartão, os saites que acesso, os emails que recebo, as calçadas que percorro acompanhado por câmaras de segurança) somos massacrados pela impressão permanente do gigantismo do Estado. O mundo parece um imenso Big Brother, de olho nas pegadas que deixamos até dentro de nossa casa, copiando nossas impressões digitais em cada copo de plástico em que bebemos água, lendo nossos pensamentos e os transmitindo por encefalograma para algum misterioso Serviço de Segurança que arquiva tudo para utilização futura na hora em que a gente cometer a primeira bobagem.
O lado positivo desse 1984 permanente é o próprio gigantismo da máquina. Quanto mais peças tem uma máquina maior a possibilidade de que uma delas dê defeito, e, como afirmou genialmente Conan Doyle, nenhuma corrente é mais forte do que o mais fraco dos seus elos. Um acúmulo tão espantoso de informação aleatória não pode passar muito tempo sem deixar vazar (vazar = to leak) filetes de uma informação que o Sistema preferiria deixar desconhecida e inalcançável.
O WikiLeaks cumpre uma função parecida com a que Daniel Ellsberg fez ao roubar e divulgar os famosos “Papéis do Pentágono” sobre o Vietnam, ou o que Mark Felt, da CIA, fez ao se transformar no “Garganta Profunda” que ensinou o caminho das pedras para a investigação que levou à renúncia de Richard Nixon. São centenas de milhares de gravações, transcrições de conversas reservadas, grampos de telefones e o escambau, envolvendo presidentes de vários países, ministros, embaixadores, agentes de segurança. Sem falar em vídeos revelando atrocidades de guerra e saias-justas dos bastidores da política.
Fala-se tanto em liberdade de imprensa. Nenhuma imprensa é livre para revelar essas coisas. É algo fluido demais para ser provado, ou explosivo demais para ser manipulado em público. Às vezes uma revelação assim queima nosso adversário, mas também respinga napalm em meia dúzia de aliados ou inocentes neutros. A imprensa, mesmo livre, se auto-censura, se auto-limita e com isto, também, se auto-protege. Um desses grandes jornais (o New York Times, acho) tinha como lema: “All the news that’s fit to print”, “Todas as notícias adequadas para publicação”. Vejam o espírito retentivo e puritano desabrochando em toda sua plenitude! O lema do Wiki Leaks poderia ser: “Todas as notícias que é possível publicar”.
Num mundo governado pelo Big Brother, sugiro batizarmos essa galera do WikiLeaks como The Little Brothers. Os pequenos irmãozinhos que vão à luta, rasgam a barriga de governos corruptos, ditatoriais ou invasivos, e mostram a sujeira no interior de suas entranhas. Ninguém escapa.
quinta-feira, 9 de dezembro de 2010
2422) A renovação da linguagem (9.12.2010)
Li num jornal literário este comentário de um crítico, que transcrevo sem citar a autoria, porque na verdade não me interessa contradizer o autor, e sim examinar por que motivo eu, que já disse a mesma coisa numerosas vezes, sempre o fiz com um certo desconforto e insatisfação. Dizia ele: “Fulano de Tal, com seu livro, não se propõe a renovar a linguagem literária. Ainda bem, porque de tentativas de renovação da linguagem a literatura brasileira está saturadíssima. Hoje em dia, essa prática se tornou lugar comum entre os escritores ‘bem’ pensantes. Mas afinal, depois de Guimarães Rosa e Clarice Lispector, isso seria possível?”
Me parece verdadeiro, mas também me parece insatisfatório. Tenho uma certa impaciência com tentativas de “renovar a linguagem literária brasileira”, como se isto fosse tarefa para cada novo escritor que desembarca nas livrarias. Ao mesmo tempo me pergunto: será que acabou tudo com Guimarães Rosa e Clarice? Será que fechou a tampa, e não é preciso renovar mais nada? E, aliás, por que usamos o termo “renovar”? Renova-se uma literatura como quem renova um guarda-roupa durante uma viagem? Ou como quem renova um modelo de automóvel (tirando o acendedor de cigarros e botando um tocador de MP3, p. ex.)?
Não sabíamos (acho) que era possível ver o mundo com olhos como os de Kafka, até que Kafka surgiu e nos mostrou. Não imaginávamos (acho) que perscrutações íntimas, contraditórias, paradoxais e sem-desfecho, como as de Clarice Lispector, pudessem resultar em boa literatura; os livros de Clarice mostraram que sim. Muita gente escrevia romances sobre detetives durões que investigavam crimes brutais, cercados por mulheres sedutoras; eram livros rústicos, sensacionalistas, descuidados. Parecia impossível produzir boa literatura com ingredientes assim, mas Raymond Chandler mostrou que não. O romance regionalista rural era considerado um gênero estático, impermeável ao resto do mundo, sobre pessoas de baixo Q.I.; Guimarães Rosa mostrou que não.
Muitas tentativas de renovar a linguagem literária se frustram porque os autores, paradoxalmente, querem escrever parecido com o autor da renovação mais recente. A renovação se auto-destrói, cai no vazio, porque a comparação é inevitável entre o original e a cópia. O que seria de Rosa se tentasse escrever parecido com Afonso Arinos, e de Chandler se tivesse querido adotar o estilo de Dashiell Hammett, a quem admirava?
Não sei se todos os grandes autores queriam renovar nada. Queriam apenas se exprimir (acho) dentro de suas habilidades e seus limites. A literatura é uma Língua Geral cuja sintaxe e vocabulário pode receber acréscimos de qualquer autor. Os grandes individualistas trazem sua maneira de ver e maneira de dizer. Algo disso se incorpora. Mas aposto que eles não estavam querendo “renovar” nada. Escreviam assim porque não conseguiriam escrever de outra forma.
quarta-feira, 8 de dezembro de 2010
2421) “The Diamond Age” (8.12.2010)
Li apenas dois livros de Neal Stephenson, e é como se tivesse lido vinte. Faz tempo não vejo um autor capaz de tal densidade informacional por página. Nevasca (“Snow Crash”), publicado pela editora paulista Aleph, com 470 páginas, tem mais peso específico do que a “Trilogia da Fundação” de Asimov. E agora acabei de ler este outro, que em 499 páginas é capaz de equilibrar uma balança que tenha no prato oposto toda a obra de Charles Dickens. A comparação não é despropositada, porque Dickens é uma das grandes inspirações de Stephenson para este romance vitoriano passado no futuro. Um dos prazeres proporcionados pela FC é essa possibilidade de decolar em voos históricos e sociológicos de longo alcance. Os escritores realistas acham que a FC é minúscula porque estão caminhando a pé e dela só veem o risco branco no céu azul.
A época da história é mais ou menos o ano 2100, quando a humanidade controla a nanotecnologia a ponto de todo mundo ter em casa, assim como tem hoje um microondas, um “compilador de matéria”. Basta digitar as coordenadas e ele produz dentro de alguns minutos uma calça, um par de sapatos, uma cadeira... Há limitações tecnológicas que impedem este aspecto de virar uma “varinha de condão”. A parte principal da história ocorre na região que hoje é Shangai, então habitada por uma sociedade neo-vitoriana de lordes e damas sofisticadíssimos a ponto de não recorrerem aos “compiladores”: roupas, móveis, etc., são todos feitos à mão, coisas que só pessoas riquíssimas podem encomendar.
Um Lorde lamenta que a nova geração esteja ficando muito acomodada e encomenda, para a futura Rainha, a criação de um e-book que não apenas contenha toda a formação cultural necessária a uma menina pré-adolescente, mas também estimule nela um temperamento rebelde, contestador, quase subversivo. Essa tarefa cai para J. P. Hackworth, que produz um Super-Livro, uma mistura de e-book e console-de-games em que a garota lerá histórias, aprenderá qualquer técnica (desde artes marciais até idiomas estrangeiros) e ao longo dos anos irá formando seu caráter através das etapas sucessivas das aventuras de “Princesa Nell”, um gigantesco game educativo, em que contracena (falando) com atores contratados para isto.
A grande reviravolta, que ocorre a cerca de 1/3 do livro, é que Hackworth tira uma cópia clandestina deste Super-Livro, e ela vai parar nas mãos de uma menina pobre, que passa a ser educada por ele ao mesmo tempo que a Princesa. Não, leitor, não diga que já viu como vai terminar. Isto é só a ponta deste iceberg barroco-cinemascope (como dizia Brian Aldiss), que vai em muitas direções (todas surpreendentes e plausíveis) ao mesmo tempo. O futuro descrito por Stephenson é estonteante em sua riqueza, diversidade e coerência de detalhes. As aventuras são divertidas, e existe aqui um pouco mais de maturidade do que em Nevasca, outro excelente livro mas que às vezes parece feito apenas para garotos que jogam joguinhos.
terça-feira, 7 de dezembro de 2010
2420) Flu: campeão por exclusão (7.12.2010)
E assim chegamos ao final de mais um Campeonato Brasileiro meia-bomba, decidido sem emoção em jogos onde os candidatos ao título enfrentavam times desmotivados ou rebaixados. Assim como ocorreu ano passado com meu Flamengo, o Fluminense foi campeão por exclusão. No confronto dos pouco competentes, foi o que errou menos, o que tropeçou menos, e, assim como o Flamengo, nem pode dizer que conquistou um título, mas que o título perdido por todos acabou caindo no seu colo. Que aproveite. (O Flamengo é um exemplo de como não aproveitar.)
Durante muitos anos sonhei, eu, fã do futebol, com um Campeonato Brasileiro disputado em pontos corridos, acreditando que fosse esta a fórmula mais adequada para premiar o melhor time. Hoje tenho minhas dúvidas, não quanto à eficácia da fórmula para escolher o vencedor (premia-se o time mais regular e mais consistente, o que não são critérios de se jogar fora), mas quanto ao resultado disto para o espetáculo.
Há muitos jornalistas que torcem o nariz para o presente modelo, e acho que estou começando a torcer o meu também. No ano passado vi um Flamengo travado e sem convicção ser campeão diante de um Grêmio que claramente não queria beneficiar seu rival, o Inter. Este ano vi um Fluminense travado e nervoso ser campeão diante de um Guarani tecnicamente fraco, psicologicamente entregue. Jogos chochos, sem técnica, sem emoção. Tive saudade daquelas decisões de alguns anos atrás em que só dois times podiam ser campeões: os dois que entravam em campo para se enfrentar, “com a faca nos dentes” e na ponta dos cascos.
Não digo isto para menosprezar o título tricolor. Foi merecido pela campanha sólida, mesmo com repetidos escorregões e tropeços em jogos bobos, que só não lhe custaram a Taça porque os adversários fizeram exatamente a mesma coisa. Foi merecido, por exemplo, por Conca, um jogador que não é nenhum Maradona mas é um exemplo de jogador que eu gostaria de ter no meu time, tanto pela técnica quanto pelo caráter (ou pelo menos o que percebemos dele pelas suas atitudes).
O título do Flu carimbou um valor simbólico especial para o técnico Muricy. Como os torcedores se lembram, logo quando Dunga foi demitido da Seleção após o fracasso na Copa a CBF convidou Muricy para ser o técnico, e ele aceitou. Isto foi às 10 da manhã. Ao meio-dia, Muricy informou a CBF de que o Fluminense não o liberava, e que ele, como tinha contrato assinado, tinha que manter a palavra e obedecer à ordem do Fluminense para que ficasse.
Muitos técnicos guardariam um gosto de azinhavre na boca e, mais adiante, iriam tirar o pé do acelerador, numa vingança quase inconsciente contra a diretoria que cancelou seu maior sonho profissional. Muricy trabalhou como um mouro e deu a Taça ao clube que o prejudicou. Isto deve significar alguma coisa, num futebol tão egoísta quanto o nosso. Não acho Muricy o sujeito mais simpático do mundo, mas é a ele (não à diretoria do Flu) que dou meus parabéns.
domingo, 5 de dezembro de 2010
2419) O repentista Bob Dylan (5.12.2010)
Toda criação poética é uma oscilação contínua entre o racional e o intuitivo, entre decisões planejadas e coisas que parecem cair do céu.
“Toda”, no caso, é um exagero, porque se há milhões de poetas há milhões de poéticas; mas essa regra, que vale para mim, deve valer pra mais gente.
Lembrem aquela famosa cena de Sociedade dos Poetas Mortos, em que um dos alunos de Robin Williams diz ser incapaz de escrever versos. Ele manda o garoto ficar de pé e fechar os olhos, manda-o girar sobre si mesmo e ficar dizendo o que lhe vem na cabeça, até que o garoto, que era o mais travado da turma, começa a balbuciar coisas e acaba gritando uns versos bem aceitáveis. Ele larga o garoto e diz no seu ouvido: “Nunca se esqueça disto”.
Nunca se esqueça de quê? De que a poesia não é necessariamente uma atividade de concatenação entre conceitos abstratos, como o raciocínio filosófico. Ela pode ser, e frequentemente é, uma justaposição de imagens concretas e contraditórias. A arte está em juntar as duas coisas.
Em seu livro Positively 4th. Street, David Hajdu descreve como Bob Dylan compôs muitas das canções de seu primeiro disco genuinamente folk-rock, Bringin’ it all back home. Diz Hajdu, citando uma testemunha:
“Ele espalhava dúzia de fotografias arrancadas de jornais e revistas, arrumando-as no chão, e sentava entre elas com o violão. Começava com uma levada musical simples, um acompanhamento de blues que ele pudesse repetir indefinidamente, e então fechava os olhos. Não copiava as coisas literalmente das fotos, mas usava a impressão deixada por elas como um modelo visual para produzir uma linguagem caleidoscópica. Parecia estar cantarolando qualquer coisa que lhe vinha à cabeça, frases desconexas mas com sentimento poético. Quando surgia algo que lhe agradava, ele rabiscava aquilo às pressas, para não perder o clima, e fazia isso até ter versos suficientes para uma canção”.
Parece maluquice, mas cada um de nós tem métodos semelhantes. Um dos meus preferidos é ficar rasqueando o violão, cantarolando uma melodia sem letra, escolher um objeto qualquer no ambiente e procurar palavras que rimem com ele. Num instante a letra começa a aparecer.
O método de Dylan (e o de Robin Williams) nos lembra que o motor da poesia é o intelecto, mas o combustível é a emoção. Um, sem o outro, não funciona. O intelecto é capaz de ficar uma tarde inteira parado, ponderando um adjetivo, mas quem escreve sabe que precisa botar o motor em movimento. Para isso, uns recorrem ao violão, outros ao uísque, outros a um baseado, outros a uma vida cotidiana insone e caótica que os deixa 24 horas por dia num estado alterado de consciência. Os surrealistas praticavam a escrita automática.
Tudo é válido para “passar primeira” e tirar o cérebro da imobilidade. A grande criação literária (para muitos, é claro; nada disso se aplica a todo mundo) ocorre na terceira marcha. O problema é chegar lá.
sábado, 4 de dezembro de 2010
2418) As ilusões da memória (4.12.2010)
(cartum de Bennett)
O passado é tão modificável quanto o presente, pela simples razão de que o único lugar onde o passado existe é em nossa memória.
Às vezes lembramos, com nitidez absoluta, coisas que nunca ocorreram a não ser em nossa imaginação. Mexemos nesses arquivos o tempo inteiro, e, assim como fazemos com os arquivos do computador, o mero ato da consulta nos faz corrigir um detalhe aqui, aumentar um espaço acolá, mudar uma formatação...
Quando terminamos de acessar aquela lembrança, a mente pergunta se queremos salvar as alterações, e dizemos que sim. Invariavelmente. Lembrar um fato é modificar essa lembrança.
Num livro de Christopher Chabris e Daniel Simons se conta um episódio ocorrido com Hillary Clinton, que durante a campanha presidencial de 2008 recordou uma viagem que fez à Bósnia em 1996, na cidade de Tuzla, onde teria descido do helicóptero sob fogo de atiradores de elite, correndo abaixada para proteger-se.
Repórteres que fizeram a mesma viagem publicaram fotos da chegada de Hillary, em que ela aparece sendo recebida diante do helicóptero, cumprimentando autoridades e beijando uma criança que leu um poema.
A questão (levantada na campanha política) era: Hillary estaria sendo vítima de uma auto-ilusão, ou estaria mentindo deliberadamente?
Não posso responder pela ex-primeira dama, mas a verdade é que todo mundo, no momento em que está contando uma história, costuma enfeitar, corrigir, completar, arredondar, esticar, resumir.
Não por intenção deliberada de contar mentiras, mas porque em nossa mente (ou pelo menos na mente de uma porção de pessoas) a função fabulatória muitas vezes entra de parceria com a função recordadora. Quando contamos um episódio em que estivemos envolvidos, somos levados a visualizar as cenas, reconstituir a sequência de ações, recompor fragmentos de diálogos.
Quando alguém nos faz perguntas sobre detalhes que no momento não tínhamos observado, acabamos preenchendo essas lacunas por conta própria. Não por má fé, mas porque é mais fácil preenchê-las e continuar narrando do que interromper a narração, tentar lembrar, encontrar dificuldade, estancar a conversa...
Lembramos que Fulano chegou em nossa casa, alguém pergunta como, e dizemos: “Chegou de táxi”. Não sabemos (e depois alguém pode provar que não foi verdade). Mas para não quebrar o ritmo da narrativa, preenchemos esse espaço vazio sem pensar muito, e vamos em frente.
Ademais, Freud (cuja estudos sobre falsas memórias são famosos) mostrou que nossa mente costuma misturar episódios diferentes num só. Lembramos de maneira vívida um fato da infância, mas noutra casa, e não na casa em que ele de fato ocorreu. Lembramos ter visto um filme na companhia de alguém; não foi, foi com outra pessoa.
Lembramos sempre fragmentos, e às vezes somos forçados a pegar duas ou três cenas incompletas para com elas compor uma lembrança falsamente completa, mas que parece fazer sentido, tem uma aparência satisfatória.
Assinar:
Postagens (Atom)