quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

1459) “Santiago” (16.11.2007)



Este documentário de João Moreira Salles tem como tema aparente a vida do ex-mordomo de sua família. Como muita gente sabe, o diretor é filho do banqueiro e diplomata Walter Moreira Salles, fundador do Unibanco, que foi embaixador do Brasil nos EUA e ministro da Fazenda no governo João Goulart. João, juntamente com seus irmãos (entre eles Walter Salles, o diretor de “Central do Brasil”), foi criado na mansão da família no bairro da Gávea, no Rio. Durante toda sua infância e adolescência, o pai manteve uma intensa vida social com jantares e recepções formais a políticos, artistas e “socialites” brasileiros e estrangeiros. Recepções em que o mordomo Santiago, nascido na Argentina, era o maestro, arranjador e regente.

Os filhos cresceram e foram embora, o embaixador faleceu, a família se dispersou, e a mansão da Gávea transformou-se na sede do Instituto Moreira Salles, onde há galerias de arte, um arquivo de material áudio-visual e uma sala de cinema. O filme de João Moreira Salles começa mostrando a casa e recordando os tempos da infância; depois vai a um pequeno apartamento de Copacabana e entrevista o mordomo Santiago, agora aposentado, o qual compartilha com a câmara as suas recordações.

Esta era, pelo menos, a idéia original do filme conforme João o concebeu há cerca de 15 anos. Depois de longas entrevistas com Santiago, o projeto foi arquivado. Não avançava. Não se resolvia. O diretor achava que havia alguma coisa errada. Santiago faleceu. E de repente o diretor retomou a idéia original, mas em vez de concluir o filme que tinha em mente no passado fez uma reflexão sobre ele, sobre Santiago, e sobre si próprio. Eis porque o título oficial do filme, hoje, é Santiago – Reflexão Sobre o Material Bruto.

Descrever em detalhe o que acontece no filme seria impossível no espaço desta coluna, e tiraria do espectador o prazer de assistir à simultânea construção e desconstrução de um filme diante dos seus olhos. João Moreira Salles exibe e critica o material que filmou, as perguntas que fez, as respostas que conseguiu, o modo como impôs no passado, sobre o pobre mordomo argentino, a dupla autoridade de Patrão e Entrevistador sobre um mero Serviçal e Entrevistado. Se em alguns momentos Santiago é visto de um modo pouco favorável, meio que “pagando um mico”, o constrangimento não respinga sobre ele, e sim sobre o diretor que exigiu dele que “fingisse ser natural”.

“Santiago” é um meta-documentário sobre João Moreira Salles e sua impossibilidade de fazer um filme sobre seu ex-mordomo (que ainda o chama carinhosamente de “Joãocinho”). Há uma despersonalização reforçada pelo fato de que a narração na primeira pessoa (“Quando comecei a fazer este filme sobre a minha infância e a casa onde a vivi...”) a voz que escutamos não é a do próprio João, e sim a de seu irmão Fernando. O filme é a crítica de um filme que não foi feito e a crítica do diretor que não conseguiu fazê-lo. Não há muitos assim.

1458) Os prêmios literários (15.11.2007)



Lendo os diários que Adolfo Bioy Casares manteve durante décadas de convivência com Jorge Luís Borges, é curioso constatar o quanto os prêmios literários argentinos – que para nós, aqui do outro lado do mundo, são desconhecidos e irrelevantes – tiravam o sono do grande escritor. Borges era dividido entre uma enorme modéstia da-boca-pra-fora e uma enorme necessidade de reconhecimento público. Passou a segunda metade da vida ansiando por um Prêmio Nobel que nunca veio. A Academia Sueca o ignorou, segundo alguns, por suas opiniões políticas controversas (os suecos adoram os escritores de esquerda, ou pelo menos os que se rebelam ostensivamente contra algum governo), e segundo outros pelo fato de que não escreveu romances, e por algum motivo os suecos achavam que um simples escritor de contos não merecia o prêmio.

Em 1957, na expectativa da concessão dos Prêmios Nacionais de Literatura, dizia Bioy Casares: “Quando estou sem Borges, esqueço desse assunto. Ele está muito mais certo de ganhar seu prêmio do que eu do meu, mas pensa o dia inteiro no assunto. Talvez a razão seja justamente esta: tem mais esperanças. Outra razão: é mais caviloso do que eu. Outra: estes assuntos lhe interessam mais do que a mim. Outra: tudo lhe interessa mais do que a mim”. Há uma certa melancolia nesta frase final. Borges, embora mais velho que Bioy (tinha 58 nessa época), era menos “blasé”, menos aristocrático. Tinha uma atitude mais infantil quanto aos prêmios, tanto no bom quanto no mau sentido.

Luís Buñuel conheceu Borges na Espanha, nos anos 1920, no círculo literário formado em torno de Ramón Gómez de la Serna. Ele não ia muito com a cara de Borges, a quem considerava “presunçoso, adorador de si mesmo, exibicionista, reacionário”. E diz: “O Prêmio Nobel repete-se como uma obsessão nas suas respostas aos jornalistas. É absolutamente claro que sonha com ele”. Esta já é uma reflexão “a posteriori”, porque Borges só se tornou candidato real ao Nobel depois de 1960.

Mas a melhor história a este respeito é do norte-americano John Barth. Em 1983 ele estava presente a uma palestra de Borges na Universidade de Baltimore, justo na semana em que o Nobel foi concedido ao inglês William Golding. Os anfitriões, que sabiam da frustração de Borges em nunca ter recebido o prêmio, fizeram o possível para não tocar no assunto durante os jantares e as solenidades acadêmicas. Mas depois da conferência de Borges, para uma platéia repleta de estudantes, foi inevitável que um deles pedisse a palavra e fizesse a temível pergunta: “Sr. Borges, mais uma vez o senhor foi preterido da hora da concessão do Prêmio Nobel. O que acha disto?” Borges deu um sorriso vago para a platéia que não podia enxergar e disse: “Sabe, eu sou candidato há tantos anos... Tenho a impressão de que eles pensam que já me deram esse prêmio”. E Barth comenta: “Uma resposta de alto nível, dada por um ‘gentleman’ de alto nível”.

1457) “Sonhos de Einstein” (14.11.2007)


Este livrinho do físico Alan Lightman (Companhia das Letras, 1993) utiliza a cidade de Berna (onde Einstein vivia quando formulou sua Teoria da Relatividade) como cenário de pequenas vinhetas sobre o Tempo. Einstein aparece em pequenos interlúdios, episódios banais de sua vida. No restante do livro, o que temos são pequenas descrições sobre diferentes modos de vivenciar o Tempo, todos eles previstos na Teoria da Relatividade ou resultantes dela. Lightman faz o que inúmeros escritores de livros de divulgação científica fizeram antes dele: transpor para nosso universo “macro” os fenômenos de dilatação e de compressão da massa, do tempo e do espaço que ocorrem em dimensões “micro”. Só que ele o faz com um tratamento literário mais sofisticado.

Cada capítulo recebe uma data, como se fosse um sonho que Einstein tivesse tido naquela noite; o período vai de abril a junho de 1905, que foi o chamado “Annus
Mirabilis”, em que Einstein publicou quatro ensaios científicos que mudaram a Física e toda a Ciência do século 20 (ver “O ano milagroso de Einstein”, 15.10.2005). Os sonhos descritos por Lightman nos fazem sentir o deslumbramento e a perplexidade de um cientista que descobre que o universo não tem um só sistemas de leis, mas dois: um que vigora para os objetos grandes, como nós mesmos e o mundo que nos cerca, e outro que vigora para os objetos muito pequenos, como as partículas sub-atômicas. Imaginar como seria nosso universo se nele vigorassem as leis do micro-universo é um exercício de imaginação e de literatura fantástica.

No sonho de 3 de maio, por exemplo, as relações de causa e efeito podem se inverter, de acordo com a posição do observador. Leis severas baixadas pelo governo são seguidas por um aumento da criminalidade, dando a impressão de que a causa veio após o efeito. No sonho de 26 de abril, as pessoas descobrem que o tempo passa mais devagar nos pontos mais afastados do centro da Terra, o que as leva a morar nas encostas dos morros ou em prédios mais altos, para que seu envelhecimento seja retardado. No sonho de 14 de maio, imagina-se um lugar em que o tempo transcorre mais lentamente à medida que nos aproximamos do seu centro, e ali o tempo pára por completo.

O conhecimento detalhado que Lightman parece ter das cidades suíças dá um caráter vívido a essas pequenas fábulas, porque ele se refere com fluência ao nome das ruas, das praças, às padarias, floristas e escritórios, o que dá uma superfície realista às situações fantásticas que ele descreve. E suas parábolas não se limitam a situações einsteinianas; ele imagina também situações em que uma vida humana transcorre ao longo de um único dia, ou em que os humanos são imortais, ou em que o tempo é rígido e imutável. São contos curtíssimos que tanto valem pela revelação científica que nos fornecem quanto pela delicadeza humana com que cada vinheta é concebida e executada.

1456) O violão de Ingres (13.11.2007)


Num universo alternativo, talvez abríssemos o jornal para ler que o famoso clarinetista de jazz Woody Allen costuma relaxar nos fins de semana dirigindo pequenos filmes com sua câmera digital, usando os amigos como atores. Virando a página, leríamos uma entrevista do artista plástico Carlos Alberto Parreira, recém-chegado de sua exposição individual em Florença, dizendo que o futebol é sua paixão secreta e estava treinando um time amador do Rio. Interrogados por um repórter, eles poderiam comentar: “Pois é, mas essa outra atividade é o meu violão de Ingres”.

Esta expressão francesa surgiu, ao que se diz, pelo fato de que o pintor Ingres costumava tocar violão nas horas vagas, para relaxar, para desopilar (eita verbozinho horroroso). A pintura era seu ofício, sua profissão, a atividade na qual ele se sentia submetido às maiores pressões e às maiores cobranças. Dele todo mundo esperava sempre a próxima obra-prima. Mas quando sentava no terraço e sobraçava o violão, mestre Ingres ficava por ali, sem compromisso, bebericando um bordô e cantando seu “Frère Jacques”, ou sei lá que músicas se podia cantar ao violão na França do século 19.

Todo mundo precisa de uma atividade paralela feita à sombra, longe da atenção do público. Advogados que desenham, médicos que escrevem romances policiais, políticos que jogam golfe, futebolistas que tocam cavaquinho, professores que fazem teatro... Todo mundo precisa dessas duas coisas: uma profissão e um hobby. Ingres certamente não tocava violão tão bem quanto Paulinho Nogueira ou Luís Cambeba, mas tocava por puro e simples prazer, sem se sentir com a menor obrigação de ser um craque como eles. Einstein não tocava violino? Richard Feynman não tocava bongô?

O ideal seria fundir as duas coisas, porque muitas vezes a profissão oficial do indivíduo é cumprida a contragosto – pelo dinheiro, por um senso de obrigação social, ou porque o cara já criou para si todo um círculo profissional do qual não consegue escapar. Mas ser bem pago para fazer o que mais gosta é algo que qualquer indivíduo colocaria, em princípio, como um objetivo de vida.

Ingres, por exemplo. Um dos seus quadros mais famosos é “A Banhista”, uma mulher seminua, de costas, sentada na beira de uma cama. O surrealista Man Ray criou uma foto retocada intitulada “O Violão de Ingres”, um brilhante trocadilho visual com tudo que comentei acima. (Ver em: http://angesetdemons.canalblog.com/images/violon_ingres.jpg. Ele mostra uma mulher nua, numa posição semelhante à da modelo de “A Banhista”, tendo desenhadas nas costas aquelas aberturas sinuosas em forma de “S” alongado que existem nos violinos, violoncelos e outros tipos de instrumentos de cordas, e que servem como uma espécie de guelras para a respiração sonora do instrumento. Um corpo em forma de violão; a mulher, a pintura, a fotografia e a música fundidas numa imagem única, onírica, absurda mas atraente, síntese inalcançável dos desejos contraditórios.

sábado, 26 de dezembro de 2009

1455) “Hotel California” (11.11.2007)


Nunca tinha ouvido falar nessa música até que vi o clip acústico saído nos anos 1990: os Eagles sentados lado a lado no palco, com seus violões e percussões, e a canção sendo puxada por um vocalista que é a cara de Robin Williams. Foi “amor à primeira ouvida”. Depois fiquei sabendo que ela ganhou o Grammy de “Canção do Ano” em 1977 e é considerada um clássico do rock dos anos 1970. “Hotel California” é uma dessas canções em que uma bela melodia evolui ao longo de uma progressão harmônica nítida e satisfatória, culminando num refrão poderoso que incita ao canto coletivo. Um número obrigatório para solos instrumentais e exibição de virtuosismo, como “Bicho de 7 Cabeças” (Geraldo Azevedo & Renato Rocha) ou “Águas de Março” (Tom Jobim).

A letra tem começo, meio e fim, mas ocorre num ambiente alucinatório em que nunca temos certeza sobre o que de fato está acontecendo. Neste aspecto, eu a coloco ao lado de outras obras-primas roqueiras como “A Whiter Shade of Pale” (Procol Harum), “Lucy in the Sky with Diamonds” (Beatles), “Visions of Johanna” (Bob Dylan), etc. O Hotel do título é um local enigmático onde o narrador chega durante uma viagem pelo deserto. Ele vê personagens excêntricos entregues à dança, à festa, às drogas; e no final descobre que pode fazer o “check-out” no momento em que quiser, mas nunca poderá ir embora. Lembra a casa da Calle de la Providencia, em O Anjo Exterminador, a casa de onde ninguém sai; lembra o hotel de O Ano Passado em Marienbad e seus personagens aristocráticos vagando por infinitos corredores.

Descobri um blog (“La Sacoche à Rooroo”) cujo dono se deu o trabalho de reunir e oferecer nada menos de 26 versões desta música, por artistas de diferentes países. O resultado (http://rocknblog.canalblog.com/archives/2006/12/20/3453408.html)
é fascinante. Acho que as canções que mais se prestam para novos arranjos são, paradoxalmente, canções meio pobres de harmonia e melodia, porque o novo intérprete sente-se à vontade para mudar, inovar, interferir à vontade. Já uma progressão de acordes tão bonita e tão característica como a de “Hotel California”, se for alterada, desfigura a música. O desafio é mantê-la, sem cair na mesmice. Eu não sabia, por exemplo, que Bob Marley havia “reggado” esta música, e gostei muito do resultado. Já conhecia a gravação dos Gipsy Kings, que é frenética, ansiosa, cheia de exuberância solística. A gravação dos Scorpions é inesperadamente bem–comportada. Gostei da taciturna e severa versão em polonês de Krzysztof Piasecki; e da descontraída versão instrumental, cheia de banjos e violinos, dos Hayseed Dixie. O representante brasileiro é Emerson Nogueira, com uma versão sem novidades mas muito competente. O Alabama3 faz uma releitura meio Tom Waits, meio hiphop. Parece não haver limites para o que se pode extrair de uma canção que é totalmente nítida quando a ouvimos pela primeira vez e que continua misteriosa após a centésima audição.

1454) As vogais e as consoantes (10.11.2007)


(o manuscrito das "Voyelles" de Rimbaud)

As vogais e as consoantes! Será possível que sejamos tão cegos, tão desfocados, que não percebamos o Segredo transcendental que nos revelam? Rimbaud dedicou um soneto de alquímica simbologia às vogais, mas ainda nos faz falta um poeta de maior fôlego (valha o termo!) que faça o mesmo com as consoantes. Porque juntas estas duas entidades sonoras explicam, como metáforas corporais, lingüísticas, o funcionamento de nossa mente.

Você consegue conceber, caro leitor, uma língua composta apenas de vogais, ou apenas de consoantes? Impossível. Tão inconcebível quando o disco-de-um-lado-só imaginado por Borges, o objeto que existe de um lado mas não existe do outro (não me refiro a “ser invisível”, e sim a não existir mesmo). Podemos fazer brincadeiras, como Ítalo Calvino ao batizar o narrador de suas Cosmicômicas como Qfwfq, ou como a saudação jovial dos surfistas cariocas: “Ó o auê aí, ó!” Mas nunca iremos muito além disso.

A vogal é a Emoção, a consoante é a Razão. Sem uma das duas, ninguém diz nada, ninguém articula ou se expressa, ninguém existe. A vogal é a projeção do ar que temos nos pulmões, é o nosso gesto instintivo de botar para fora algo que temos no peito, e de fazê-lo ruidosamente, despertando a atenção de quem está próximo. E as consoantes são obstáculos que colocamos em torno desses sons, moldando-os, dando-lhes forma, modulando-os, fazendo com eles o que a mão do oleiro faz com a argila mole.

A Emoção cria e a Razão formata. As vogais são o ar em expansão que a razão transforma em ar comprimido, contendo-o, retendo-o, acumulando sua força e dirigindo sua explosão. Por isto que a voz é um instrumento musical: porque se baseia no mesmo princípio. Como a sanfona, em que o ar produzido pelo fole (as vogais) é formatado em notas pelas palhetas e teclas (as consoantes). Como o violão, em que a vibração da corda percutida pela mão direita (a vogal) é retida e modificada pela mão esquerda (a consoante).

Estou exagerando? Acho que sim, pois nem tudo é absoluto de um lado ou do outro. Na própria enunciação de cada vogal básica (á, é, í, ó, ú) já existem diferenças de modulação, ou seja, cada uma já tem algo de “consoante” a modificá-la. E no próprio jogo de consoantes existe uma emissão sonora autônoma: aí estão o zumbido do M, o ciciar do S... Aí está a sutil diferença entre sonoras e surdas que nos permite distinguir o J do X, o D do T, o B do P...

Antes que o meu argumento se estilhace num excesso de exceções e de sutilezas, melhor encerrar a metáfora, melhor carimbar e rubricar aqui o postulado teórico. Quem é que cria – a emoção, ou a razão? Resposta: as duas. Sem a emoção, a razão não passa de um aglomerado de regras e restrições, que não têm o que formatar. Sem a razão, a emoção não passa de ar derramado no ar. Cada vez que falamos, exercemos nossas duas liberdades: a de emitir sons e a de modificá-los, a de controlar nossa expansão através da nossa disciplina.

1453) O pequeno detalhe (9.11.2007)


Há obras que lembram um pouco aquele símbolo do Yin-Yang em que se vê uma gota branca com um ponto preto no centro e uma gota preta com um ponto branco. Ou seja, um elemento que traz em seu núcleo sua própria negação. Parece um pouco com o conceito de “clinâmen” que já comentei aqui (“Clinâmen”, 22.12.2006), aquele pequeno elemento de desordem que, infiltrado num sistema de ordem quase absoluta, garante a este um mínimo de desequilíbrio que lhe assegura a vida, a instabilidade, evitando que se cristalize, imobilize, morra. O filme La Jetée de Chris Marker é uma história de ficção científica ambientada num futuro indefinido, e consiste inteiramente de planos fixos em preto-e-branco. Fotos que se sucedem na tela, enquanto a trilha sonora narra o enredo. Em certo momento, vemos em close-up a imagem de um olho que pisca em câmara lenta. É a única imagem em movimento do filme inteiro.

A Lista de Schindler, de Steven Spielberg, é outro filme com uma belíssima fotografia em preto e branco, registrando as peripécias de um grupo de judeus cujas vidas são salvas por um industrial alemão, o qual, a pretexto de empregá-los em suas fábricas, consegue evitar sua deportação e morte pelos nazistas. Há um momento do filme em que uma garotinha perseguida pelos nazistas deixa esvoaçar um xale vermelho – única imagem colorida de um filme totalmente em P&B.

O filme A última loucura de Mel Brooks (“Silent Movie”), feito nos anos 1970, é um filme mudo, do começo ao fim: a história de um produtor que está fazendo um filme maluco, sem som. O único som em todo o filme é quando o produtor tenta convencer o mímico francês Marcel Marceau a participar do filme e este, ao telefone, grita: “Non!” Ou seja: num filme mudo, a única palavra é pronunciada justamente por um artista que em toda sua carreira se exprimiu através dos gestos e jamais emitiu um som sequer.

O livro Dicionário Kazar de Milorad Pavic foi publicado em duas edições quase idênticas, chamadas “edição feminina” e “edição masculina”. Há um único parágrafo diferente entre as duas, talvez para nos lembrar que o homem e a mulher são fundamentalmente idênticos a não ser por um detalhe... “et vive la différence!”

Por que estes artistas procedem assim, quando lhes seria mais cômodo seguir até o fim a regra que eles mesmos se auto-impuseram? Creio que isto tem a ver com o conceito de “contrainte” (palavra francesa intraduzível: algo como “auto-restrição, auto-limitação, regra proibitiva deliberadamente escolhida”), em que um autor impõe a si mesmo uma regra arbitrária e a segue ao pé da letra. Quando ele introduz uma exceção deliberada, que não é fruto do descuido nem da falta de alternativas, está dizendo que tanto a decisão de se impor uma regra quando a decisão de abrir uma exceção são decisões conscientes, são fruto de seu livre-arbítrio. Ele não cria apenas a obra, mas a lei que governa a obra, e a exceção que reafirma a liberdade do seu gesto criador.

1452) O arco-íris de Feynman (8.11.2007)



Richard Feynman é um cientista citado volta e meia aqui nesta coluna como uma das mentes mais criativas e menos convencionais da Física moderna. Um interessante livro a seu respeito é O Arco-Íris de Feynman de Leonard Mlodinow (Rio de Janeiro, Sextante, 2005) em que o autor narra o período em que foi bolsista no Caltech (California Institute of Technology) onde Feynman trabalhava. Mlodinow era um jovem cientista inseguro quanto ao caminho a seguir; Feynman estava encarando um câncer que já o levara a várias cirurgias e que acabaria por matá-lo alguns anos depois. Os diálogos entre os dois (gravados em fita) são uma das partes mais interessantes do livro.

Feynman costumava dividir os cientistas em dois tipos: os babilônios, que observavam o comportamento da Natureza e tentavam deduzir suas leis ou constantes, e os gregos, que desenvolveram um sofisticado sistema de idéias cuja validade dependia de idéias anteriores (axiomas, postulados, demonstrações lógicas, etc.). Os cientistas de espírito grego procuram teorias matemáticas sobre o Universo, cuja beleza ou elegância os convença de que são verdadeiras. Os de espírito babilônio procuram teorias que expliquem os fenômenos, mesmo que sua demonstração matemática seja pouco ortodoxa. Era o caso de Feynman.

No capítulo 17, Feynman compara a criatividade do cientista com a do escritor. Ele diz que na juventude tentou escrever histórias de ficção. Pegou como modelo um volume de contos populares dos Irmãos Grimm e achou que não seria muito difícil escrever uma daquelas histórias. E ele diz: “Não consegui fazer nada que não fosse uma rearrumação do que já tinha lido. Percebi que infelizmente, quando recombinava aqueles elementos, era incapaz de criar uma trama essencialmente diferente, uma saída criativa, enquanto na história seguinte havia sempre um tipo de surpresa que a distinguia das demais”.

Feynman desistiu porque pelo seu julgamento cada história recolhida pelos Irmãos Grimm tinha um “pulo do gato” que ele não sabia reproduzir. Era-lhe muito mais fácil ser anticonvencional na Física Quântica do que nos contos de fadas. Ao meu ver foi apenas uma questão de desistência prematura, e é possível que uma mente como a de Feynman conseguisse acabar criando algumas histórias aceitáveis. Contos populares como os dos irmãos Grimm (que não foram escritos por eles, como se sabe, mas recolhidos em pesquisas com pessoas idosas de regiões remotas da Alemanha) exibem uma tensão entre o tradicional e o inesperado. Obedecem a estruturas muito rígidas, que já foram analisadas, por exemplo, por Vladimir Propp; mas dentro dessas estruturas, que são complexas, as variações podem ser incontáveis. Feynman desistiu de escrever pelo mesmo motivo por que tantos outros indivíduos não se tornaram escritores: tinham a inteligência para entender o modelo, mas não tiveram motivação emocional para apossar-se dele, desobedecer-lhe, violentá-lo, enriquecê-lo com novidades.

1451) Torça pelo time da casa (7.11.2007)


Recebi uma “Nota à Imprensa” do Movimento Pela Valorização do Futebol Potiguar. A nota protesta contra a admiração subserviente da torcida e da imprensa de Natal pelos times de fora que vão enfrentar os times locais, e dá como exemplo o recente jogo América-RN x Flamengo, em que a imprensa alardeava, com orgulho, que 75% da torcida presente ao Estádio estava torcendo pelo time de fora.

Diz a nota: “Uma vergonha e um péssimo exemplo de jornalismo, como vergonhosa e ridícula tem sido a cobertura esportiva local. Que tenham as suas preferências clubísticas, quer seja pelo América, pelo ABC, Potiguar ou Baraúnas, mas, daí a incentivar o desprezo pelo futebol do RN e a fanfarronice por clubes que não têm nenhuma ligação com a nossa terra, diminuindo a auto-estima dos torcedores potiguares, é demais, senhores. (...) Enquanto que em Pernambuco essa mazela do torcedor misto foi erradicada, por aqui o jornalismo acha belo mostrar na tela da TV um pai flamenguista e uma mãe corinthiana segurando a mão de um filho de três anos que se diz (!) vascaíno. Com essa mentalidade retrógrada, ultrapassada, subserviente, nunca o nosso futebol será grande.”

Meus leitores já questionaram o destaque dado ao Flamengo nesta coluna. Tenho duas desculpas para o fato de ser um “torcedor misto” (que torce pelo time de sua terra mas também é fã de um time do Rio ou São Paulo). A primeira é que não escolhi racionalmente três dos times de que gosto (Treze na Paraíba, Sport em Pernambuco, Flamengo no Rio): herdei-os de meu pai, que era doente pelos três. O único que escolhi foi o Atlético Mineiro, porque fui morar em Belo Horizonte aos 19 anos e por acaso um dos times de lá era Galo e alvinegro.

A segunda razão é que moro no Rio de Janeiro, mergulhado num turbilhão flamenguista. Acompanho o dia-a-dia do Flamengo pelo rádio, TV, jornal, papos de elevador, de táxi, de botequim, encontros com amigos... Não posso viver o dia-a-dia do Treze com a mesma intensidade.

Mas... torcer pelo Flamengo contra o Treze?! Nunca de núncaras, senhoras e senhores! Nas poucas vezes em que minhas duas paixões principais se enfrentaram, ergui com nobreza o invicto pavilhão alvinegro do Galo da Borborema, e nada neste mundo me faria aderir aos invasores. Assino embaixo do que o pessoal de Natal escreveu. Antigamente discutíamos se era ético torcer pelo time de fora quando este enfrentava nossos adversários tradicionais (Campinense, Botafogo de João Pessoa, etc.) Mas pelo que vejo os torcedores de hoje torcem pelo Flamengo até quando este vem enfrentar o clube local pelo qual eles dizem torcer. Considero isso falta de auto-estima, e grave sintoma de passividade, de colonização cultural. Simpatizar com um time carioca ou paulista é normal, mas tenho pena de qualquer paraibano que prefere a vitória de um time de fora sobre o seu próprio time. Duvido que um flamenguista torcesse pelo Barcelona contra o Mengo, no Maracanã. Os cariocas têm personalidade.

1450) Os crimes de Skidmore (6.11.2007)


Quando David Lynch mandou ao ar nos anos 1980 sua série de TV Twin Peaks ele pegou no contrapé todos os espectadores e críticos para quem a criminalidade doentia nos EUA era privilégio das desumanizadas metrópoles, enquanto nas cidadezinhas do interior repousava o coração pacato e democrático da verdadeira América. Lynch passou o rodo por cima dessa falácia e mostrou que também no coração remoto da América fervilha um ambiente sombrio de crueldade mórbida. Este ambiente já era familiar aos leitores e espectadores dos filmes de terror, desde os romances de Stephen King até filmes como Massacre da Serra Elétrica e outros parecidos.

Vi na imprensa uma matéria curiosa sobre a cidadezinha de Skidmore (Missouri). Crimes bárbaros têm ocorrido ali nos últimos anos. Nos anos 1980, a cidade vivia aterrorizada por um valentão chamado McElroy, que agredia todo mundo. McElroy foi morto a tiros numa rua central, diante de inúmeras pessoas, mas ninguém declarou ter visto de onde partiu o tiro. Em 200, Wendy Gillewater foi morta a pontapés pelo namorado, que agora cumpre prisão perpétua. Em abril de 2001, um rapaz de 20 anos desapareceu e não foi mais encontrado, embora um “serial killer” da região tenha sido acusado de sua morte. O crime mais recente foi o assassinato de uma mulher grávida cujo feto foi arrancado do ventre.

Tudo isto seria chocante, mas não surpreendente, se Skidmore fosse do tamanho de Campina Grande. Acontece que a cidade tem apenas 350 habitantes, o que lhe dá o índice mais elevado de crimes brutais “per capita” nos EUA. O xerife da cidade confessa, constrangido, que em qualquer lugar do país as pessoas lhe dizem: “Ah, você é de Skidmore? Aquela cidade dos crimes violentos?”

Não podemos discutir a origem da violência específica de Skidmore sem conhecer a cidade. Mas podemos extrapolar desse fato uma constatação provisória. Os crimes violentos não são sempre conseqüência da pobreza, da falta de instrução, do desemprego, da impessoalidade e frieza das grandes cidades. Mesmo em lugares onde todos estes fatores estão ausentes, crimes bárbaros podem acontecer. Acontecem em Skidmore, acontecem na Suíça, na Suécia ou em qualquer outro aparente paraíso de estabilidade social. Num pacato vilarejo europeu um maluco invade um local público e fuzila dez pessoas. Quando reduzimos o emprego e a miséria, quando damos educação, motivação, cultura, senso de valores, estamos sem dúvida eliminando grande parte da violência em nosso mundo – mas não toda. Eliminamos os crimes sociais, mas não os crimes individuais. Existe no ser humano (em muitos seres humanos) uma espécie de bicho feroz preso por uma corrente. Diferentes condições ambientais e diferentes histórias de vida fazem com que um certo indivíduo, num certo lugar, sinta o bicho acordar, atirar-se para a frente, partir a corrente e fugir ao controle. São crimes quase impossíveis de prever e de reprimir.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

1449) “Nighthawks” (4.11.2007)


Uma esquina deserta, de madrugada, num cruzamento de ruas estreitas onde todas as lojas estão fechadas e às escuras. Ocupando o centro e o lado direito do quadro, um café iluminado por luzes fluorescentes. Através das vidraças altas e extensas, vemos o balcão de madeira com banquinhos redondos enfileirados. Apenas quatro pessoas estão ali. Dentro do balcão, um barman com uniforme e bonezinho branco está curvado, aparentemente lavando algo na pia. Diante dele, um homem de terno escuro e chapéu cinza e uma mulher alva, ruiva, de vestido vermelho. Na outra lateral do balcão, de costas para o observador, vê-se outro homem, também de terno e chapéu.

O quadro é “Nighthawks” (algo como “Predadores, ou Aves de Rapina Noturnas”), e foi pintado em 1942 por Edward Hopper, homenageado agora em Nova York com uma retrospectiva. A obra de Hopper é numerosa e variada, e este quadro sempre me fascinou. Somente quem já “fez a noite”, quem se deu o trabalho de passar madrugadas inteiras andando a pé pelo centro velho de uma cidade, tomando uma cerveja aqui, um café acolá, e puxando papo com os boêmios da madruga, pode entender o fascínio e o mistério desta cena. (Que pode ser vista em: http://www.artchive.com/artchive/H/hopper/nighthwk.jpg.html).

Já vi todo tipo de interpretação. Para Fulano, o quadro mostra um café aconchegante, onde as pessoas encontram calor humano e simpatia na presença de meros estranhos. Para Sicrano, mostra a solidão desesperadora das grandes cidades, com pessoas taciturnas e depressivas evitando os olhares umas das outras. Para Beltrano, mostra o deflagrar de um triângulo amoroso que redundará em crime, com o barman servindo de testemunha involuntária e indiferente. Análises freudianas se basearam no fato de que Hopper pintou o casal usando como modelos ele mesmo e sua esposa. Também sugerem que o homem de costas é um Duplo, um “Doppelgänger” do outro. Ele é livre, solteiro, altivo, enquanto o outro, tenso e carrancudo, está visivelmente num beco-sem-saída conjugal.

Quando ainda não lhe sabia o título, batizei este quadro de Deadline at Dawn (“Prazo-limite ao amanhecer”), título de um livro policial de Cornell Woolrich (1944, sob o pseudônimo de William Irish) que transcorre entre a meia-noite e a aurora, em Nova York. Um homem conhece uma mulher num night-club. Os dois descobrem que são da mesma cidade do interior e que detestam Nova York. Apaixonam-se, e decidem voltar no primeiro trem da manhã para a terra natal. Mas ele se envolve num crime, é perseguido pela polícia e tem até o amanhecer para descobrir o assassino e provar sua inocência. Os dois saem pela cidade, numa corrida contra o relógio, percorrendo bares, cafés, em busca de pistas.

Na madrugada, as pessoas de bem estão dormindo: os pais de família, as donas de casa, os velhos, as crianças. A madrugada é dos predadores e daqueles que não os temem. Só sai à rua quem tem negócio, ou quem está à procura do improvável.

1448) O soneto anagrama (3.11.2007)





(o quadro de Leutze)

A intersecção da Literatura com os quebra-cabeças (jogos em que uma regra arbitrária precisa ser seguida à risca) nos dá os palíndromos, os lipogramas e outros barroquismos já comentados nesta coluna. 

Folheando o magnífico livro de Douglas Hofstadter Le Ton Beau de Marot (New York: Basic Books, 1997), que examina problemas abstrusos de linguagem e tradução, encontrei um soneto de um tal David Shulman, intitulado “Washington Crossing the Delaware”. O título alude a uma famosa pintura a óleo de E. G. Leutze que retrata um momento da Guerra da Independência norte-americana em 1776, quando George Washington cruzou com suas tropas o Rio Delaware para pegar de surpresa as tropas britânicas.

Não transcreverei aqui o soneto inteiro. Para ilustrar minha tese (que é a mesma de Hofstadter) basta-me o primeiro quarteto, que assim diz: 

A hard, howling, tossing water scene: 
strong tide was washing hero clean. 
‘How cold!’ Weather stings as in anger 
O silent night shows war ace danger!

Os versos dizem algo como: 

Uma cena fluvial árdua, cheia de uivos e de agitação: 
uma poderosa maré lavando por inteiro o herói. 
‘Que frio!’ O tempo dá agulhadas, como que furioso. 
Oh, noite silenciosa, que mostra ao ás da guerra o perigo! 

Não boto a mão no fogo por esta tradução, porque o texto original me parece truncado, sem beleza. (Quem quiser o soneto todo é só pedir.)

Mas... Faça uma pausa, amigo. Confira as letras de cada verso, e perceba que cada uma das quatro linhas citadas acima é um anagrama perfeito (ou seja, contém exatamente as mesmas 29 letras, inclusive as repetições) do título do soneto. 

E o soneto todo é assim: suas catorze linhas são catorze anagramas do próprio título, e conseqüentemente todas são anagramas umas das outras. E o soneto inteiro retrata, de maneira aceitável, a cena descrita. É aquilo que os franceses chamam de “tour de force”, uma demonstração fenomenal de habilidade.

Isto é poesia? Não sei. Tecnicamente é, pois se trata de um soneto que obedece às regras básicas da forma, ainda que não seja um grande soneto, ou sequer um bom soneto. 

Coloca uma questão curiosa: um péssimo poema é poesia? O que define a presença da poesia: a presença de um conjunto de regras, ou a qualidade literária do resultado? 

O texto de Shulman pertence a uma zona intermediária entre a literatura e o que eu chamo de “ludismo verbal”, que inclui desde os travalínguas dos repentistas até os caligramas (poemas cujas palavras criam um desenho na página) dos poetas barrocos portugueses ou de Guillaume Apollinaire.

A façanha de Shulman talvez só seja possível numa língua como o inglês, mais monossilábica que a nossa. Duvido que alguém consiga compor em português um soneto com quinze anagramas (título mais catorze versos) que faça um mínimo de sentido. 

(Pronto, já sei que acabo de atrapalhar a vida de meia dúzia de malucos, os quais de agora em diante se dedicarão a provar que é possível, sim.)





1447) A Copa de 2014 (2.11.2007)



Liguei a TV para acompanhar a confirmação do Brasil como sede da Copa do Mundo de 2014, e fiquei entusiasmado. Na delegação que representava nosso país estavam o presidente Lula, o presidente da CBF Ricardo Teixeira, o técnico Dunga, o craque Romário... e o mago Paulo Coelho! Agora sim, eu fico confiante. Com Paulo Coelho na comissão técnica, duvido que alguém nos tire esse título.

Mas, futebol à parte, eu desconfio desses mega-eventos. Primeiro, acho que essa história de construir ou reformar uma dúzia de estádios acaba resultando na costumeira festança das empreiteiras e dos atravessadores. Um estádio de 50 milhões acaba custando 100, porque outros cinqüenta têm de ser empregados no pedágio da burocracia, onde cada trâmite de processo, cada liberação de verbas, cada rubrica de fiscalização tem que ser comprada a peso de ouro. Copa do Mundo no Brasil é uma excelente notícia para esse pessoal. Agora mesmo tive de ir fechar a janela da sala, devido ao ruído ensurdecedor das rolhas de champanha de mil reais a garrafa pipocando Brasil afora.

Em segundo lugar, a enxurrada de turistas endinheirados que aflui para um evento desse porte é uma tentação irresistível para nosso submundo. Lembram as matérias mostrando como as casas de prostituição proliferaram na Alemanha durante a Copa do ano passado? Se é assim na pátria de Lutero, avalie como vai ser aqui, na pátria de Bruna Surfistinha. E olhem que estou falando no lado (digamos) inofensivo do problema. Se a gente extrapolar essa situação para o âmbito dos traficantes e vendedores de drogas, dos batedores de carteiras, dos assaltantes a mão armada, dos gatunos de hotel, das quadrilhas de seqüestro-relâmpago... É um pouco como fazer uma maratona de natação para dez mil participantes na praia de Boa Viagem. Os tubarões agradecem.

Voltando ao aspecto futebolístico, a Copa vir para cá em 2014 nos traz uma boa e uma má notícia. A boa notícia é que dificilmente perderemos o título, mesmo jogando sob a sombra tenebrosa dos fiascos de 1950 e de 2006. A má notícia é que a Copa de 2010 já está perdida por antecipação, porque, resultados no campo à parte, existe um sutil direcionamento nessas disputas “aconselhando” Fulano a perder agora para ganhar depois. Os leitores mais ligados hão de recordar que previ, nesta coluna, que nossa Seleção perderia em 2006 e 2010 caso tivesse chances de sediar a Copa em 2014. A primeira parte da minha profecia já se cumpriu, de maneira inesperada até para mim: uma das seleções mais “galácticas” que já montamos entregou o ouro aos bandidos, de mão beijada. Como, e por quê? Fiquei sabendo hoje.

Se o Brasil se distanciasse muito no número de títulos, a disputa perderia a graça. Antes de 2006 tínhamos cinco títulos, contra três da Itália e três da Alemanha. A Itália subiu para quatro. Profetizo que a Alemanha ganhará a próxima, mas que no Maracanã ninguém nos tira o título, a não ser que algum adversário escale Obdulio Varela.

1446) A economia de Zinaldo (1.11.2007)


Eu comparo o Capitalismo Selvagem a uma floresta tropical, onde florescem as espécies animais e vegetais mais improváveis. O Capitalismo é aquela “selva selvaggia” lembrada por Dante, em cujo interior um poeta extraviado acaba encontrando o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. Ou seja: tem de tudo. Com a Divina Comédia, o poeta de Florença inculcou na nossa cultura o interessante conceito de que o Paraíso existe, mas para chegar a ele é preciso passar pelo Inferno. Tem gente que, por medo desse estágio intermediário, acaba recuando e refugiando-se no limbo do ateísmo. Questão de escolha.

Vejam o que é escrever de improviso – eu fico falando em Dante Alighieri quando meu propósito era falar sobre Zinaldo, que estudou comigo no Estadual da Prata e a quem encontro vez por outra quando retorno a Campina. Zinaldo está hoje mais gordo e menos grisalho do que eu. Sempre de bom humor, freqüenta o Miúra nos fins de semana e o Chope do Alemão após o expediente na repartição pública onde bate ponto. Ganha pouco, sustenta mulher e três filhos, e vive numa economia na ponta do lápis, uma balança de ourives capaz de registrar a entrada ou a saída de cada centavo.

Zinaldo é chamado pelos amigos de “amarrado”, “unha-de-fome”. Dizem que se ele agarrar um Alka-Seltzer e pular numa piscina o comprimido não corre o menor risco, porque ele não abre a mão nem por um decreto. Usa há dez anos as mesmas camisas e os mesmos sapatos. Quando chega a conta no bar, diz: “Vou pagar uma cerveja...” e os amigos pagam o resto, porque o adoram. No aniversário de sua mãe, Dona Zilda, leva-a ao shopping e paga-lhe uma banana-split.
Acontece que Zinaldo, vivendo nessa corda-bamba financeira, não resiste a uma liquidação. Quando vê uma dessas vitrines anglófilas anunciando: “SALE – 50%!!!” ele entra de imediato e compra um cinto, uma meia. Pega livros em bibliotecas e os xeroca, porque sai mais barato que comprar o livro. Copia todos os DVDs das locadoras, porque sai mais barato pagar 1 real no DVD virgem do que 20 ou 30 no filme propriamente dito. Promoção é com ele mesmo. Quando aparece na Internet uma campanha de passagem aérea “por 50 reais” ele parcela em doze vezes no cartão uma passagem para Foz do Iguaçu ou para a serra gaúcha, viagens que não estavam nos seus planos. Tudo para fazer economia.

Na última vez em que bebemos juntos, no Ceboleiro, Zinaldo pegou um guardanapo e me fez um retrato aterrorizante de sua situação financeira. Ponderei que ele acabava gastando mais do que devia, seduzido pela possibilidade de estar gastando pouco. Disse-lhe que quando um produto de 200 reais é oferecido por 50 é porque deve ter custado 30, e o lojista abriu mão do lucro delirante para garantir uma margem mais realista. Disse-lhe que esse Capitalismo acha mais prático tirar um real de 50 milhões de pessoas do que 50 milhões de reais de uma pessoa só. Zinaldo não entendeu. Ou não acreditou.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

1445) A tecnologia dos corvos (31.10.2007)


A revista Science publicou uma pesquisa feita por cientistas da Universidade de Oxford na Nova Caledônia (Oceano Pacífico), investigando os hábitos alimentares de uma espécie de corvo. Segundo eles, os corvos são capazes de fabricar e guardar instrumentos rústicos que os auxiliam na busca de alimento. A pesquisa foi feita com o auxílio de uma câmara digital minúscula presa ao corpo da ave, que depois é solta na floresta e algum tempo depois capturada de novo. Isto dá aos pesquisadores acesso visual a atividades impossíveis de reproduzir em laboratório: um corvo buscando comida em seu habitat natural.

Descobriu-se que os corvos arrancam pequenos galhos, cortam fora as partes excedentes e depois os dobram para introduzi-los no ocos das árvores, conseguindo assim capturar lagartas e larvas de besouros. Também costumam procurar e curvar pequenos pedaços de arame com o mesmo fim. Quando uma dessas ferramentas se mostra útil, os corvos as guardam num lugar protegido e recorrem a elas sempre que precisam.

Eu já vi, em documentários da TV, aves pegando com o bico um graveto e introduzindo-o num oco de árvore para fisgar uma lagarta ou outra iguaria do cardápio ornitológico. Para mim, isto é uma fagulha civilizatória semelhante à cena de 2001, uma Odisséia no Espaço em que o macaco percebe que empunhando um osso pode rachar com mais facilidade o crânio de uma caça ou de um inimigo.

Mas isto envolve apenas o uso momentâneo de um “ready made”, de algo que já está ali, e que precisa apenas ter sua função deslocada. A fabricação de instrumentos é diferente, porque envolve uma capacidade de abstração de fases sucessivas do pensamento, coisa que os animais não têm. O ser humano olha para um “objeto selvagem” (fase 1) e percebe se se produzir nele tais ou tais modificações (fase 2) poderá transformá-lo em algo que servirá para alcançar um alimento de difícil acesso (fase 3).

É esta capacidade de ver o que não está diante de si e de concatenar fases sucessivas de um processo que distingue o homem dos animais. Se os corvos desbastam pequenos ramos para introduzi-los em orifícios, e se depois de usados eles os guardam para usar de novo noutro dia, isto indica uma possibilidade de lidar com dois tempos, o tempo do aqui-e-agora e o tempo em que esse aqui-e-agora, com seus possíveis problemas e suas possíveis soluções, irá se apresentar de novo. Fala-se muito da importância da mão do “Homo Faber”, o Homem Fabricador, da importância do “polegar oposto” como elemento civilizatório, porque permite empunhar objetos com firmeza. Mas para mim o mais importante é a refração da noção de tempo que ocorre no cérebro, quando o Homem (ou o Corvo) é capaz de concatenar espaços e tempos diferentes numa seqüência pragmática: “Isso que estou fazendo agora eu já fiz, já deu certo no passado, portanto preciso mantê-lo para usar de novo quando precisar”. Daí para a Bomba Atômica e a Internet é só uma questão de tempo.

1444) O ponto enigmático (30.10.2007)


Existem dois tipos de narrativas de mistério. O primeiro obedece ao que eu chamo de Protocolo da Resposta. Nestas histórias, um mistério é proposto no início, e esclarecido no final. O prazer estético resulta da comparação entre a complexidade do mistério e a engenhosidade da solução. O segundo tipo obedece ao Protocolo da Pergunta. Nele, o mistério é exposto mas não é resolvido no final; a narrativa se encerra com a pergunta ainda no ar. Nestas histórias, o prazer estético resulta da tensão não-resolvida e da possibilidade de inesgotáveis leituras posteriores. Um dos maiores equívocos dos leitores e dos críticos é julgar os méritos de uma obra que obedece ao protocolo A pelos critérios do protocolo B, e vice-versa.

Eu aprecio por igual os dois tipos. Me formei como cinéfilo numa época em que o Protocolo da Pergunta reinava soberano. A gente não ia ao cinema para buscar respostas, mas para compartilhar indagações. E, curiosamente, esses mistérios sem solução não nos deixavam nervosos, impacientes, irritados. Pelo contrário, eram fonte de fascinação intensa e faziam com que esses filmes virassem companheiros de viagem. De vez em quando voltávamos a eles, para ver se tinham algo novo a nos dizer, e sempre, tinham – mesmo que nunca fosse A Resposta.

Em A Aventura de Antonioni nunca ficamos sabendo se a moça desaparecida na ilha deserta morreu, fugiu, ou o quê. Em O Ano Passado em Marienbad de Resnais nunca ficamos sabendo se aquele casal realmente tinha tido um caso amoroso no ano anterior (como insistia em afirmar o homem) ou se os dois não se conheciam (como insistia a mulher). Em Blow Up de Antonioni nunca ficamos sabendo quem era o homem cujo cadáver o fotógrafo registrou sem querer num parque, quem o matou, por quê, e até mesmo se de fato houve crime. Em O Anjo Exterminador de Buñuel nunca sabemos que força fez aquele grupo de milionários ficarem impedidos de sair da sala onde acabaram de se reunir.

Isto tem a ver, claro, com a literatura da mesma época. Em Os Prêmios de Cortázar nunca sabemos por que motivo os passageiros do navio são proibidos de acessar certas áreas do mesmo. Nos livros de Kafka, nunca ficamos sabendo por que motivo Joseph K foi preso, por que motivo o Conde de West-West não recebe o agrimensor em seu Castelo.

Cada história destas tem no centro um Ponto Enigmático, um vazio que não pode ser preenchido por explicações. As explicações são criadas, ajustam-se provisoriamente a ele, mas não o anulam. A fascinação do mistério, a possibilidade de lidar com coisas incompreensíveis, é um dos impulsos que nos aproximam das obras de arte e das grandes narrativas. Daí, talvez, o sucesso de séries como Arquivo X (que acompanhei por muitos anos) e Lost (que infelizmente nunca assisti). Nunca temos acesso a uma visão geral do que está acontecendo, e essa tensão entre a necessidade e a impossibilidade de “saber tudo” gera nos espectadores algo que é parecido com o amor.

1443) As sete maravilhas de Campina (28.10.2007)




A cultura de massas é um efeito-cascata de modismos. Aconteceu este ano a escolha das “Sete Maravilhas do Mundo”, entre as quais ficou o nosso Cristo Redentor. Depois, o Rio de Janeiro promoveu a eleição das sete maravilhas do Estado. Agora, é Pernambuco que está escolhendo suas sete maravilhas, numa lista onde aparecem a praia de Porto de Galinhas, o Alto da Sé de Olinda, as pontes do Capibaribe, etc e tal. 

Antes que a coisa comece a degenerar em farsa e paródia, que tal fazermos um concurso para as Sete Maravilhas de Campina? Não apenas os nossos monumentos históricos, nossas belezas arquitetônicas, mas aqueles lugares que parecem encerrar em si a essência local. Sendo assim, aqui vão meus votos.

Para começar: o Açude Velho. Nada mais parecido com Campina, principalmente o Açude Velho ao anoitecer, refletindo as luzes dos prédios por entre o violeta sangüíneo do crepúsculo. Espelho maior das nossas histórias, e ainda por cima guardando a virtude mágica de enfeitiçar para sempre o estrangeiro desavisado que beber da sua água. 



Depois, o conjunto formado pela Praça da Bandeira e o prédio dos Correios, pelo seu valor arquitetônico e também por me recordar sempre os momentos emocionantes pré-Internet em que subi aqueles degraus para comprar livros vindos pelo Reembolso Postal, fossem aventuras de Sherlock Holmes em 1960 ou contos de Borges em espanhol em 1974. 



Em termos de arquitetura, tomo outra decisão salomônica: tombar por conta própria toda a Rua Maciel Pinheiro com seus sobrados e sacadas “art-déco”, aos quais nunca dei muito valor porque sempre achei que todos os prédios do mundo se pareciam aos nossos. Depois fiquei sabendo que somos raros e preciosos – vejam só o que é a vida.



Em quarto lugar permitam-me a inclusão do Estádio Presidente Vargas, por motivos históricos, poéticos e freudianos, porque ali tive as mais intensas alegrias e os mais abismais desesperos de minha ainda curta vida. 



Em quinto, o Seminário do Alto Branco. Não estranhem, mas passei 20 anos da minha vida vendo-o erguer-se à esquerda da paisagem divisada do terraço de minha casa paterna, e para mim ele sempre foi uma entidade misteriosa e medieval, guardadora de sabedoria e transcendência. 



Em sexto, eu destacaria o Colégio Estadual da Prata, o inesquecível “Gigantão” que me ensinou a vida dos 13 aos 19 anos, e cuja organização arquitetônica trago nítida e intacta na memória, sala por sala.



E para fechar eu elejo a Rodoviária velha, na Praça Lauritzen, hoje transformada em mercado popular. É um símbolo da vocação de Campina para o varejão, o mercadinho, o vuco-vuco; e foi durante décadas o lugar dos abraços, das despedidas e dos reencontros dos milhares de “paraíbas” que partiam para o Sul cheios de esperança ou dele voltavam cheios de experiência. 



Pois é. Nada de jardins suspensos, nada de obras faraônicas... Mas cada povo tem as maravilhas que lhe cabem, e eu me orgulho das minhas.





segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

1442) Referências literárias (27.10.2007)




“Quais as referências literárias da sua escrita?” A resposta que damos a esta pergunta revela mais sobre nossas fantasias do que sobre nossa prática. 

Vejo muitos poetas jovens sendo entrevistados, mercê da publicação de seu primeiro livro, e quando lhes perguntam suas referências literárias, ou os autores que os influenciaram, abrem um leque impressionante: “Fui muito influenciado por Dante, Homero, Camões, Garcia Lorca, Pablo Neruda, Rimbaud, Baudelaire, Manuel Bandeira, Carlos Drummond, João Cabral e Mário Quintana”. Eu tenho vontade de cair ajoelhado no chão e gritar: “Caramuru! Caramuru!”

Será possível que um único poeta consiga ter influência simultânea de tanta gente, e de gente tão diferente entre si? Duvido muito. 

Quando o jovem poeta confessa que leu esse pessoal está afirmando que sentiu-se emocionado e transformado pelo que leu, e que ao escrever tem a ambição íntima de causar nos seus futuros leitores o mesmo tipo de emoção e de transformação. 

É a isto que ele chama “influência” – o fato de que a leitura daqueles autores o modificou pra sempre.

A palavra influência nos induz a pensar em ascendência, poder. É a pressão de uma personalidade mais forte sobre uma mais fraca, dizendo-lhe o que dizer, e como. Mesmo ausente, mesmo manifestando-se apenas através da obra, a personalidade mais forte encontra pouca resistência naquele espírito geralmente jovem, ávido de experiências, ansioso para dizer algo mas sem saber o quê e como. 

O jovem leitor de Baudelaire torna-se um psicógrafo de Baudelaire, mesmo que o que há de Baudelaire em seus escritos seja imperceptível, ou redundante. O jovem cineasta defende-se das críticas com veemência: “Claro que a câmara está tremendo, e com a luz estourada! É Glauber!”

Não é Baudelaire e não é Glauber, mas não é esse o problema. O problema é que na obra também não se percebe o Fulano que fez aquilo. As influências estilísticas são as mais difíceis de domesticar, porque nos autores de origem aqueles recursos exprimiam uma visão das coisas, e na obra dos influenciados exprimem apenas a ausência de uma visão qualquer.

Quando admiramos algum aspecto técnico da obra de um artista, deveríamos nos dedicar a copiá-lo, a reproduzi-lo, até sermos capazes de dominá-lo. 

Mozart era capaz de imitar e parodiar qualquer compositor de sua época. Hunter Thompson decorava e datilografava textos inteiros de Hemingway, para absorver seu ritmo. A obra dos Beatles é um vasto panorama de técnicas alheias copiadas tintim por tintim. 

Uma influência é como um cavalo selvagem, que joga você no chão cada vez que você tentar obrigá-lo a ir para onde você quer. Mas ela pode ser domesticada, pode ser transformada em técnica, recurso, instrumento que utilizamos quando precisamos de uma voz narrativa específica, de um timbre sonoro, de um colorido, um tema. Deveríamos poder dizer algo como: “Dez por cento do que faço eu peço emprestado a Baudelaire, a Fellini, a Portinari”.






1441) O jogo de 722 gols (26.10.2007)



Eu vou ter mais cuidado com o que escrevo, porque toda fantasia que ponho no papel tende a degenerar em fato real. O leitor talvez recorde o meu artigo “O Maior Espetáculo da Serra” (15.1.2006), no qual imaginei uma partida eterna entre Treze x Campinense, 24 horas por dia. Pois os jornais noticiam que os argentinos estão se preparando aos poucos para realizar esta minha profecia, assim como o conhecido Pierre Menard tentou reescrever o Dom Quixote. Noticiam os jornais que no aniversário de fundação de Nocochea, cidadezinha a 520km de Buenos Aires, decidiu-se comemorar o evento com um jogo entre duas equipes que foram batizados com os nomes dos fundadores da cidade, “Victorio de la Canal” e “Angel Murga”. O jogo durou 46 horas e terminou com a vitória de Victorio de la Canal pelo elástico placar de 387 x 335. A notícia também informa que tomaram parte na disputa um total de 1.320 jogadores.

Minha primeira visualização do evento foi um campo de futebol gigantesco, com quilômetros e mais quilômetros, e duas equipes, cada uma com 660 jogadores, perseguindo uma bola cujo paradeiro eles só conseguiriam descobrir ligando para o celular dos colegas. Depois me toquei que não. Desse jeito o mais provável é que o jogo terminasse 0x0, mesmo depois de 46 horas. Cada um dos times deve ter utilizado, num campo normal, 60 equipes normais de 11 jogadores, que foram se substituindo umas às outras nos intervalos da disputa.

Esse gigantismo dá uma idéia do fascínio que o futebol exerce sobre a nossa capacidade de fantasiar. Recordo que nos primeiro anos do Pasquim alguém (não lembro o autor) publicou um texto chamado (acho) “O Grande Jogo”, em que duas barras eram colocadas em extremos opostos do Brasil (tipo Oiapoque e Chuí), e num ponto intermediário (digamos, a Bahia) era dado o pontapé inicial para esta partida que iria teoricamente envolver toda a população brasileira. A tarefa seria levar a bola, de acordo com as regras, até o local da “baliza” e marcar o gol. (Imagino que depois que alguém fizesse 1x0 seria permitido dar uma nova saída sem a necessidade de transportar a mesma bola, de avião, para o “círculo central”).

Na época eu considerei este conto uma espécie de ficção científica ou ficção especulativa tipicamente brasileira. O gigantismo (e o absurdo inevitável, kafkeano, desse projeto) era algo que só poderia ocorrer a uma mente brasileira. Que os argentinos sejam capazes não apenas de imaginar, mas realizar um jogo nas dimensões referidas neste artigo prova que podemos até ser os melhores, mas não somos os únicos. Um jogo de 722 gols, 46 horas e 1.320 jogadores é algo de uma intensidade poética que me comove quase até as lágrimas. Se no ano que vem acontecer de novo, eu compro uma passagem aérea para Buenos Aires e de lá vou assistir e cumprimentar os organizadores. É um delírio à altura do país de Borges e de Maradona, o país de Cortázar e de Riquelme.

1440) O Prêmio Nobel alternativo (25.10.2007)




(Ted Gioia)

O escritor Ted Gioia criou uma página em seu saite propondo uma questão que muita gente já se propôs: e se os vencedores do Prêmio Nobel, em vez de terem sido aqueles sujeitos obscuros que contemplamos nas estantes, tivessem sido os autores que hoje qualquer leitor mediano conhece e admira? Gosto não se discute, claro, mas a lista feita por Gioia de 1901 até 2007 nos propõe mudanças tão óbvias que chegamos a nos perguntar: “Ora, e não foi assim não?...” Começa pelo começo: em vez de Sully Prudhomme, o primeiro ganhador, teríamos Leon Tolstoi. Em 1902, em vez de Theodor Mommsen ele sugere George Meredith (pra mim, confesso, é trocar seis por meia dúzia). Mas em 1903, em vez do impronunciável Bjornstjerne Bjornson o vencedor seria Anton Tchecov; depois, em vez de Frederic Mistral e José Echegaray, venceria Julio Verne; e em 1905, em vez do Henryk Sienckewicz de Quo Vadis, o premiado teria sido Henrik Ibsen, o dramaturgo de Casa de Bonecas.

Gioia leva em conta os regulamentos do Prêmio (o autor tem que estar vivo), e os premiados que ele sugere são autores que no ano em questão já tinham uma obra consolidada e conhecida, e seriam candidatos legítimos. Não vou comentar todos os nomes (que podem ser vistos em: http://www.greatbooksguide.com/NobelPrize.html). Mas me parece que seria mesmo mais justo ter premiado Mark Twain em vez de Giosuè Carducci (1906), Henry James em vez de Maurice Maenterlinck (1911), Sigmund Freud em vez de Verner von Heidenstam (1916), Franz Kafka em vez de Jacinto Benavente (1922), Conan Doyle em vez de Grazzia Deledda (1926), G. K. Chesterton em vez de Erik Axel Karlfeldt (1931)... Não parece óbvio?

Gioia não é totalmente crítico da Academia Sueca. Muitos premiados reais são endossados por ele, como Rudyard Kipling (1907), W. B. Yeats (1923), George Bernard Shaw (1925), T. S. Eliot (1948), William Fulkner (1949)... E aqui para nós tem umas sugestões dele que eu não concordo: eu não tiraria o Nobel de Herman Hesse (1946) para premiar Hermann Broch, nem o de Bertrand Russel (1950) para dá-lo a Wittgenstein, como ele sugere.

O mais divertido é quando a lista vem se avizinhando da época atual, porque as sugestões de Gioia ficam menos convencionais. Ele sugere que em vez do poeta Derek Walcott (1992) a Academia deveria ter premiado Bob Dylan, e que em vez de Odysseus Elytis (1979) o prêmio deveria ter ido para Philip K. Dick. Premiar Hunter S. Thompson em vez de Dario Fo (1997) é uma sugestão divertida, porque o próprio Dario Fo já parece uma idéia de Gioia.

Perda de tempo, ficar discutindo isto? Não acho. Um Nobel, além do milhão e meio de dólares que concede ao premiado, premia também uma cultura, um gênero literário, um país, um mercado editorial. Ajuda a moldar e direcionar o rumo da literatura, mesmo quando o premiado se dissolve em anonimato poucos anos depois. (Alguém sabe quem foi Halldor Laxness? Foi o cara que ganhou em 1955, em vez de Bertolt Brecht).





1439) Uma essência narrativa (24.10.2007)


(a 1a. edição de O Guarani)

Um entrevistador me pergunta: “Em sua opinião podemos afirmar que há uma temática central ou uma essência narrativa na atual literatura Brasileira?” Para comodidade própria, decido considerar “atual” a literatura brasileira que consumi nas últimas quatro décadas, até porque a maioria esmagadora dos títulos que li continua em catálogo e disponível para os leitores de 2007. Como já comentei aqui, “atual” para mim é o livro que está disponível para leitura hoje. O Guarani de José de Alencar é de 1857 mas é atual – porque pode ser encontrado em qualquer livraria ou biblioteca, volta e meia está sendo analisado em nossas escolas, serve como ponto de referência e de comparação para numerosas análises e, portanto, faz parte do corpo literário vivo do Brasil. O que não ocorre com outros livros, muito mais recentes, mas que só foram lidos pelos parentes próximos do autor e por meia dúzia de resignados amigos.

Falemos, então, da literatura brasileira em prosa. Mesmo não lendo tudo que sai por aí costumo ler resenhas, críticas, etc., em revistas, jornais, fanzines e suplementos literários de todo tipo. Dá para ter uma idéia aproximada do que se publica. Eu diria que a tendência que predomina na prosa brasileira atual, tanto em termos de freqüência estatística quanto em termos do impacto relativo de cada obra, é o que chamo de Realismo Social e Psicológico. O Realismo Social reproduz, dentro dos quadros da ficção mimética (a ficção que imita a realidade), aquilo que os resenhadores costumam chamar de “amplos painéis históricos e sociais”, ambientes urbanos ou rurais reconstituídos com intenções de verossimilhança dramática e fidelidade documental. São obras que, bem ou mal, retratam o Brasil. Os mestres dessa corrente ainda são Jorge Amado, Érico Veríssimo, Graciliano, Rubem Fonseca, etc.

O Realismo Psicológico nos dá, em vez desses amplos painéis, retratos em close-up de um indivíduo ou um grupo de indivíduos. Um casal, uma família, um vilarejo, um ambiente de trabalho... Embora tais histórias também lidem com ambientes verossímeis, este fica em segundo plano, descrito em traços rápidos, porque serve apenas de fundo para o que os autores de fato pretendem: descrevem a mente, as emoções, as metamorfoses íntimas dos seus personagens. São obras que retratam os brasileiros. Os pontos de referência são Clarice Lispector, Machado de Assis, etc.

Claro que há obras em que estas duas visões se fundem. Claro que há exceções: temos livros absurdistas, romances fantásticos ou oníricos, alegorias e sátiras, prosa surrealista ou de nonsense, prosa do tipo palavra-puxa-palavra... Mas do meu ponto de vista o que predomina são as duas tendências acima. A maioria da prosa brasileira atual, pelo que sei, trabalha firmemente dentro dos caminhos abertos pelo romance ocidental (Europa e EUA) dos últimos 100 anos, inclusive em seus extremos mais experimentais e “pós-modernos”.

1438) “O fim do sem fim” (23.10.2007)


Revi algumas semanas atrás, no Rio, este documentário dirigido a seis mãos por Lucas Bambozzi, Beto Magalhães e Cao Guimarães. No “Almanakito” distribuído pela jornalista Maria do Rosário fico sabendo que este era o filme brasileiro menos visto entre todos que estavam em cartaz no mês de outubro. O líder de público era O primo Basílio com 753 mil espectadores, em números redondos. Em segundo lugar vinha Turma da Mônica, com 513 mil. Em terceiro Ó-paí-ó, com 383 mil. Pois O fim do sem fim segurava a lanterna, tendo sido visto por apenas 970 pessoas.

É engraçado que tão poucos queiram assisti-lo, porque é um dos melhores filmes que vi nos últimos anos. Vi-o duas vezes, uma no seu lançamento, em 2001, e outra agora, quando ele entrou para valer no circuito comercial; e pretendo revê-lo outras, se possível comprando o DVD. O tema do filme são as profissões que estão desaparecendo, e a sorte dos indivíduos que viviam em função delas. Algumas estão ligadas à religiosidade e à medicina popular, como o benzedor, a parteira, etc. Outras são profissões raras por sua própria natureza, como a do faroleiro. Outras são quase surrealistas: recarregador de isqueiros?! Outras parecem estar se mantendo vivas sabe Deus como: lanterninha de cinema, calígrafo, engraxate, fotógrafo lambe-lambe... E por aí vai.

Claro que tem cordelistas no meio, os cultores desta Grande Arte cuja morte já foi anunciada tantas vezes. Há cenas impagáveis, como a de um poeta cujo celular toca no meio da entrevista, ele atende e diz: “Tô por aqui... mentindo um tiquinho pros jornalistas”. E outro que é uma mistura de poeta, profeta apocalíptico, astrólogo e logomante, e que dispara sem cessar uma enxurrada de visões, raciocínios abstrusos e vocabulário surrealista.

Existem pelo mundo entidades chamadas (não exatamente assim) o Museu da Tecnologia Obsoleta, o Mostruário das Ciências Desaparecidas, o Memorial de Usos e Costumes Extintos. Eles preservam o lado murcho, o lado ressequido e atrofiado do avanço da Ciência. O fim do sem fim é como um filme que ao mostrar um edifício não mostrasse sua fachada, seus jardins, seus amplos salões, suas paredes ornamentadas, e corresse sua câmara pelos desvãos, pela parte de trás dos móveis, pela parte de baixo das escadas, por baixo das mesas e das camas, em todos os lugares para onde são varridos os detritos ou empurrados os objetos velhos, quebrados, com os quais ninguém sabe mais o que fazer. É um filme sobre o anacrônico, o obsoleto, sobre atividades humanas que têm existência meramente residual, se confrontadas com o mundo da cultura de massas que molda nossa concepção de realidade. Profissões que, ainda assim, sobrevivem, teimosamente, porque exprimem algo que fez sentido e continua a fazê-lo, mesmo que não tenha a mesma importância social que um dia teve. É um filme medularmente brasileiro, e que também poderia ter sido feito na Bulgária, na Índia, no Japão.

1437) Chão de giz (21.10.2007)


(o gigante de Cerne Abbas)

O título desta canção de Zé Ramalho sempre me lembrou as figuras misteriosas cujas fotografias vi pela primeira vez num livro intitulado O Mundo Misterioso de Arthur C. Clarke, em que o escritor inglês comenta fatos misteriosos e extraordinários como as aparições de OVNIs, do Monstro do Lago Ness, do Abominável Homem das Neves e assim por diante. Misturados a estas lendas estão alguns fatos curiosos mas sem mistério algum, a não ser o mistério histórico de quem os fez, como, e por quê. São aquelas inscrições vastas feitas no chão, às vezes com centenas de metros de comprimento, e que só podem ser vistas por inteiro por alguém que sobrevoe a região. Este detalhe levou especuladores como Erich von Daniken e outros a sugerir que tais figuras na paisagem seriam uma tentativa de comunicação com extraterrestres. Acho mais simples supor que os caras que fizeram as inscrições acreditavam que seu Deus ou seus deuses estavam no céu, e era a eles que os desenhos se dirigiam. Para imaginar que as divindades habitam o céu não é preciso ter feito contato com alienígenas, basta ter visto um céu estrelado à noite.

Algumas dessas imagens podem ser vistas em: http://www.youtube.com/watch?v=-7pJeHY-fLI. É um passeio virtual por imagens de satélite que mostram desde as Linhas de Nazca, no Peru, até um logotipo da Coca-Cola gravado no chão de um deserto chileno. No meio delas, aparecem as imagens do “chão de giz”, todas na Inglaterra. Dou-lhes este nome porque elas foram feitas em regiões onde o solo, a certa profundidade, é feito de material calcáreo e muito branco. Basta escavar e deixar à mostra uma certa extensão daquela camada, e é possível fazer desenhos de grande extensão em que as linhas brancas se destacam vividamente de encontro ao verde da vegetação rasteira. Por outro lado, requerem manutenção. Depois de prontas, é preciso que todo ano alguém fique limpando o local e evitando que o mato recubra a área exposta. Muitas figuras semelhantes já devem ter se perdido porque ninguém cuidou delas.

As figuras mais famosas são o Cavalo Branco de Uffington, o Homem Grande de Wilmington, e o Gigante de Cerne Abbas, o qual deve ter causado certo desconforto aos extraterrestres mais puritanos, por ser a imagem de um guerreiro nu com, digamos, a arma em riste. Há um saite com fotos de figuras assim, preservadas ou parcialmente desaparecidas, em: http://www.hows.org.uk/personal/hillfigs/. Obras assim nos comovem por terem sido feitas por indivíduos que nunca as viram por inteiro. Como os pedreiros das igrejas medievais, que nunca as viram prontas, eles trabalhavam tendo em mente uma imagem ideal, que era sua única inspiração e sua única fruição. Por incrível que pareça, o ser humano gosta disto. Gosta de trabalhar por algo que não desfrutará no futuro, seja porque a execução da obra ultrapassa seu tempo de vida, seja porque o formato final dela será inacessível à sua visão.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

1436) A invenção do silêncio (20.10.2007)




O grande Robert Bresson dizia que o cinema sonoro inventou o silêncio. Este aparente paradoxo tem a ver com o seu oposto simétrico: o fato de que o cinema mudo era obrigado a inventar (pelo uso criativo da imagem) algo de que não dispunha: o som. 

Vemos um homem aproximar-se da porta de uma casa e bater. Corta para uma sala onde uma mulher está costurando, de cabeça baixa, e de repente se vira, olhando para a porta. O som ouvido por ela e não ouvido por nós brota da simples justaposição dessas imagens. 

Um homem armado persegue outro numa floresta. O fugitivo tropeça e cai. O perseguidor leva o fuzil ao ombro e aponta. Corta para uma árvore cheia de pássaros pousados: de repente, os pássaros levantam vôo, todos ao mesmo tempo.

O cinema mudo era cheio desses truquezinhos charmosos para sugerir sons que tinham função na narrativa mas era impossível mostrar, pela limitação técnica do período. Notem este detalhe: “tinham função”. Os sons banais, sem função narrativa ou dramática, não precisavam ser sugeridos. 

Há um teórico do cinema, o grande Rudolf Arnheim, para quem o Cinema é uma grande arte devido justamente às suas limitações. A imagem é retangular, não pode mostrar tudo; é em preto-e-branco, não pode mostrar as cores; vê apenas o que a lente capta, não pode ver além ou aquém. 

Não podendo mostrar certas coisas, o filme é forçado a sugeri-las, o que estimulou a imaginação tanto dos diretores quanto da platéia, e gerou uma nova linguagem.

Quando Bresson diz que o cinema sonoro inventou o silêncio é porque o silêncio, que até 1928-1930 era uma fatalidade técnica, passou a ser uma opção criativa. 

O surgimento do cinema sonoro trouxe uma barulheira insuportável para dentro dos filmes, contra a qual grandes cineastas (como Chaplin) se revoltaram. Algo parecido ocorre hoje, com a sofisticação do Dolby Stereo, das técnicas de gravação e de edição sonora. As possibilidades de elaboração do som são tantas que os diretores se esquecem de elaborar o silêncio. 

Luís Buñuel queixava-se que na maioria dos filmes ninguém podia pedir uma xícara de café sem que uma orquestra ressoasse: “tchan-tchan-tchan-tchaaaan!...” Surdo, foi um dos cineastas que melhor usaram o som como linguagem.

Nos anos 1970, em Salvador, vi no bairro do Canela um muro branco, onde alguém acabou pichando com spray: “Branco pra mim, silêncio pro músico”. O silêncio deve ser o fundo branco contra o qual, num filme, os sons necessários podem ser ouvidos. 

Existe uma concepção arrevesada de realismo que nos obriga a ver uma cena de rua em que o diretor se esmerou em amontoar todos os sons ouvidos naquela rua real. Na vida, filtramos esses sons automaticamente. Num filme não podemos fazer a mesma coisa, e o resultado é uma balbúrdia que nos atordoa e nos impede de ver direito a imagem. 

O cinema de hoje precisa reinventar o silêncio, para poder dizer alguma coisa.