Tem uma cena de Deus e o Diabo na Terra do Sol em que
Antonio das Mortes e o cego Júlio, o cantador, estão sentados num batente tendo
diante de si, escancarada, a planura em chamas do sertão ao meio-dia. O cego pergunta o que ele está vendo, e
Antonio diz: “É o sertão grande de Canudos”. O cego não vê o que Antonio está
vendo; talvez nunca o tenha visto, se for cego de nascença. Mas ele sabe onde
está sentado, e deve ter sentado centenas de vezes ali, ao longo da vida,
ouvindo as pessoas comentarem o sertão grande à sua frente. Cuja existência
material ele atesta, por fé em todas as constatações-às-apalpadelas que a vida
lhe proporcionou (praticamente tudo que as pessoas dizem estar ali está, de
fato: porta, sofá, cadeira, mesa...).
Igualmente cego é o personagem de Amarcord de Fellini, o
ceguinho sanfoneiro também de óculos escuros, que vai na romaria de barcaças
que saem à noite para ver um transatlântico passar numa Babilônia de luzes. O
ceguinho não viu esse outro prodígio, mas teve a mesma certeza dos demais.
(Resta a discussão filosófica para saber se uma certeza pode ser maior que
outra só por ter passado por mais crivos, mais testes.) O cego Júlio não via o
sertão grande, mas mostrava. Talvez Antonio das Mortes tenha precisado do cego
para ver o sertão melhor.
O vazio opressivo dos imensos espaços do sertão é tão
poderoso quando a opressão maciça de uma metrópole, mesmo sendo de outra
natureza. Depende não só da visão, mas de outros mecanismos inconscientes de
sentir pressão, vento, concentração de ar, nuances atmosféricas para as quais
basta estar ligado. O sertão vai virar mar, e o mar vai virar sertão: os dois
grandes opostos convergem um sobre o outro, rodopiando como num símbolo do
Yin-Yang. São formas extremas, sua tendência é ir na direção do seu oposto
simétrico.
Um olho olhando para fora, o outro para dentro. Sérgio
de Castro Pinto explorou na poesia a dualidade caolha de Camões e Lampião. Mas o
herói caolho também pode ser como o Snake Plissken de Fuga em Nova York, ou
como o arquétipo do pirata de olho de vidro, mão de gancho e perna de pau: mais
do que um remendado, um obstinado sobrevivente. Alguém que a morte só está
conseguindo derrubar aos poucos.