domingo, 16 de março de 2008

0264) A Larva Eletrônica (24.1.2004)




(Videodrome, de David Cronenberg)

Existe dentro de cada um de nós uma pequena larva, um embrião de ectoplasma esperando para crescer. É minúscula: não passa de um filete que sobe ao longo da medula espinhal, e que quando alcança o cérebro se ramifica numa árvore fractal, ao longo das cadeias de neurônios onde nossa consciência habita e pulsa. Esta larva faz parte dessa consciência, tanto quanto os sistemas automáticos que, independentes de nossa vontade, fazem nosso coração pulsar, nosso estômago e nossos intestinos funcionarem, nossa perna dar um pinote quando o médico nos martela o joelho. Essa larva é a nossa consciência imagética, e durante milhões de anos viveu em nós adormecida.

Em mim ela deve ter despertado na primeira vez em que vi minha imagem na televisão, andando falando, sorrindo, respondendo perguntas com minha voz, debatendo com minhas idéias. Não era meu corpo; meu corpo estava aqui diante da TV, o que eu podia confirmar, apalpando-me. Era o corpo de quem, então? Hoje sei a resposta: era o corpo “dela”, da minha Larva Eletrônica. Ela é uma alma que existe no meu corpo, mas o corpo dela não é feito de carne e osso, é feito de sinais eletrônicos, cuja vibração de som e imagem é capaz de despertá-la. Indiferente à minha imagem no espelho, a Larva é ativada pela minha imagem da TV, estremece, desperta, sente-se viva.

Talvez venha daí essa minha fascinação em me ver na telinha, essa sensação de alívio, de que agora sim, finalmente, graças a Deus: despertei. Todos os meus momentos de vida meramente biológica são um perambular de sonâmbulo. Só desperto de verdade (meu deus, é a Larva que está escrevendo estas linhas?) quando meu corpo surge na TV, brilhando em seus pixels reluzentes de códigos digitais e relâmpagos eletrônicos. Claro que Braulio Tavares continua existindo fora desses momentos, continua a funcionar vida afora como um bom mamífero antropóide, como um ator que cumpre seus papéis sociológicos. Mas quando ele se vê na televisão, quando ele “me” vê, ele respira fundo e se sente existindo por completo.

Sim, sei que é uma teoria mirabolante, mas somente ela explica que tantas pessoas sejam capazes de tantos absurdos; que sejam capazes de negar tudo o mais em si, que sejam capazes de inimagináveis concessões, pactos, servidões clandestinas, auto-violências morais. Tudo isto para que a Larva possa se ver em seu espelho colorido. Tudo isso para que sintam em seu cérebro e sua medula espinhal o fremir da Criatura. Ela veio embutida em nosso DNA, talvez como uma combinação casual, mas que começou a ser despertada pela pintura, pela escultura, pela fotografia, pelo cinema, para finalmente brotar, viva, inteira e completa, como se a cabeça de Júpiter se abrisse e dali brotasse não a deusa Minerva, mas uma Górgona eletrônica que se rejubila em sua existência híbrida e brada com voz cavernosa: “Eu existo! Agora eu sei que existo! Eu me vi na TV!”





0263) As barreiras invisíveis (23.1.2004)





(Ilustração de M. Guillemin para "La République 3000")


Imagine, caro leitor, que você está andando por uma vastidão deserta, e vê lá no horizonte uma espécie de muralha irregular que se estende a perder de vista, barrando o caminho. Quanto mais você se aproxima, mais fica perplexo com aquele muro de alguns metros de altura, que parece não ter fim, à direita e à esquerda, indo até onde a vista alcança. Você chega mais perto, e sua surpresa é maior. Não é um muro: é uma longa fileira de esqueletos de pessoas e animais, amontoados uns sobre os outros. Há esqueletos antiquíssimos, prestes a se esfarelar; outros recentes, ainda com pedaços de carne mumificada. Esqueletos humanos portando armas, roupas e utensílios de séculos atrás; e até mesmo esqueletos de mamutes, de brontossauros, de criaturas extintas, todos misturando-se numa profusão de ossos, crânios e objetos partidos. E tudo isto enfileirando-se a perder de vista no horizonte.

Esta é a imagem que me ficou do livro A Filha do Inca de Menotti del Picchia, uma tentativa de fazer literatura “julioverniana” no Brasil em 1930. Tentativa bem-sucedida, pois o livro está em catálogo até hoje, e em 1950 teve uma edição francesa pela Albin Michel, “La République 3000”. No decorrer do romance, ficamos sabendo que ali existia uma cidade futurista, oculta no Brasil Central, e “aquela barreira de esqueletos era uma misteriosa barreira elétrica, riscada no coração do sertão brasileiro por mãos invisíveis e prodigiosas.” Ou seja: há milhares de anos que animais aproximavam-se daquele ponto da campina e eram eletrocutados pelo campo de força invisível, tombando ali mesmo.

Este é um exemplo simples de um dos processos de formação de imagens da ficção científica. Em primeiro lugar, a gente se depara com algo estranho que surge ou acontece (a muralha inexplicável no horizonte). Podemos chamar a isto o Sinal; em outros livros é o encontro de um artefato (um monolito, uma espaçonave enterrada), a descoberta de um planeta habitado, etc. O Sinal é o que desencadeia pra valer a história, e faz com que os personagens se mobilizem para examiná-lo. O exame do Sinal faz brotar o segundo estágio, o Mistério. Ao ser visto de perto, o fato estranho revela-se muito mais estranho do que parecera à primeira vista. E a narrativa mostra o esforço dos protagonistas em encontrar uma explicação racional (embora fantástica) para o mistério: uma barreira invisível que eletrocutava os intrusos. É a Resposta.

A ficção científica fala muitas vezes “dos perigos da ciência”, mas na maioria das vezes ela nos conduz por um percurso mental que reproduz as fases da descoberta científica: o Sinal, o Mistério, a Resposta. É um processo de descoberta, de conhecimento. A FC, em vez de ser uma mera glorificação da tecnologia, é uma literatura que em última análise nos convence de que é possível solver mistérios, é possível explicar o aparentemente inexplicável.




0262) Terra de Reis (22.1.2004)




Um trabalho musical que tem me emocionado é o CD gravado por Sérgio “Siba” Veloso com os músicos de Nazaré da Mata, “Fuloresta do Samba”. Siba estudou música na universidade de Pernambuco, tocou guitarra em banda de rock e, depois de percorrer musicalmente aquilo que Drummond chamava “os mesmos sem roteiro tristes périplos”, acabou encontrando sua turma e sua praia. Primeiro com o grupo Mestre Ambrósio, uma criativa parede sonora e poética à base de percussões, rabecas e loas de maracatu rural. E agora com o “Fuloresta”. Siba saiu de São Paulo, onde tinha ido morar com o resto do Mestre Ambrósio, e, como diria minha mãe, foi se socar lá em Nazaré da Mata, onde conviveu com os músicos locais, tocou, ouviu tocar, contou, ouviu contar, e compôs, sozinho ou em parceria com eles, as faixas do CD “Fuloresta do Samba”. Um disco emblemático a começar pelo título, onde um aparente erro de português gera uma faísca de pura poesia, e onde um aparente ritmo carioca emerge em sua universalidade mestiça e brasileira.

Que impulso leva um rapaz branco, de boa família, a ir fazer um Mestrado de Música não numa dessas tantas sorbones, mas no meio de músicos iletrados, que fazem uma música considerada velha? O cara que faz isso já tem tanta coisa aprendida, sabida e codificada! Ele sente falta do quê? Ele acha que precisa descobrir mais o quê? Em que diabo ele quer transformar o gesto cultural de fazer e tocar música? Deve ser algo parecido com o que o americano Ry Cooder sentiu quando em 1996 foi parar meio por acaso na ilha de Cuba e ali descobriu um tipo de música que o emocionou e o iluminou por dentro, a ponto de fazê-lo criar o projeto “Buena Vista Social Club”. É como se um sujeito saísse da Biblioteca Nacional, onde tudo está ao seu dispor, e fosse mexer nos folhetos pendurados em barbantes, na calçada. O que diabo pode ter ali que a Biblioteca não tenha?

Poderíamos perguntar também a Paul Simon, que em 1985 pegou um avião e foi para a África do Sul sem saber muito bem que disco ia gravar, mas já sabendo a quem pedir emprestado o conceito de Música. Daí brotaram os 14 milhões de discos que “Graceland” vendeu no mundo inteiro. Acho que em todos estes artistas, surge de repente um angústia de não estar achando algo nas estantes da Biblioteca. É preciso ir para a rua, pois foi lá, paradoxalmente, que se refugiou a Memória-Prima de nossa história musical. Claro que esses músicos “primitivos” têm técnicas próprias, linguagens próprias, truques e espertezas próprios, recursos do fundo do baú. Mas acima de tudo são Mestres, no sentido antigo da palavra, porque vêem a música (sem lhe dar estes nomes pomposos) como uma sagração do profano, uma imortalização do efêmero. A música que eles fazem é Vida destilada, concentrada, compactada. Por isso, talvez, os versos reverentes de Siba: “Eu estou pisando em terra de Reis, eu estou pisando...”

0261) Rua Braulio Tavares, número tal? (21.1.2004)




Se eu morrer algum dia, o que espero que jamais aconteça, ninguém venha me fazer homenagens tipo botar nome em rua. Sou contra. Toda vez que aparece um projeto de nome-de-rua para um figurão que acabou de falecer, são duas as famílias enlutadas: a do recém-falecido e a do morto antigo cujo nome foi desalojado para dar lugar ao nome do morto recente. Até parece que quando o cara morre desaparece, e deixa em seu lugar apenas o nome, uma tralha enorme e incômoda atravancando os corredores da Prefeitura, e que a única maneira de se livrar daquilo é botando o nome do sujeito em algum lugar.

Aqui no Rio o caso mais polêmico foi o de Tom Jobim, cujo nome quiseram dar à Avenida Vieira Souto. Claro, o maestro merecia homenagens, mas quando a mudança foi anunciada a família Vieira Souto pintou-se para a guerra, empunhou as machadinhas e foi à luta. O nome não foi mudado, e o nome de Tom acabou indo para o aeroporto do Galeão, que aliás continua a ser Galeão para o povo e Tom Jobim para a imprensa e as autoridades.

Não se discute se a homenagem é merecida ou não. Geralmente é. O problema é que além de dar confusão, não pega. Quer ver, entre num táxi aqui no Rio, num domingo de tarde e diga ao motorista: “Vamos para o Estádio Mário Filho”. Ele vai dar um ligeiro branco e se sentir na obrigação de perguntar: “O sr. quer ir pro Macaranã, não é isso?” Chegando ao Recife, não adianta perguntar pelo Cais Martin Luther King: na boca do povo, continua a ser o Cais do Apolo, e fim de papo. Ninguém tem nada contra o homenageado, longe disso. Mas eu acharia muito estranho se alguém de repente mudasse o nome da Praia de Copacabana para, por exemplo, Praia Rubem Braga. Nem a praia nem Rubem merecem isso.

A polêmica atual no Rio é a mudança do nome “Circo Voador” para “Circo John Lennon”. Quem me conhece sabe que John foi meu amigo de infância, portanto nada tenho contra homenagens prestadas a ele. Mas trocar o nome do Circo Voador é como trocar o nome do Maracanã. Mário Filho foi um batalhador pela construção do estádio, além de ter sido um dos melhores cronistas esportivos que este país já teve (meu pai o achava superior ao irmão Nelson Rodrigues). Ninguém tem nada contra os homenageados, mas contra a substituição de um nome original e criativo como “Maracanã” ou “Circo Voador” pelo nome de quem quer que seja.

Além do mais, a boca do povo é impiedosa. Quando se dá o nome de alguém a uma instituição o mais provável é ele virar substantivo comum. “Pinel” era nome de médico, virou nome de hospital, e acabou como sinônimo de doido: “Fulano está pinel”. Na medicina há o duvidoso costume de dar às doenças o nome de quem as pesquisou mais a fundo: doença de Chagas, mal de Parkinson... Acho um conceito meio esquisito de homenagem. Eu não gostaria de ver, num quarto de hospital, uma pessoa deitada na cama e uma enfermeira cochichando para a outra: “É um caso grave de Braulio Tavares”. Eu, hein.