segunda-feira, 31 de março de 2008

0340) A Interferência (22.4.2004)




A raiva é uma dessas emoções boas de analisar, porque poucas conseguem com tanta rapidez e eficiência tomar as rédeas do juízo dum sujeito. Já vi uma mocinha miúda e tímida encurralar meia dúzia de marmanjos, aos gritos, porque um deles soltou-lhe uma piada inofensiva. Já vi um motorista de ônibus tirar-um-fino de propósito num chapeado que carregava pacificamente suas tralhas pelo meio da rua, e esse chapeado perseguir correndo o ônibus ao longo de uns cinco quarteirões (eu era um dos passageiros) até alcançá-lo num sinal vermelho, invadi-lo, e cobrir o motorista no bofete. Já vi (quem se lembra?) no Presidente Vargas, num jogo noturno Treze x Auto Sport, o jogador Augusto quebrar o lábio do zagueiro Cidão com uma pedra, dando início a uma perseguição sem tréguas em que o beque trezeano (Cidão era uma espécie de Mauro Silva, só que mais torado-no-grosso) perseguiu Augusto pelo gramado inteiro, arrombou as duas portas do vestiário e só foi contido por um destacamento inteiro da polícia. (Ah, sim, o jogo não prosseguiu: acabou ali mesmo).

Vou fazer uma comparação. Quando eu era pequeno, não existiam as redes de TV que existem hoje, as estações repetidoras, etc. Víamos a TV Borborema, canal 9, ou então os dois canais de Recife: a TV Rádio Clube (canal 6) e a TV Jornal do Commercio (canal 2). Devido à distância, a recepção estava longe de ser ideal. Era uma imagem (preto-e-branco, claro) granulosa, esfarelada, que parecia feita basicamente de pó-de-carvão e açúcar-cristal. E havia a famosa Interferência. Às vezes era desencadeada pela passagem de um caminhão pela rua (acho que as antenas estremeciam, sei lá); ou era o vento, ou eram as tempestades eletromagnéticas provocadas pelas manchas solares... não importa. Estava indo tudo muito bem, estávamos todos amontoados na sala assistindo Quinta Dimensão ou Na Corda Bamba, quando de repente a imagem inteira começava a estremecer e a dar sinais de instabilidade. Estava começando a Interferência.

Primeiro as formas todas começavam a balançar como se alguém estivesse sacudindo vigorosamente o aparelho. O som ia sendo substituído por um chiado cada vez mais alto e insuportável, até que tudo na tela se resumia a uma agitação frenética e caótica de pontinhos pretos, brancos e cinza. A Interferência seguia um padrão: começava devagar, ia se intensificando, atingia um clímax, aí ia se atenuando aos poucos, algumas formas começavam a ser visíveis, o som retornava, substituindo o chiado... Do mesmo jeito que começara, ela ia passando, passando, até a imagem e o som se tornarem novamente nítidos e normais. Normalidade que durava cinco ou dez minutos até a Interferência seguinte. A raiva é uma Interferência. Se o indivíduo conseguir respirar fundo e ficar quietinho até que ela passe, o mundo se salva.

0339) O jogo da traição (21.4.2004)




(Cães de Aluguel, de Quentin Tarantino)

Ontem falei sobre “O dilema da Tosca”, um problema de lógica usado por Anatol Rapoport, inspirado na ópera de Puccini. 

Nela, a heroína da ópera negocia com o chefe de polícia, Scarpia, a libertação do seu amado, Cavaradossi. O policial diz que só o libertará se Tosca se entregar a ele. Firmam o acordo, mas nenhum dos dois pode ter certeza de que o outro cumprirá a palavra. Neste caso, o que será melhor: manter a palavra dada, ou negar-se a cumprir sua parte e esperar que o outro cumpra a sua?

Uma situação parecida aparece com frequência nos casos de sequestro. O sequestrador avisa: “Deixe 1 milhão de reais em tal canto, que eu solto o garoto.” Se ambos cumprirem o combinado, o resultado final será parcialmente satisfatório para todo mundo: o sequestrado volta para casa (mesmo pagando caro por isto), e os bandidos fogem com o dinheiro (mesmo devolvendo seu elemento de barganha). 

Mas como a família pode ter certeza de que os bandidos não vão pegar a grana e matar o sequestrado, para evitar um futuro reconhecimento? E o sequestrador também fica com a pulga atrás da orelha. Como pode ter certeza de que a família não vai depositar no local combinado um saco de dinheiro falso, ou dinheiro “marcado” pela polícia? 

Sempre pode se dar o caso de um dos dois lados ceder à tentação de obter uma “vitória completa”. Vitórias completas desta natureza só ocorrem quando traímos e não somos traídos.

A tentação de trair o oponente, diz Rapoport, é grande porque “quando ambos se traem mutuamente, os dois perdem, mas não tanto quanto perderiam se ele ou ela tivesse feito o papel de tolo”, ou seja, tivesse cumprido a palavra enquanto o adversário lhe passava a perna. 

Situações deste tipo são frequentes na política, e nos últimos anos o exemplo que me vem à mente é o do sofrido processo de desarmamento do IRA, o Exército Republicano Irlandês. Nem o IRA confia totalmente que o governo da Grã-Bretanha vá cumprir as promessas feitas, nem o governo acredita totalmente que o IRA vá de fato entregar todo o armamento de que dispõe, e que não é pequeno. 

Em ambos os casos, a tentação de trapacear é grande.

Em outros casos mais graves, o que existe não é sequer a tentação de trapacear: é uma intenção deliberada de extrair o máximo de vantagens, de esmagar politicamente o adversário. É o caso do conflito entre Israel e palestinos. Para mim, que vejo tudo à distância, parece impossível que se chegue a uma solução diplomática entre dois grupos liderados por indivíduos (Ariel Sharon e Arafat) com uma longa história de militarismo, terrorismo e declarações de ódio. 

Enquanto as lideranças forem indivíduos com este tipo de passado e este tipo de retórica, nenhum acordo será mantido, nenhuma proposta de paz terá continuidade. E enquanto o impasse se arrasta, aumenta o número dos que perderam amigos e parentes e começam a achar que a vingança é melhor do que a convivência pacífica.








0338) O dilema da Tosca (20.4.2004)



Os conflitos entre judeus e palestinos (ou qualquer conflito político onde um acordo tenha que se basear na confiança mútua) me lembram um problema de lógica que Anatol Rapoport, num artigo sobre Teoria dos Jogos, chama de “O dilema da Tosca”.

Nesta ópera de Puccini, Tosca é amante de Cavaradossi, o qual é preso e condenado à morte pelo chefe de polícia, Scarpia. Este diz a Tosca que, caso ela se entregue a ele, dará um jeito para que Cavaradossi seja submetido a uma execução fictícia, e possa fugir.

Tosca, portanto, tem que correr o risco de acreditar que o policial irá cumprir a palavra. Por outro lado, Scarpia sabe que corre o risco de Tosca prometer que irá para a cama com ele, e na hora H mudar de idéia.

Temos aqui uma situação em que cada um dos agentes tem a opção de trair ou não trair o adversário. Os matemáticos atribuem valores a estas opções, para comparar o grau de recompensa de cada uma delas. Vejamos o que acontece, em primeiro lugar, com quem tem a intenção de ser fiel aos pactos assumidos.

Se Tosca mantém a palavra (entrega-se a Scarpia, um sujeito a quem odeia), isto representa uma perda; mas se Scarpia mantiver a palavra (libertar Cavaradossi, o homem que ela ama) isto será uma compensação suficiente. O seu problema acontece no caso de Scarpia a trair, porque neste caso ela terá um prejuízo duplo: entregou-se ao policial, e seu amante acabou morrendo.

A situação do policial Scarpia, do lado oposto, é exatamente a mesma.

Suponhamos que ele queira manter sua palavra e dê a ordem de que Cavaradossi seja libertado, ao partir para seu “rendez-vous” com Tosca. Ele mantém a palavra (liberta seu rival), e isto é uma perda para ele; mas se Tosca fôr fiel ao acordo (entregar-se a ele) isto será uma compensação razoável.

O grande problema, contudo, seria no caso de Tosca resolver traí-lo, porque ele perderia dos dois lados: soltaria o rival, e não possuiria a mulher que deseja.

Parece ser arriscado manter a palavra, aceitar a pequena perda decorrente da concessão que nós mesmos propomos. E o que ocorre se tomamos a decisão de trair, mesmo sem ter certeza da intenção do outro?

Se Tosca decide trair Scarpia (não entregar-se a ele), corre na pior das hipóteses o risco de um “empate” (se ele matar Cavaradossi) mas tem a possibilidade de uma vitória total se Scarpia fôr fiel ao pacto (nem ela se entrega, nem o amado é morto).

O mesmo vale para Scarpia se ele decidir traí-la (dar ordens para a morte de Cavaradossi, independentemente do que ela fizer). Neste caso, o pior resultado para ele é um “empate” (Tosca não se entrega, mas o rival dele morre), mas se Tosca fôr honesta ele, desonestamente, tem uma vitória dupla (possui Tosca, e mata Cavaradossi).

Quando não confiamos no interlocutor, traí-lo parece sempre ser a melhor solução, porque nos garante pelo menos um empate, se ele nos trair também, e uma vantagem caso ele seja honesto.






0337) Proselitismo (18.4.2004)




Existem dois tipos de pessoas: os que pensam que só existem dois tipos, e os que sabem que existem muitos mais. Como eu pertenço a ambos os grupos, penso que há pelo menos dois tipos de gente cuja existência não pode ser negada por nenhuma falácia lógica: os que gostam de liderar e os que gostam de ser liderados. Por isto existem os movimentos ou “ismos”, aos quais as pessoas se engajam por um gesto espontâneo de admiração. Não devemos subestimar o poder de uma visão-do-mundo coerente e nítida. Poucas pessoas conseguem elaborar uma por conta própria. Eu mesmo, por exemplo, nunca consegui. Minha visão-das-coisas é uma colcha-de-retalhos de visões contraditórias, de idéias apanhadas aqui e ali, de teorias que se invalidam mutuamente mas das quais lanço mão por instinto quando quero explicar algo.

Mangue não, viu, camaradinha? A sua visão-das-coisas também é assim. A menos que você se chame, sei lá, Karl Marx, ou Sigmund Freud, ou mais meia-dúzia de sujeitos que conseguiram produzir uma explicação que explica tudo. Esses caras são gênios. Não porque a explicação dada por eles seja mais certa do que as demais, mas porque foram capazes de produzir uma Teoria Unificada da Vida Humana. Não é pouca coisa. Tanto é que eles têm centenas de milhões de seguidores, e nada indica que nos próximos séculos esse número venha a diminuir, mesmo com o aparecimento de novas Teorias Unificadas. No ano 2500, quando nossos tataranetos forem cyborgs ou colonizarem Marte, muitos deles serão marxistas, muitos deles serão freudianos. Anotem aí, e podem vir me cobrar quando eu for ressuscitado pela Ciência futura.

O mais interessante das ideologias é o fervor dos que se dedicam ao proselitismo. É típico das religiões que os recém-convertidos sejam mais ardorosos do que os veteranos. O novo súdito é sempre mais realista do que o rei. Os apóstolos que conheceram Cristo pessoalmente limitavam-se a fazer pregações aqui e ali; Saulo, que era um perseguidor de cristãos, teve uma revelação tão pesada na estrada de Damasco que passou três dias cego, sem comer, e sem beber. Quando ficou bom, virou o maior cristão do mundo.

Eu me acho um sujeito meio superficial, porque não tenho nenhuma crença que eu considere essencial à humanidade. As coisas em que acredito são para consumo interno. Só passo minhas idéias adiante se alguém estiver interessado, e vier me fazer perguntas. Mas o proselitista típico é aquele que procura atingir justamente os alvos mais difíceis. Já passei noites inteiras numa mesa de bar dizendo, “OK, velho, eu sei que Lacan foi um cara importantíssimo, mas não me interessa muito”, ou então “tá, tá legal, eu concordo que o Concretismo é importante, mas não acho que as possibilidades da sextilha já tenham sido esgotadas.” Eu nunca convenci ninguém de coisa alguma, caro leitor. Se você achar que eu estou fazendo propaganda de alguma idéia, largue o jornal, e leia amanhã: estarei falando de algo completamente diferente.

0336) Casas que eu sonho (17.4.2004)





(foto de Gustavo Moura - detalhe)

Uma coisa que me acontece às vezes é sonhar com casas. Claro, muitos sonhos da gente acontecem dentro de casas, apartamentos, etc.; mas estes lugares são meros cenários, mesmo quando são cenários surrealistas ou absurdos, porque o sonho acontece neles, mas não é sobre eles. Comigo, no entanto, acontece sonhar que estou numa casa. “Eu” não sou eu próprio, nem sequer uma pessoa (eu sonho frequentemente que sou outra pessoa qualquer, anônima; que não sou Braulio Tavares, sou um cara desconhecido a quem estão acontecendo aquelas coisas). Mas “nestes” sonhos, eu sou como uma câmara de filmar, que percorre essas casas.

Um detalhe frequente nelas é o que eu chamo a porta-do-interior. É a porta da frente, mas no estilo das cidades do interior: uma porta cortada horizontalmente. A parte de cima é trancada por dentro com uma chave; a gente abre, olha para fora, debruça-se, conversa com quem passa. Quando é preciso entrar ou sair, abre-se a meia-porta de baixo, que é trancada com um ferrolho. Essas portas foram substituídas pelas portas-da-cidade, que são cortadas verticalmente; e mais modernamente ainda pelas portas inteiriças, como as dos apartamentos.

Nestas casas que sonho aparecem potes de água. Sempre num ângulo da cozinha; sempre num recanto onde o sol não bate em hora nenhuma. Às vezes cobertos com uma tábua quadrada onde está emborcado um caneco de lata; outras vezes cobertos com uma bandeja cheia de copos, que a gente afasta um pouco para o lado, o espaço bastante para mergulhar lá dentro um copo vazio e trazê-lo cheio.

As paredes dessas casas são curiosas, porque não sobem até o teto. Interrompem-se a uns três metros de altura, deixando um espaço vazio entre sua borda superior e o telhado. Dos caibros, onde passam lagartixas velozes, pende o fio elétrico que traz na ponta uma lâmpada, e uma extensão que termina numa “pera”, que a gente alcança com a mão, segura entre o indicador e o médio, e apaga a luz pressionando o botãozinho com o polegar, como quem aplica uma injeção. As primeiras linhas de O fiel e a pedra, de Osman Lins, descrevem uma lâmpada assim.

Nessas casas há uns enigmáticos riscos escuros nas paredes dos quartos. Riscos amarronzados como se alguém tivesse pegado um lápis-cera e feito um traço rápido. Um dia, por fim, avistei o gesto: uma muriçoca pousada na parede amarela, e uma mão de mulher, enrugada, esmagando-a – plaft! – e depois esfregando o resíduo na parede. Outra coisa são os buracos simétricos na face interna da parede que emoldura a janela: um dia, vi mãos pegando um cano de ferro, enfiando-o num buraco, e enfiando a outra ponta no buraco oposto, para servir de tranca interna à janela fechada. 

Vejo essas casas como se eu fosse apenas um par de olhos. Não ouço nada, não vejo ninguém, passeio pela casa como se ela estivesse ao mesmo tempo vazia e habitada. Como se todos, mesmo quando não os vejo, ainda estivéssemos ali.





0335) O Cérebro de Kubrick (16.4.2004)




O trocadilho é infame, mas inevitável. O leitor deve se lembrar do “Cubo de Rubik”, o cubo-mágico: um cubo articulado, com 9 quadradinhos coloridos em cada face, que a gente ia girando até colocar tudo na posição certa. Pois bem: a complexidade do Cubo de Rubik (bilhões de combinações possíveis) é café pequeno perto da complexidade do Cérebro de Kubrick. Eu ouvia falar que Kubrick era rico e excêntrico, mas só tive uma medida dessas duas coisas ao ler, em The New York Review of Science Fiction, longos depoimentos de dois dos meus escritores prediletos da FC britânica, Ian Watson e Brian Aldiss, que colaboraram no projeto A. I. – Inteligência Artificial. Muito informativo também é o livro de Frederick Raphael, Eyes Wide Open, sobre seu trabalho no roteiro de De Olhos Fechados. Um artigo recente de Jon Ronson no Guardian Unlimited revela outros detalhes curiosos sobre a cabeça de um dos diretores mais talentosos e maníacos que o cinema já teve. (Em: http://film.guardian.co.uk/features/featurepages/0,4120,1177734,00.html)

Ronson teve acesso às centenas de caixas que guardam o arquivo pessoal e profissional de Kubrick, desde manuscritos e roteiros até uma réplica da cabeça da guerrilheira vietnamita de Nascido para Matar, e milhares de cartas de fãs, meticulosamente arquivadas de acordo com a cidade e o país de origem, para que, se necessário, Kubrick ligasse de volta e perguntasse ao atônito admirador se a tela do cinema local estava de acordo com as especificações para exibir Barry Lyndon ou O Iluminado.

Ao chegar na mansão de Saint Albans, Ronson foi conduzido a um enorme salão com as paredes cobertas de livros. “Aqui é a biblioteca?”, perguntou. Ao olhar mais de perto, descobriu que todos os livros eram sobre Napoleão. Era uma pequena parte da pesquisa para o filme que o cineasta nunca chegou a realizar, um projeto abortado pelo fracasso do Waterloo de Sergei Bondartchuk em 1970. Em outra parte da casa havia um arquivo com 25.000 fichas detalhando tudo que aconteceu com o Imperador e sua família ao longo de todos os dias de sua vida.

Kubrick tinha uma paixão obsessiva por papel, cadernos, tinta; tudo que usava era fabricado de acordo com suas especificações. (Sua fonte tipográfica preferida era Futura Extra Bold.) Ronson menciona centenas de caixas, cada uma com centenas de fotos para que SK escolhesse um modelo de portal para a casa da prostituta em De Olhos Fechados. Kubrick tinha, como tantos que têm excesso de poder, a mania de querer usar esse poder em toda sua extensão. Quando seu gravador cassete quebrava (é Ian Watson que conta), ele mandava o secretário ligar para Akio Morita, o presidente da Sony. Seu perfeccionismo técnico o fêz inventar numerosas engenhocas que hoje são de uso corrente. Era um diretor cerebral, egocêntrico, meticuloso. Seus filmes são mananciais inesgotáveis de revelações sobre o cinema e a mente humana.

0334) O mito da Queda (15.4.2004)



(Lúcifer, por Gustave Doré)


Li um debate recente entre o Arcebispo de Cantuária, Rowan Williams, e o escritor Philip Pullman, autor da trilogia Fronteiras do Universo (His Dark Materials), já traduzida no Brasil com os títulos A Bússola Dourada, A Faca Sutil e A Luneta Âmbar. São romances fantásticos que envolvem questões de Teologia e religião. Pullman tem uma premissa teológica para o Universo do livro, que ele assim descreve: “Nunca existiu um Criador. Ao invés dele, existia a Matéria, que aos poucos adquiriu consciência de si mesma e produziu o Pó. O Pó, portanto, se origina da Matéria, sendo uma forma encontrada por ela para compreender a si própria. A Autoridade foi a primeira figura a se condensar deste Pó, por assim dizer, e desde então passou a ser a entidade mais antiga, a mais poderosa e a mais cheia de credibilidade. Todos os outros anjos passaram a ver nessa entidade o Criador do Universo, mas alguns anjos acharam que não era bem assim, e foi dessa forma que ocorreram a Tentação e a Queda”.

A discussão pode ser encontrada no Daily Telegraph. Mas ela me recorda dois aspectos interessantes da teoria cristã: os conceitos da Queda e do Pecado Original. Toda a religião judaico-cristã é percorrida de ponta a ponta por uma tremenda sensação de culpa, de crime cometido, de punição eterna. É o crime de Lúcifer, o Anjo Que Pensou Que Era Deus (para alguns, mais irreverentes, Lúcifer seria uma espécie de Zé Dirceu cósmico). É o crime de Adão e Eva, que experimentaram o fruto proibido do Conhecimento, o qual cortou o barato do Paraíso e fêz o dois caírem na real. A queda de Lúcifer do Céu para o Inferno e a queda de Adão e Eva do paraíso para o mundo real são mitos simétricos que servem de alerta contra a ambição, a “hubris”, como os gregos definiam a arrogância de quem julga ter poderes ilimitados e estar acima do Bem e do Mal.

Já o mito cristão é um mito na contramão dos anteriores. Jesus se ofereceu como fonte da Revelação e como alvo do mais cruel Castigo. Vejam só: um Deus abandonava seu trono e se dispunha a passar por todos os sacrifícios e contratempos dos homens comuns, e mais, sofrer uma tortura física e uma humilhação pública que só eram destinadas aos piores deles. O Cristianismo criou o Mito oposto ao da Queda pelo orgulho: o da Ascensão pela humildade. Essa anti-hubris teve um inesperado poder de sedução. Ela está em todas as lendas de nobres que jogam foram suas riquezas e vão viver com os pobres (desde Buda até Gandhi e São Francisco de Assis), em todas as histórias de rapazes burgueses que se tornaram marxistas e aderiram à guerrilha armada ou à luta social, e em todos os filhos de boa família que largaram a mansão e as empresas do papai, deixaram o cabelo crescer e foram tocar violão no mato. Não, amigos, não pensem que estou fazendo gozação. Já que é próprio dos deuses descer à Terra e sofrer os percalços da Terra, deve ser próprio dos mitos diluir-se em histórias banais de gente comum.

0333) A galinha morta no pedestal (14.4.2004)



(Silvia Pinal e Claudio Brook, Simão do Deserto, de Luís Buñuel)


Há um filme de Luís Buñuel, Simão do Deserto, inspirado na tradição dos “estilitas” (não é “estilistas”), indivíduos que, para atingir o êxtase religioso, se martirizavam subindo numa coluna de pedra, onde passavam meses a fio, sem descer. 

Esse martírio sempre me pareceu um negócio meio narcisista. O sujeito que quer mesmo meditar, se concentrar na idéia de Deus, afastar-se das coisas do mundo, deve ir para o fundo duma caverna, como Santo Antão. Ficar em cima de um pedestal sempre me pareceu negócio para pop-star, e o filme de Don Luís, convenientemente, se encerra com Simão sendo raptado pelo Diabo (interpretado por uma louraça-belzebu, Sílvia Piñal) e conduzido a uma buate onde fica sentado na mesa, ouvindo uma banda de rock.

“Estilita” significa “que vive no alto de uma coluna”. O Dicionário Houaiss não o registra, o Aurélio sim; Affonso Romano de Sant´Anna recentemente usou esta imagem, com bom-humor, para se auto-intitular estilita, por ter uma coluna semanal a escrever. (Semanal, Mestre Affonso? Moleza!) 

Os estilitas de hoje, no entanto, não me parecem ser os místicos, os eremitas, e sim os pop-stars. O cara não entra para este ramo porque quer se isolar do mundo ou se aproximar de Deus. Ele entra porque quer subir num pedestal (a TV, o cinema, o rock) e ser visto por bilhões de pessoas. E existem bilhões de pessoas dispostas a passar a vida olhando para elas, não porque elas sejam algo fora do comum, mas porque estão no pedestal. 

O que é esse “Big Brother” da Globo (e seus congêneres) senão um mero pedestal? Ficam milhões de pessoas olhando aquela idiotice. Por que? Porque está em cima de um pedestal. (Ver coluna “Debruçado sobre Abbey Road”, 26.2.2004)

Se você construir um pedestal e pendurar lá em cima uma galinha morta, apodrecendo de cabeça para baixo, vai ter gente parando, sentando, olhando, admirando, discutindo... Porque é uma galinha morta? Não: porque está em cima de um pedestal. É assim grande parte das chamadas “obras de arte” das Bienais de hoje, e nesse ponto concordo com Affonso Romano, que há anos vem se batendo contra essa bobagem de se chamar qualquer galinha morta de “Arte” somente porque meia dúzia de espertinhos a colocaram num pedestal e começaram a vender ingressos.

Em seu “Sermão de Todos os Santos”, o Padre António Vieira comenta a vida de Simão Estilita, e diz: 

“Umas vezes orava de joelhos e prostrado, outras em pé e com os braços abertos, e nesta postura estava reverenciando continuamente a Deus com tão profundas inclinações, que dobrava a cabeça até os artelhos. Teodoreto, testemunha de vista, quis saber o número a estas inclinações, e tendo contado mil duzentas e quarenta e quatro, cansado de contar, não foi por diante.” 

Assim é a mídia, o show-business, o Art-business do mundo de hoje. Cada Simão tem um milhão de Teodoretos dispostos a ficar biguebrodeando sua vida 24 horas por dia. Não são devotos do santo: são os escravos do pedestal.







0332) Morte e vida em tela quente (13.4.2004)




(Spalding Gray)

Triste de quem é famoso; triste de quem um dia sonhou em viver em cima de um pedestal, sendo adorado e invejado pela plebe. 

É impressionante a maneira como certas pessoas querem subir socialmente (ou seja, distanciar-se da plebe) cortejando a plebe, pavoneando-se diante da plebe, transformando-se na encarnação das fantasias da plebe. Não vou citar exemplos (faltariam papel e tinta para tanto nas oficinas deste jornal), mas todos nós sabemos que muita gente é capaz de tudo “para aparecer”. 

Andy Warhol (ele próprio um subproduto típico dessa indústria do auto-espetáculo) dizia que no futuro todo mundo seria famoso por 15 minutos. Pois digo eu que no futuro todo mundo brigará pelo direito de ser humilhado publicamente durante 15 minutos.

É como os “estilitas” (atenção: não é “estilistas”), aqueles santos medievais que viviam encarapitados numa coluna, à vista de toda a população. Faziam-no por delírio masoquista, mas nós, modernos, o fazemos por delírio exibicionista. 

Os “reality shows” que enchem de câmaras a casa de uma família são o ápice desse processo. Ficam eles lá, se desincumbindo de suas tarefas e fazendo suas caras-e-bocas... e nós cá, olhando para aquele troço com a mesma expectativa de quem olha para um aquário. Quantas vezes passei uma hora inteira, no meio de uma tarde, acompanhando na MTV o cotidiano de Ozzy Osbourne! Por que? Provavelmente porque ver aquilo era mais interessante do que viver minha própria vida.

Quem se isola no alto do pedestal da mídia descobre, depois, que não é fácil descer. Corre o risco de ser estraçalhado por uma multidão sequiosa por relíquias. Enchemos o mundo de colecionadores de nós mesmos, e pagamos um preço. 

Uma das histórias mais melancólicas que já vi na imprensa foi de como Xuxa certa vez pediu à direção de um shopping que todas as lojas fossem abertas certo dia, de madrugada, para que ela pudesse “fazer compras no shopping”, como todo mundo. Claro que todas as lojas concordaram em fazer essa horinha-extra. No shopping-fantasma, deserto de gente de verdade, Xuxa e sua “entourage” passearam durante horas, comeram pipoca, fizeram compras...

Algumas semanas atrás, suicidou-se nos EUA o escritor e ator Spalding Gray, autor de monólogos confessionais e cheios de ironia. Num artigo no “Village Voice”, David Sweet comentou, referindo-se às pessoas famosas, que vêem sua vida transformada num espetáculo permanente: 

“Se você está se afogando e é famoso, as pessoas ficarão vendo você se afogar. Ficaremos imaginando qual daquelas outras pessoas foi contratada para salvar sua vida na hora H, ou ficaremos imaginando se tudo aquilo foi ensaiado. E se você morrer, pensaremos: ´Puxa vida, eu estava lá, quando ele morreu.´ Só há uma coisa que não faremos: ajudar.” 

A vida-espetáculo é cruel. Porque quando o ídolo morre, os fiéis batem palmas e pedem, sem uma lágrima, sem um suspiro: “O próximo!”






0331) Dorothy Parker (11.4.2004)




Vi poucas fotos dela. Era branca, aristocrática, delicada, mas com um tanto de aço inoxidável em sua composição, o qual lhe permitia esgrimir verbalmente noites inteiras, nas mesas do Restaurante Algonquin, de Nova York, cercada por homens tão lidos e tão vividos quanto ela. 

Foi jornalista, foi contista, mas ficou famosa nas décadas de 1920-30 pelos seus poemas curtos e implacáveis. O texto de orelha da edição da “Modern Library” diz que eles são “aguçados como pontas de flechas, e mergulhados no ácido borbulhante de seu humor.” 

Poucas mulheres (e poucos homens, aliás) terão tido uma vocação tão grande para a metáfora surpreendente, para a comparação “na mosca”, para o soco demolidor com luvas de pelica, para as coisas ternas ditas com crueldade e vice-versa.

Foi uma dessas mulheres que não têm medo de homem nenhum, e, como todas elas, pagou um preço maior que suas posses. Casamentos, divórcios, abortos, tentativas de suicídio, depressões, tudo está esmiuçado em suas biografias e homepages (um bom ponto de partida pode ser em: http://www.english.uiuc.edu/maps/poets/m_r/parker/parker.htm

Em seus poemas, ficou a auto-imagem de uma mulher ao mesmo tempo cínica e carente, cuja vida amorosa foi uma sucessão de saltos no escuro e de ossos partidos; de convalescenças e de recaídas.

Sua linguagem poética é minimalista, dando preferência às estrofes com esquema silábico britânico (8-6-8-6), ocasionais sonetos no modelo italiano, pequenos epigramas em quadras ou dísticos. O mais famoso deles é: 

Men seldom make passes 
at girls who wear glasses. 

Para o qual só cabe uma tradução infame: “Os homens não roubam ósculos / de garotas que usam óculos”. 

Sua poesia é difícil de traduzir, mesmo tendo uma linguagem simples, de imagens fortes e diretas. Grande parte do seu charme reside em ser impecavelmente rimada e metrificada, a um ponto quase impossível de preservar nos versinhos curtos e compactos que eram sua forma predileta. Seu talento para a rima rica e original é também famoso. 

Seu poema mais conhecido talvez seja “Résumé”, sobre o suicídio: 

Navalha dói. 
Rios são úmidos. 
Ácido mancha. 
Drogas dão cãibras. 
Revólveres são ilegais. 
Forcas cedem. 
O gás tem um cheiro horrível. 
Melhor ficar viva.

Escreveu nas principais revistas de New York, foi roteirista em Hollywood (duas vezes indicada ao Oscar, em 1937 e 47). Voltou para New York mas, ao envelhecer, afastou-se dos círculos intelectuais onde um dia chegou a ser considerada “a mulher mais espirituosa dos EUA”. E a mais amarga, também: morreu aos 73 anos, sozinha num quarto de hotel. 

Sua morte pegou de surpresa muitas pessoas que a imaginavam morta há muito tempo. Suas cinzas ficaram vinte anos num escritório jurídico, sem que ninguém as reclamasse. Li seus poemas pela primeira vez aos vinte e poucos anos, e sempre lamentei não ter tido o dúbio privilégio de ser um dos que lhe partiram o coração.





sábado, 29 de março de 2008

0330) Deus e o Diabo nos detalhes (10.4.2004)



Carlos Alberto Parreira, nosso incompreendido técnico campeão do mundo em 1994, deu uma entrevista certa vez e os jornalistas se queixaram de que a Seleção tinha jogado bem mas não fizera gols. Ele retrucou: “Não ter feito o gol foi uma questão de detalhe.”

Ele queria dizer que muitas vezes, embora a jogada saia toda certa, o gol deixa de ser feito porque o pé bate mal na bola, ou porque o pé-de-apoio escorrega, ou porque o chute sai fraco – ou seja, por pequenos detalhes cujo controle foge ao técnico.

Bastou isso para a imprensa ficar repetindo, como repete até hoje, que Parreira teria dito: “O gol não tem importância, é um mero detalhe.”

Isto me lembra uma frase que ouço há anos: “O Diabo está nos detalhes.” Só que também escuto o reverso desta frase: “Deus está nos detalhes”. “Que coisa curiosa,” fiquei matutando, “toda vez que um desses caras aparece o outro está junto!”

O que é mais do que natural. Se você é religioso, se acredita em Deus (nosso Deus ocidental), acredita também na existência do Diabo. Se não acredita num, também não acredita no outro. Mas, qual a frase original?

Fiz uma rápida busca na Internet, e fui informado de que a frase “Le bon Dieu est dans le detail” é atribuída a Gustave Flaubert, mas também há quem dê como seu autor o artista Michelangelo, os arquitetos Mies van der Rohe e Le Corbusier, e o historiador de arte Aby Warburg (estes 3 últimos podem muito bem ter lido em Flaubert).

A coluna “Word Court” de Barbara Wallraff, em “The Guardian”, também cita o uso da frase por Albert Einstein, Friedrich Nietzsche, Ronald Reagan e Ross Perot.

Acho que ocorre neste caso um fenômeno muito comum com as “frases célebres”: a gente ouve Fulano de Tal dizendo e passa a atribuir o dito a esse Fulano, sem que nos passe pela cabeça que o Fulano poderia perfeitamente estar citando alguém. Parece que uma frase só é famosa pra valer quando é atribuída a diferentes pessoas famosas.

A intenção dessa frase é clara: muitas vezes é nos pequenos detalhes que fazemos escolhas cruciais, que definem o sucesso ou o fracasso de nossa empreitada. Projetos gigantescos podem ir por água abaixo caso não se dê a devida atenção a uma bobagenzinha qualquer.

Um bom exemplo disto são as duas catástrofes ocorridas com os ônibus espaciais norte-americanos, o Challenger e o Columbia: ambos explodiram por causa de defeitos técnicos em pequenas peças que, ao serem submetidas às tremendas pressões de um vôo, não resistiram.

Já citei nesta coluna a frase de Conan Doyle, “nenhuma corrente é mais forte do que o seu elo mais fraco”.

Em certos tipos de estrutura, todos os elementos, mesmo os menores, têm o mesmo grau de responsabilidade. Se um deles se romper, de nada adiantou a solidez e a resistência de todos os outros. Em cada um deles está se decidindo, a cada instante, a luta entre a vida e a morte, a sorte e o azar, Deus e o Diabo.





0329) A magia de contato (9.4.2004)




Magia de contato é quando imaginamos que dois objetos ou seres que tenham estado em contato muito próximo permanecem ligados de alguma forma, mesmo depois que um vai para um lado, e o outro para outro. 

O exemplo mais comum disto é a importância dada às peças de roupa de alguém para se fazer um feitiço. Se você pega a meia (ou o lenço, ou sei-lá-o-que de Fulano) e utiliza num desses rituais, seja a Magia Negra para prejudicar o cara, seja uma mera simpatia para arranjar casamento, supõe-se que a mágica funciona porque os dois continuam “unidos”. Tudo que acontecer com aquele objeto acontecerá com Fulano.

Existe na Física Quântica um experimento cujos fundamentos técnicos escapam à minha compreensão, mas que imagino poder resumir de maneira adequada. 

É chamado EPR em homenagem aos físicos que o desenvolveram (Einstein, Podolsky e Rosen). 

O sujeito pega duas partículas que estão num estado que se chama “entrelaçado” (“tangled”); neste estado, certos valores numéricos da uma partícula são complementares aos valores da outra, de tal forma que se alterarmos o valor de A o valor de B se altera proporcionalmente. Não importa se uma dessas partículas foi levada para a Lua e a outra permanece na Terra; o que quer que se faça com uma será imediatamente refletido na outra.

Algumas pessoas, ao descrever este processo, o comparam com a conhecida e misteriosa afinidade que existe entre gêmeos idênticos. Mesmo quando são criados desde pequenininhos em cidades diferentes (às vezes até sem saber que têm um irmão gêmeo), esses indivíduos crescem de maneira muito parecida: em alguns casos, seguem a mesma profissão, botam o mesmo nome no cachorro, casam com mulheres muito parecidas uma com a outra. 

Sabe-se também que muitos gêmeos pressentem à distância que algo fora do comum (doença, acidente, etc.) está acontecendo com o irmão.

Quem quiser se aprofundar no efeito EPR pode consultar o artigo bem explicativo de Carlo Orsi Martinho em: http://www.dgz.org.br/dez02/Ind_com.htm

O que me interessa agora é registrar que em domínios completamente diferentes (a Magia Primitiva, a Física Quântica, a Biologia) parece existir um conceito pervasivo, um conceito que se dissemina por todos eles. 

Esse conceito é o de que dois seres ou dois objetos que em algum momento tenham estado ligados de forma muito intensa continuam mantendo, depois de se afastarem, um certo grau de ligação. Como numa liga de metais derretidos, os dois parecem se fundir e se mesclar parcialmente, de tal modo que para onde fôr “A”, estar sempre levando em si uma pequena parte de “B”, e vice-versa. 

O antigo símbolo do Yin-Yang oriental (o círculo dividido entre uma gota branca com bolinha preta e uma gota preta com bolinha branca) talvez seja o registro mais antigo, a síntese mais antiga desta noção que me parece essencial à nossa experiência: a noção de que a individualidade pura não existe, nunca existiu.






0328) Gatos e cachorros (8.4.2004)




Cresci numa casa onde tinha bicho de toda qualidade, parecia a casa do Dr. Dolittle. Minha mãe chegou a ter 8 ou 10 gatos de uma vez só, a tal ponto que nunca se achava uma cadeira ou poltrona onde não já houvesse um felino principescamente refestelado. Tivemos cágados e tartarugas, tivemos cutias de estimação (das quais só lembro a saudosa Balalaika, que um dia sumiu pela vizinhança, perseguida por uma horda de cães entusiasmados), tivemos até sapos, que percorriam a casa com a gravidade de desembargadores, procurando mosquitos com olhos míopes. Minha mãe tinha um amor à Natureza de fazer enrubescer a maioria dos ecologistas urbanóides que vivem aí pelos gabinetes. Curiosamente, não se orgulhava disso nem fazia alarde. Para ela, gostar de sapos e cutias era tão óbvio quanto respirar.

Pode parecer paradoxal, mas vem daí minha estranheza diante das pessoas que têm bichos de estimação, porque todo mundo ou tem cães ou têm gatos. Os americanos costumam perguntar: “Are you a cat person or a dog person?” Nunca vi um americano perguntar: “Are you a cutia person?” Em português usamos a expressão “gatos e cachorros” para dizer “todo tipo de coisa” (“Não gosto desse bar, aqui entram gatos e cachorros”), mas isso acaba limitando nossas opções mentais. Não vejo ninguém criar nada fora gatos e cachorros.

Eu já tive um galo amarelo, quando pequeno, e asseguro ao leitor que nenhuma decisão moral me foi mais custosa do que a de permitir a minha mãe passá-lo na panela quando a ocasião se apresentou. Outro bicho que pensei em criar foi um gaiamum que veio numa corda trazida por meu pai de uma viagem a Goiana. Simpatizei (eu tinha 8 anos, minha gente) com um dos gaiamuns, salvei-lhe a vida e fiz planos de criá-lo no quintal (que era cimentado) até que ambos atingíssemos a maioridade. Dias depois, cheguei de manhã ao quintal para ver o nosso cachorro na época (sim, havia cachorros também) parado, olhando-me com expectativa, com as patas do gaiamum emergindo da boca fechada. Eu ia fazer o quê? Sou cristão. Perdoei o cachorro.

Me desculpem os leitores de preferências felinas ou caninas, mas eu só acredito que alguém gosta de bicho se criar um iguana, um tatu, um castor... Não me venham de gato siamês ou husky siberiano. São modas passageiras insufladas pela mídia na mente de quem precisa de um tamagochi orgânico para alimentar, lavar, acarinhar... Por que não se voltam, então, para as minorias zoológicas que há milênios esperam um gesto de carinho, uma latinha de leite ao pé do fogão, um trapo aconchegante na área de serviço? Por que não criam um bicho de verdade – uma preguiça, um gambá, um ornitorrinco? Essa preferência absurda por cães e gatos parece o sistema eleitoral norte-americano, onde não se concebe a existência de um partido que não seja o Democrata ou o Republicano. No dia em que um terceiro partido eleger um presidente lá, eu juro que adoto um avestruz.

0327) Os postais do linchamento (7.4.2004)



(Cartão postal com linchamento de negros em Duluth, Minesotta, 1920)

Na semana passada, os jornais do mundo inteiro reproduziram imagens dos norte-americanos linchados em Faluja, no Iraque. O carro em que vinham foi alvejado por bombas; os corpos carbonizados foram puxados para fora, chutados, arrastados, e depois pendurados nas vigas de uma ponte, onde foram apedrejados. É uma imagem chocante, ver aqueles espantalhos desengonçados de carvão, balançando ao vento e levando cacetadas de uma multidão eufórica. “SELVAGENS”, foi a manchete que brotou espontaneamente em vários jornais dos EUA. E de fato, qualquer sujeito civilizado sente um calafrio diante daquilo. E não tenho dúvidas de que para muitos norte-americanos bastou esta cena para provar que os iraquianos são uma sub-raça de gente sem ética, sem valores e sem religião.

A cena me trouxe à mente, no entanto, uma canção de Bob Dylan. É engraçado, tudo parece ter um paralelo nas canções de Dylan. É como se a obra dele fosse um índice remissivo do mundo contemporâneo. Está tudo lá: página tal, página tal... Pois eu me lembrei de “Desolation Row”, cujos versos iniciais dizem: “Os postais do linchamento estão sendo postos à venda; os passaportes estão sendo pintados de marrom” (“They´re selling postcards of the hanging, they´re painting the passports brown”). A canção, que é de 1966, pertence à fase meio surrealista de Dylan, e sempre achei que essa história de vender cartões postais com imagens de linchamento fosse um símbolo, uma polaróide imaginária do inconsciente dos EUA, de sua incontrolável vocação para mercantilizar tanto a beleza quanto o horror.

Como eu sou ingênuo. Algum tempo atrás, o mapa em linhas tortas do Acaso me conduziu à descoberta do livro de James Allen, Without Sanctuary: Photographs and Postcards of Lynching in America. Allen reuniu fotos e postais que eram usados como souvenirs (sic) dos linchamentos públicos de negros e de imigrantes, nas primeiras décadas do século 20. Este material está reunido no saite “Musarium: Without Sanctuary”, em: http://www.musarium.com/withoutsanctuary/main.html. Particularmente instrutivas são as fotos de número 4 (“Bennie Simmons, vivo, banhado em querosene e incendiado”, 1913), 6 (dois imigrantes italianos), 10 (cadáver de um negro numa cadeira de balanço, rosto lambuzado de tinta branca)... bem, são 81 fotos ao todo.

Não estou dizendo que por causa disto os americanos do Iraque mereciam ser linchados. Ninguém merece. Ninguém precisa ser linchado. Mas o ser humano é, como dizia Bilac, “capaz de horrores e de ações sublimes”. Não há nenhuma razão “a priori” para que um branco odeie um negro, ou um iraquiano odeie um americano. Mas basta criarmos as condições econômicas, sociais e culturais para isto, o Orc que existe em cada um de nós brota para fora, feliz da vida, doido para linchar, torturar, assassinar. Já vimos isto até na boa e velha Paraíba, não vimos? Então é só abrir o olho, e não deixar chegar a este ponto. Obrigado pela atenção.


0326) Profissionalismo (6.4.2004)


(A escola no ano 2000 - gravura francesa)

Antigamente as pessoas aprendiam a fazer fazendo. Entrava-se numa profissão porque o pai e o avô já faziam aquilo, de modo que o futuro fazedor daquilo crescia num ambiente saturado de informação, motivação, vivência. Outras vezes, descobria-se precocemente num garoto um certo talento para alguma coisa (tocador de alaúde, ferreiro, domador de cavalos), e o garoto promissor era encaminhado a um Mestre no ofício, que tornava-se uma espécie de segundo pai e ensinador de tudo. Ou então o sujeito era forçado a trabalhar para manter a família, e não escolhia vocação: pegava o que aparecia, e aprendia o ofício na dura lei do dia-a-dia, da tentativa-e-erro.

Isso, no entanto, era em 1900-e-cocada. Hoje em dia, inventou-se uma palavra mágica: o Curso. Tem curso para tudo no mundo, a maioria deles nas universidades particulares, que brotam no solo brasileiro mais rapidamente do que as favelas. Não nego que a idéia por trás dos cursos universitários seja uma boa idéia. De boas idéias está cheio o mundo e a escalação da Seleção. Resta ver o que acontece na prática. Em teoria, o candidato a aprendiz iria passar 4 ou 5 anos de sua vida estudando, de forma concentrada e intensiva, tudo que dissesse respeito à sua futura profissão. Uma lavagem cerebral do-Bem. Quando saísse dali, estaria pronto para arregaçar as mangas e atender a clientela. Mas deve ter um bug qualquer no meio do processo, porque o Brasil está cheio de administradores que não sabem administrar, advogados que não advogam, filósofos que jamais filosofarão. Pode ser um problema de mercado de trabalho; mas pode ser o fato de que em algum trecho do processo a intenção se perdeu, e o cara não passa de um leigo com diploma.

Hoje em dia, todo futuro artista diz aos jornais: “Eu pretendo seguir a carreira artística, e já me inscrevi em cursos de Dicção, Empostação da Voz, Interpretação, Canto, Dança e Mímica.” Tem curso para tudo. E o jovem artista acredita, com toda a sinceridade dos verdes anos, que basta fazer um curso para ficar sabendo tudo que os outros sabem. Que me perdoem os jovens, mas eu acho que estão latindo na árvore errada. Eles acham que passar alguns meses ou anos cochilando na última fila de um cursinho é uma maneira prática de adquirir conhecimentos.

Eu ainda acho que futebol se aprende no campo, jornalismo na redação, música no palco e natação na água. Não sou contra os cursos e as escolas: sou contra a idéia simplória de que quem fêz um curso sabe mais da profissão do que quem não o fêz. Tem meia dúzia de profissões (Medicina, Odontologia, Engenharia, etc.) onde vai ser muito difícil o sujeito ser um autodidata competente, mas estas são as exceções, não a regra. Criou-se no mundo uma idéia de profissionalismo que não passa de um corporativismo disfarçado. O verdadeiro profissionalismo é o que valoriza o exercício competente da profissão, no universo da própria profissão, independentemente de como a profissão foi aprendida.


0325) I had a dream! (4.4.2004)



(Biblioteca do Trinity College)


Eu tive um sonho, e acordei hoje mais profético do que Martin Luther King. O pastor sonhava com um dia em que os negros teriam direitos iguais aos brancos. Eu sou mais modesto: sonho com o dia em que toda cidade brasileira terá uma Biblioteca Pública. Estarei com febre, com alucinações? Que nada. Não sonho com biblioteca de filme americano: edifícios imponentes, leões de pedra ladeando as escadarias, enorme pé-direito em mármore, centenas de mesinhas dispostas em grade. Penso em bibliotecazinhas modestas como muitas que já vi. No centro da cidade, de frente para a praça onde há também o cinema e a igreja, tem aquela casinha amarela, espremida entre uma barbearia e uma lanchonete. Você entra, e lá dentro tem quatro ou cinco mesas de formatos e tamanhos diferentes (que claramente foram doadas por particulares), um birô com uma bibliotecária atenta e um fichário do lado, e ao longo da parede umas estantezinhas com livros.

Não são obras raras, obras caras. São aquelas velhas coleções encadernadas que se encontram nas salas de tantas famílias brasileiras, compradas a prestação numa época remota em que livros eram vendidos de porta em porta. É aquele Monteiro Lobato verde-escuro, aquele Jorge Amado vermelho-e-branco com letronas, aquele Dostoiévski vermelho da José Olympio cravejado de maravilhosas gravuras de Darel, Lívio Abramo, Goeldi. São as enciclopédias tornadas obsoletas pela Internet: a Delta-Larousse verde-escura, a gigantesca Mirador, a manuseada Barsa. Tem aquela coleção branca do Prêmio Nobel com uns autores que ninguém sabe mais quem são (quem diabo era Theodor Mommsen, Bjornstjerne Bjornsson?), tem aquela coleção verde com os melodramas de A. J. Cronin, tem o saudoso “Tesouro da Juventude”, e não esqueçamos os refugos das coleções de bancas de revistas: “Os Pensadores”, “Os Imortais da Literatura”, “Os Economistas”...

Muitos amigos meus hão de torcer o nariz diante de um tesouro cultural tão defasado, mas não reside aí o X da questão. O X é a existência de milhões de garotos e garotas, Brasil afora, que são doidos para ler mas não têm como, porque em suas cidades não se vendem livros, e mesmo que vendessem eles não teriam dinheiro para comprar. E não me venham com conversa de que por causa da Internet e dos videogames ninguém se interessa por livros. Quem gosta de ler gosta de livros. As bibliotecas que descrevi acima existem. Já as vi, com variações, espalhadas pelo Brasil afora, e quando as vi o que menos olhei foram as estantes. Olhei as caras mulatas ou caboclas dos adolescentes do Pará, do Paraná, do Espírito Santo, do Estado do Rio, de Minas, todos de olho enfiado num livro de Érico Veríssimo, num “Dicionário da Mitologia”, numa “Veja” do ano passado, num romance de Agatha Christie, num volume de Castro Alves. Lêem porque pertencem a uma elite: a das pessoas que tiveram um sonho e perceberam que não é sonho.

0324) Godard: o cinema pela 1a. vez (3.4.2004)




(Anna Karina e Eddie Constantine em Alphaville)

Nenhum cineasta atraiu, em seus dez primeiros anos ou dez primeiros filmes, tanta devoção irrefletida e tanto ódio injustificado quando Jean-Luc Godard. 

A partir de Acossado (1959) ele fêz um desmonte da linguagem do cinema. Ao ver um filme seu pela primeira vez (acho que foi Masculino, Feminino), não entendi a história e principalmente a mensagem do filme. Naquele tempo, todo filme tinha que ter uma mensagem: uma idéia abstrata resumida em poucas frases e que, bem assimilada, nos dispensava até de ver o próprio filme. 

No cinema de Godard havia uma profusão de pequenos “erros” de iluminação, de enquadramento, de mixagem sonora, de direção de atores... A todo instante, aparecia um errinho novo. Parecia que o sujeito estava dirigindo um filme pela primeira vez. 

E só aos poucos (depois de Alphaville, O desprezo, Viver a vida...) fui percebendo que era justamente isso. Godard fazia cinema como se o cinema estivesse começando ali, e nos obrigava a vê-lo com os mesmos olhos.

Tenho amigos que sentem por Godard o mesmo que as viúvas do 11 de setembro sentem por Osama Bin Laden. O primeiro filme de Godard pulverizou em poucas horas tudo que eles tinham de mais precioso, tudo que tinham de mais inquestionável. Quando você começava a se emocionar, a se envolver com o filme... pluft! Vinha um daqueles errinhos e cortava o barato. 

Godard era cria de Brecht, de Picasso, de Borges, de Barthes, dos grandes metalinguistas. Quando a história passada na tela começava a nos fazer sonhar, ele nos cutucava as costelas: “Acorda. É mentira. É linguagem. É só um filme.” E muita gente até hoje não o perdoa.

Em Tempo de Guerra, um cara vai pela primeira vez ao cinema, e no filme uma mulher se despe antes do banho. Quando ela começa a tirar o soutien, sai de quadro pelo lado esquerdo. Ele levanta-se da poltrona e vai andando para o lado oposto, atropelando os outros espectadores, tentando ver a mulher que saiu de quadro. A cena prossegue de maneira hilária, pela ingênua insistência do personagem em tentar olhar aquilo “como se fosse de verdade”.

Em O desprezo, Godard filma em cinemascope, mas mesmo assim a câmara se move de um lado para o outro num diálogo entre Michel Piccoli e Brigitte Bardot, quando o enquadramento convencional mandaria colocar os atores de perfil nas extremidades do quadro. 

Em Alphaville, Eddie Constantine e Anna Karina tomam café juntos, de frente um para o outro. Os atores estão fora de quadro: tudo que vemos são suas mãos gesticulando, servindo-se, mexendo o café, etc. 

Muita gente ainda lê isso como a arrogância insuportável de um super-intelectual francês querendo ser modernoso. Eu leio isso como o bom-humor tranquilo de um sujeito meio rebelde, que pergunta aos intelectuais: 

“Por que assim, e não de outra forma? Por que do seu jeito, e não do meu? Por que aceitar o seu mundo, quando eu posso pelo menos imaginar um mundo diferente?”





0323) Coração de mãe não se engana (2.4.2004)



(Luz Cuevas e sua filha)

A imprensa noticiou um caso curioso ocorrido em janeiro nos EUA. Luz Cuevas, uma mulher de origem hispânica, perdeu uma filha com apenas dez dias de nascida quando sua casa em Filadélfia foi destruída por um incêndio em 1997. A investigação provou que a origem do fogo foi um “gato” na instalação elétrica; o corpo da criança não foi encontrado, e a polícia concluiu que ele teria sido totalmente consumido, dada a intensidade das chamas. Os anos se passaram, Luz e seu marido Pedro tiveram outro filho, mas acabaram se separando. Um dia, Luz Cuevas foi a uma festa infantil e a certa altura seu olhar bateu numa menina de 6 anos que brincava no meio dos outros. E ela teve a certeza absoluta de que era sua filha, que estava viva.

A certeza foi tão grande que ela aproximou-se da criança, fingiu que havia um pedaço de chiclete preso no cabelo da menina e deu um jeito de cortar alguns fios, que guardou num saco plástico. Em seguida, procurou um político da comunidade hispânica local, contou sua história, e pediu um exame de DNA. O cara hesitou a princípio (eu também pensaria “essa mulher é doida”), mas a veemência e a convicção dela eram tão grandes que ele levou o caso à polícia e fêz pressão até conseguir um exame. O exame não deixou dúvidas: a menina era mesmo a filha de Luz Cuevas. Havia sido raptada por uma vizinha que em seguida provocou o incêndio para ocultar as pistas.

Pergunto eu: e agora? O que diabo é isto, senhoras e senhores? Percepção extra-sensorial? Clarividência, paranormalidade? Se a Sra. Cuevas tivesse simplesmente tido um palpite e ficado esperneando o resto da vida, sem provar nada, nenhum de nós lhe daria a menor atenção. Palpite todo mundo tem, e de cada 100 pessoas que jogam no bicho só uma tem o palpite confirmado. Mas aqui entra em cena um detalhe importante, amigos, a que eu chamo A Palavra da Ciência. A Ciência não tem nenhum preconceito contra os palpites, as premonições, as clarividências. A Ciência diz: “Tentemos descobrir um modo de confirmar se isto é verdadeiro ou não.” E às vezes consegue.

O que aconteceu, na minha opinião, foi um fenômeno muito curioso da mente humana, chamado de “reconhecimento de padrões” (“pattern recognition”). No caso, padrões fisionômicos, corporais, motores, porque tudo isto são características geneticamente transmissíveis. O exemplo de Luz Cuevas é ainda mais notável porque a filha foi raptada com poucos dias de vida, ou seja, não houvera tempo ainda para a “assimilação social”, o processo imitativo que decorre da convivência com os pais. Quando ela viu a menina, percebeu uma série de pequenos detalhes fisionômicos dela própria e do marido, coisas que qualquer um de nós observa nos próprios filhos, mas a que não dá muita importância, devido ao excesso de convivência. Está tudo lá. “Fica um pouco do teu queixo no queixo da tua filha”, dizia Drummond; dá à Ciência este pouco, e ela mudará teu mundo.

0322) O efeito Ono-Chapman (1.4.2004)


(Yoko Ono)

Quando ouvi a notícia, não acreditei, e corri à Internet para verificar. Pensando bem, se fui verificar é porque acreditei um pouquinho, não é verdade? Se não acreditasse, encolhia os ombros e ia pensar noutra coisa. Mas a notícia era tão fantástica que merecia ser checada. Yoko Ono está noiva de Mark Chapman, o assassino de seu marido John Lennon. A julgar pelas informações, nos últimos anos Yoko fêz uma série de visitas a Chapman (que cumpre prisão perpétua na prisão de Attica), como parte de uma campanha mundial voltada para a paz e o perdão. Nesses contatos, Chapman abriu o coração, e confessou as inseguranças e paranóias que o levaram ao crime. Tocada pela sua evidente sinceridade e pelo seu arrependimento, Yoko foi aos poucos se apaixonando pelo rapaz, que afinal de contas era apenas mais um beatlemaníaco como tantos outros... E os dois teriam anunciado em público o seu noivado.

Parece absurdo, não é mesmo? Tanto parece que é. É mais um dos inúmeros primeiros-de-abril (desta vez um tanto adiantado) que todo ano circulam na Internet. Quem quiser ver o texto completo da pegadinha pode ir ao saite Tomate Maravilha (http://tomate2.blogger.com.br/) . Tudo bem, era só brincadeira. Mas por que essas coisas colam? Porque, no fundo, sabemos que nada é tão absurdo que não seja possível, ou, pelo menos, nada que dependa dos sentimentos e das emoções humanas. Jorge Luís Borges comentou certa vez que os romances psicológicos o entediavam porque neles as atitudes mais implausíveis tinham plena justificação dramática: “suicidas por felicidade, assassinos por benevolência, pessoas que se adoram a ponto de se separarem para empre, delatores por fervor ou por humildade...”

Pois é: acreditei. E olhe que em todo o “affair” da separação dos Beatles sempre fui um defensor de Yoko, a quem absolutamente não responsabilizo pelo fim da banda. O problema ali era a administração caótica deixada por Brian Epstein, a ingenuidade financeira dos meninos, e muito oba-oba regado a LSD. A incompatibilidade das esposas, Yoko e Linda Eastman, pode ser sido uma mera gota dágua. Dizem que Yoko é feia e canta mal, mas, e daí? Queriam que um cara como Lennon casasse com quem – com Sandy? Yoko é uma artista competente, dentro dessa coisa nebulosa que é a arte conceitual; e, aqui pra nós, passei uns 20 anos plagiando os poemas dela em Grapefruit, excelente livro.

A gente acredita porque sabe que todo mundo é capaz de tudo. Nunca tenhamos certeza, amiguinhos. Nós mesmos, volta e meia, estamos fazendo coisas que jamais imaginaríamos. Percebi isto quando vi um clássico no “Amigão” em que Pedrinho Cangula jogou pelo Treze, e Carioca jogou pelo Campinense. Não precisa mais nada para me provar por a + b que nada é impossível, que nunca devemos ter 100% de certeza, que em qualquer situação humana o “efeito Ono-Chapman” está de emboscada, pronto para puxar o tapete sob nossos pés e nos levar ao inferno ou ao paraíso.

0321) A Redentora (31.3.2004)



(Colégio Estadual da Prata, foto atual, retirada do saite do prof. Badu, em http://www.colegiodaprata.xpg.com.br/)


O dia 31 de março está trazendo aos jornais uma enxurrada de memórias e testemunhos sobre a famosa “Redentora”, a Revolução de 31 de março – ou o Golpe de 1o. de abril, de acordo com o ponto de vista de quem se refere a nossa mais famosa quartelada. Eu tinha 13 anos nesse dia histórico, do qual guardo uma vaga lembrança que certamente não trará novas luzes sobre a História do Brasil, mas, enfim...

No dia do golpe eu estudava no Colégio Estadual da Prata, onde fazia o 3o. ano ginasial. Os colégios desse tempo tinham uma certa rigidez com negócio de farda. Era a calça e camisa cáqui com listas verdes, e o cara tinha que usar cinturão, meias e sapatos pretos. Até 31 de março ainda se podia ir com uniforme incompleto, mas dali em diante quem não fosse completo voltava da porta. Nesse dia, 1o. de abril, às 7 da manhã, eu e mais uma meia-dúzia fomos barrados porque faltava alguma coisa. Como minha família era muito metódica, não sei o que podia estar faltando – de repente peguei uma meia marrom-escuro em vez de preta, mas a fiscalização era rigorosa, e não pude entrar.

Àquela altura, já se sabia que alguma coisa diferente estava acontecendo no país, mas o único sinal disso era uma tropa de 10 ou 12 soldados de polícia postados diante de cada portão do colégio. Certamente para impedir que os milhares de secundaristas do Gigantão saíssem em passeata bradando slogans marxistas. O que estava, aliás, muito além da nossa capacidade. A gente se limitou a correr para aquela balaustrada do pátio aberto, aquele do lado direito, e ficar cantando: “Acorda Maria Bonita... levanta pra fazer café... que o dia já vem raiando... e os polidoros já tão de pé!”

“Polidoro”, para quem se lembra, era o apelido genérico dos soldados de polícia. Depois de muita gozação e cantoria, voltei para o apartamento de minha Tia Adiza, na Praça Félix Araújo, onde eu costumava passar uns dias de vez em quando, porque era perto do colégio. Mas me lembro que naquela mesma noite, ou na seguinte, fui jantar em casa, e meus pais ficavam com o rádio ligado o tempo inteiro, acompanhando aquela lenga-lenga: Jango vai resistir? Brizola tem tropas? Vai haver guerra civil? Logo a situação se definiu como uma vitória-sem-sangue dos militares. O rádio bradava, naquele adesismo eufórico de última hora, que a corrupção acabava de ser eliminada do país. Eu perguntei a meu pai se era verdade, e ele resmungou: “Não. Isso quer dizer apenas que acabou o furto, e vai começar o assalto-à-mão-armada.” Não deu outra.

Não mudou muito, na verdade. Março de 64 foi como aqueles pequenos abalos sísmicos que precedem o terremoto-pra-valer, ou o quase-enfarte que alerta o sujeito de que o próximo vai mandá-lo pro beleléu. Poucos períodos em nossa História devem ter sido tão intensos e vívidos quanto os anos entre aquela manhã e o ano de 1968 – quando o AI-5 instituiu de vez o regime “do baraço e do cutelo” na pátria amada. Mas sobre isso falarei em 13 de dezembro.

sexta-feira, 28 de março de 2008

0320) Cantigas infantis (30.3.2004)




Freud dizia que a riqueza não traz felicidade porque não é uma das coisas que desejamos na infância. Tenho a pessimista impressão de que dentro de mais alguns anos a lavagem cerebral capitalista terá se encarregado de suprir essa deficiência. Enquanto isto não acontece, nossa memória afetiva é incrustada de elementos que ali se fixam muito antes de adquirirmos um senso crítico ou um filtro racional para escolher o que nos convém ou não. Falei nisso em “A colonização do subconsciente” (28.12.2003), tentando justificar minha inexplicável (em termos rigorosamente estéticos) ternura pelas baladas de Neil Sedaka ou pelos faroestes de Audie Murphy.

Na infância lemos, vemos ou ouvimos coisas que não entendemos por completo, mas que se fixam em nossa memória pela repetição, ou por estarem associadas a eventos deslumbrantes, terríveis ou inesperados. Tornam-se fórmulas mágicas que valem não pelo que dizem, mas pela espessa teia de referência emocionais e de conexões mentais que arrastam consigo. Veja-se o caso das cantigas infantis, por exemplo. Penso nisto porque quando eu era pequeno havia uma parlenda: “Lá em cima do piano tem um copo de veneno; quem bebeu, morreu. Puxa o rabo do tatu, quem tafó-ré-tu.”

Esse copo de veneno deixado por distração (ou maquiavelismo) em cima do piano, à espera da vítima descuidada, sempre me pareceu um toque agatha-christiano autêntico. Não estou exagerando nem comparando água com vinho. Algumas “nursery rhymes” britânicas fornecem a estrutura básica de livros da Dama do Crime, como O Caso dos Dez Negrinhos, Os Cinco Porquinhos, A Pocket Full of Rye, One, Two, Buckle My Shoe. Outras fornecem, através de um verso, o ponto de partida da história, como Hickory Dickory Death, Croooked House, Sing a Song of Sixpence...

Freud explica, essa ligação aparentemente ilógica entre inocentes cantigas de criança e assassinatos? Acho que nem precisamos dele. Canções infantis, como as histórias infantis e os contos-de-fadas, têm raízes remotas na memória social dos povos, e não são tão inocentes quanto gostaríamos. Falam de madrastas cruéis, em crianças enterradas vivas ou perdidas na floresta... Uma cantiga inglesa de jardim-da-infância diz: “Ring a ring of roses, a pocketfull of posies, atishoo, atishoo, all fall down.” Diz a tradição que os versos se referem à Peste Negra: o círculo de manchas vermelhas em volta da boca, os bolsos cheios de flores, os espirros, a morte.

Versos aparentemente inocentes podem ser resíduos de experiências terríveis do passado, de épocas de enorme mortalidade infantil ou de extrema crueldade com crianças. As cantigas infantis não são politicamente corretas; não foram concebidas por um comitê de assistentes sociais. Nasceram, como toda poesia popular, de uma lenta acreção de imagens e situações ao longo de um ciclo em que crianças recebem essas fórmulas mágicas, e as passam adiante na velhice.

0319) Nós, robôs (28.3.2004)


("ArtBots" - Fernando Orellana - "Drawing Machine 3, 14159")

Para muita gente foi uma decepção o Grande Desafio de veículos robôs, realizado há poucos dias no deserto de Mojave (EUA), sob o patrocínio da DARPA (Agência de Pesquisa em Projetos Avançados de Defesa). Tratava-se de um percurso de 241 km a ser cumprido através do deserto por veículos totalmente autônomos, ou seja, depois de dada a partida o veículo teria que se virar sozinho, subindo ladeiras, contornando obstáculos, etc.

Apareceram 106 interessados, que foram submetidos a um filtro prévio, até restarem apenas quinze equipes consideradas aptas a concorrer. Munidos com localizadores GPS (via satélite), os veículos teriam que cumprir um percurso ao longo de 2000 pontos possíveis de localizar automaticamente. O resultado, no entanto, ficou muito aquém do esperado. Nenhum dos veículos cumpriu mais do que 5% do trajeto, e o prêmio de um milhão de dólares não teve ganhador. Veículos capotaram, outros caíram em barrancos. Parece distante o objetivo dos americanos, de que um terço de todos os seus veículos militares sejam totalmente autônomos por volta de 2015.

Por outro lado, parece que na área esportiva estamos indo melhor. A ROBOlympics, olimpíada para robôs realizada em 20-21 de março em San Francisco (Califórnia) reuniu 414 robôs de 11 países em 34 diferentes eventos esportivos, que incluíram desde futebol até luta de sumô, combate ao fogo, solução de quebra-cabeças, travessia de labirintos, e outros desafios que os técnicos consideram ao alcance dos robôs de que dispomos atualmente. As “robolimpíadas” não têm ligação com o Comitê Olímpico Internacional: são um evento organizado pelos técnicos e pelas empresas envolvidas. Quem quiser mais detalhes, é só ir para: http://www.robolympics.net/index.shtml.

Sei que esta coluna é lida por muita gente de formação não-científica, não-técnica. Que tal, então, considerarmos a ArtBots, uma exposição internacional de arte robótica? Aconteceu pela primeira vez em 2002, em New York, e este ano deverá ter sua terceira edição. A exposição exibe qualquer obra de arte que envolva robôs, num critério bastante amplo. Dizem os organizadores: “Inscreva seu trabalho, se você acha que é um robô, e se acha que é arte.” Ou seja: são aceitas obras produzidas por robôs, ou obras que contenham algum tipo de mecanismo robótico: objetos, instalações, esculturas... Regulamento e detalhes podem ser obtidos em: http://artbots.org/ -- e cada obra inscrita recebe 500 dólares de participação! (Infelizmente, todas as despesas correm por conta do participante)

Parece bobagem, mas vendo isso eu me sinto como Isaac Newton, apanhando conchinhas na beira do oceano da sabedoria. De repente, lá vem um peixe se arrastando para a areia, com nadadeiras que já começam a se parecer com pernas... Para uns é grotesco, para mim é fascinante e assustador. Oxente, pessoal, é como qualquer começo de um mundo novo. No começo a gente estranha; depois, fica se perguntando como conseguiu viver sem aquilo.