quarta-feira, 27 de janeiro de 2010
1578) Tipografia cinemática (3.4.2008)
Quem se interessa pelas intersecções entre Arte e Tecnologia, ou entre Literatura e Cultura Digital, não pode deixar de dedicar algumas horas à apreciação daquilo que o pessoal chama de Tipografia Cinemática. É uma espécie de cinema de animação, só que utilizando textos em vez de imagens. Somos acostumados a ver o texto, na tela, apenas em forma de legendas que traduzem os diálogos de filmes estrangeiros. Mas há milhões de maneiras de explorar na tela a materialidade das palavras, usando o movimento, os cortes, as fusões, as diferentes tipologias de letras, suas cores, seus tamanhos, e assim por diante. Tudo isto, é claro, pode vir também acompanhado pelo som.
Neste saite, “Grandes Cenas da TV e do Cinema Contadas Apenas Através da Tipografia e do Som”, de David Chen, há uma boa introdução a esta nova arte, com ótimos exemplos em forma de pequenos vídeos do YouTube. Há um vídeo inicial descrevendo os princípios básicos da coisa, e em seguidas clips extraídos de filmes como Pulp Fiction, Full metal jacket, O advogado do diabo, Kill Bill, O grande Lebowski, e vários outros. Sugiro que o leitor veja primeiros aqueles dos filmes que já conhece, porque ter uma referência prévia sobre a cena ajuda bastante. O link é: http://www.alwayswatching.org/features/great-scenes-television-and-film-told-using-only-typography.
O que fazem esses artistas? Eles pegam as frases originais dos diálogos e as sincronizam com a voz dos atores. O texto aparece em sincronia total, mas aproveitando todos os recursos da animação. As frases entram na tela como uma fita ondulante, ou como uma chuva de letras que se entrelaçam, ou de uma em uma como se fosse carimbadas pelos berros da voz. Amontoam-se tiritando num cantinho da imagem, ou violentam sua moldura com letras garrafais. Palavras esbarram umas nas outras e se despedaçam. Vozes ameaçadoras vêm salpicadas de borrões de sangue; vozes tímidas produzem linhas miúdas, fora de centro, mas alinhadas e bem comportadinhas.
O material mostrado nessa página (e nas muitas outras para as quais aparecem links) tem uma riqueza tal que podemos dizer mesmo que estamos diante de uma nova forma de arte, ou, pelo menos, de uma nova forma de tratar o texto, de enriquecê-lo. Por favor não pensem que eu estou entrando naquela velha onda de “a literatura morreu, apareceu uma coisa nova”. Formas novas não aparecem para aposentar as formas velhas. Estas, quando se aposentam, é por incompetência própria, e não creio que seja o caso com a palavra escrita e impressa. Acontece que a tipografia cinemática nos dá a possibilidade de usar – para dar só um exemplo – a Poesia, fazendo de um poema um clip audio-visual de poucos minutos onde se conjugam a voz de um ator, recursos tipográficos, o cinema de animação, a cor, o som, o movimento, tudo isso para potencializar, comentar, enriquecer o que jaz no texto. As possibilidades, como sempre, são infinitas.
1577) O ponto-e-vírgula (2.4.2008)
(Neil Neches no metrô)
Seguindo uma pista fornecida por Jovany Medeiros, fiquei sabendo que usuários do metrô de Nova York depararam-se recentemente com um cartaz colocado pela administração, pedindo-lhes para jogarem no lixo os jornais já lidos, em vez de deixá-los sobre o banco. A mensagem dizia: “Please put it in a trash can; that’s good news for everyone” (“Por favor ponha o jornal no lixo; é uma boa notícia para todo mundo”). O fato saiu na imprensa, não porque a mensagem fosse politicamente correta, mas por ser gramaticalmente sofisticada. O uso do ponto-e-vírgula numa mensagem publicitária é coisa rara. Este sinal de pontuação parece ser uma sofisticação em vias de desaparecimento. Extinguir-se-á em mais alguns anos, como as abotoaduras de punho, o relógio analógico ou a mesóclise.
De passagem, observo uma sutileza, e me corrijam se estou errado: em inglês parece não ser uso a vírgula depois do “please”, ao passo que em português dificilmente pedimos “por favor” por escrito sem usá-la. A imprensa americana discutiu à larga esse ponto-e-vírgula colocado (diz-se) por Neil Neches, o responsável pelas mensagens do metrô. Acho esta uma discussão das mais saudáveis. O acesso das massas semiletradas à imprensa (principalmente a TV, onde o letramento não é pré-requisito absoluto) tem como efeito positivo uma descontração maior, uma coloquialidade saudável, o registro vívido e vital de uma língua em perpétuo processo de reinvenção. Como efeito negativo tem a perda de sutilezas adquiridas. Ponto, vírgula, ponto-e-vírgula, dois-pontos, travessão... Tudo isto pertence (penso eu) menos ao universo da gramática do que ao universo da música. São notações musicais. Determinam pausas ou quebras de ritmo; indicam inflexões; prescrevem funções sintáticas. São uma partiturazinha quase invisível que corre ao longo do texto, indicando a infalível melodia das perguntas, o lento fade-out das reticências, o breque brusco da exclamação.
O ponto-e-vírgula tem suas funções descritas em mais de um manual, e não irei redescrevê-las agora. Basta-me citar exemplos saborosos como o de Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala (cap. IV): “Porque nada mais anticientífico que falar-se da inferioridade do negro africano em relação ao ameríndio sem discriminar-se antes que ameríndio; sem distinguir-se que negro. Se o tapuia; se o banto; se o hotentote.”
Lembro de passagem que o livro do mestre Freyre é um dos primeiros, e um dos raros em nossa bibliografia, a usar um ampersand (&) em pleno título. Assim como Grande Sertão: Veredas é talvez o nosso primeiro romance a trazer no título um dois-pontos, este sinal hoje tão açambarcado pelo formato dos títulos de “papers” universitários (“Veredas da Linguagem: A Pontuação na Obra de Guimarães Rosa”). Kurt Vonnegut dizia que Hemingway, ao se matar, colocou um ponto final em sua vida, mas que a velhice é uma espécie de ponto-e-vírgula; sempre existe a possibilidade de uma surpresa a mais.
1576) Blog “Mundo Fantasmo” (1.4.2008)
Meus treze leitores reclamam de vez em quando que estes meus artigos são impossíveis de consultar, a menos que o cidadão se disponha a recortá-los diariamente com tesoura e guardá-los numa pasta. Coisa que nem mesmo eu consigo fazer. Tenho tudo no computador, numerado, datado, direitinho. Quando preciso encontrar alguma coisa, abro o Arquivo Geral e dou um comando de busca; em geral não me custa mais do que cinco minutos para achar um artigo específico.
Já me cobraram a publicação destes textos em livro, mas não sei se seria uma boa idéia. Quem compraria, fora aqueles treze apóstolos? Adquiri há pouco pela Internet o volume dos Essays and Reviews de Edgar Allan Poe, reunindo toda sua produção eventual na imprensa. É uma quantidade assombrosa de texto. São 1.544 páginas, escritas com pena e tinteiro à luz de lamparinas, por um cara que, além disso, produziu quase o mesmo tanto de laudas com contos e poemas que estão entre os melhores do mundo, e morreu aos 40 anos. Como levo uma vida bem mais cômoda do que a de Edgar, já estou com cerca de 1.570 artigos aqui no JPB. Poe acha (e merece) quem compre o calhamaço dele, mas eu não preciso correr o mesmo risco.
Vai daí, aproveitando as facilidades da cultura digital, comunico aos meus treze leitores diários, bem como aos eventuais, que dei início à publicação digital de todos estes artigos no JPB. Publicar não significa apenas imprimir num livro, mas tornar público e acessível a qualquer interessado. Caso o leitor seja um deles, recomendo-lhe dirigir seu Explorer ou equivalente para este endereço: http://mundofantasmo.blogspot.com/.
Não tem tudo, ainda, porque isso dá trabalho e eu não posso pagar alguém para fazê-lo. Sou o meu próprio secretário, meu próprio office-boy, meu próprio telefonista. Até esta semana, postei mais de 300 artigos que cobrem desde o meu dia de estréia aqui no jornal (23 de março de 2003) até abril de 2004. A grande vantagem do Blog é a possibilidade de pesquisar por um assunto específico. No fim de cada artigo coloco os marcadores que me parecem mais apropriados, sobre os temas que o artigo aborda ou cita de passagem. Este artigo aqui, por exemplo, provavelmente terá como marcadores “jornalismo”, “cultura digital”, “Paraíba”, “Edgar Allan Poe”.
Além disso, o leitor tem um espaço de busca (junto ao botão “Pesquisar blog”) onde ele pode pedir um tema específico (“ficção científica”, “forró”, etc.), um nome próprio (“Borges”, “Dylan”, etc.), ou palavras aleatórias. Com isto espero ir aos poucos atendendo aqueles leitores que me mandam email pedindo um artigo saído há anos sobre um tema qualquer. Por outro lado, o título de cada coluna traz a data original de publicação, portanto quem quiser citá-lo em artigos acadêmicos já tem a data de mão beijada. Fiquem à vontade para visitar meu blog, que irei abastecendo aos poucos durante este ano. Divulguem! E mais uma vez agradeço a leitura e a atenção de todos.
1575) Neil Aspinall (30.3.2008)
(Neil Aspinall substituindo George)
Houve um tempo em minha vida em que se alguém me perguntasse: “Se você pudesse ser outra pessoa, quem gostaria de ter sido?” eu responderia: “Neil Aspinall”. Minha resposta produziria no rosto do perguntante uma expressão vácua, e um olhar de computador travado – o que era, de certo modo, minha intenção. Aspinall (falecido esta semana, aos 65 anos) foi talvez a pessoa mais próxima dos Beatles durante toda a existência do grupo. Mais do que o empresário Brian Epstein, mais do que o produtor musical e arranjador George Martin, mais do que qualquer outro indivíduo.
Nascido em Liverpool, ele estudou no mesmo colégio com John, Paul e George, mas aproximou-se deles através de Pete Best, o baterista que depois foi descartado em proveito de Ringo Starr, e que era seu amigo do peito. Hunter Davies, o biógrafo oficial dos Beatles, sugere inclusive que Neil teve um caso com a mãe de Pete, Mona Best, dona do Casbah Club e da pensão onde Neil morava. Quando a banda começou a fazer shows profissionais Neil (que os rapazes chamavam “Nell”) tornou-se motorista e “roadie” oficial, dirigindo a van que os levava e carregando os amplificadores. Quando Pete Best foi dispensado, Neil ficou furioso e quis se demitir, em solidariedade ao amigo, mas Pete o dissuadiu: “Não faça essa besteira, esses caras vão longe”. Foram – e Neil com eles.
Trazia comidas, providenciava garotas, falsificava autógrafos nas fotos da banda, passava os ternos, resolvia todos os pepinos de última hora. Os Beatles decolaram para o estrelato mundial, e Neil do lado, alugando jatinhos, administrando excursões, apaziguando brigas. Foi ele quem descobriu e comprou (por meio milhão de libras) a casa de 3 Savile Row, onde a Apple Records se instalou. Como ex-estudante de contabilidade, tornou-se gerente de produção da gravadora. Trabalhou na produção do filme Let it Be e na organização da Beatles Anthology lançada em 1995. Juntamente com o outro pau-pra-toda-obra Mal Evans (falecido em 1976), era uma das pessoas em quem os Beatles tinham total confiança, uma confiança que nunca foi traída. Neil, aliás, sempre recusou propostas de editoras interessadas em publicar suas memórias.
Na reta final da separação dos Beatles, quando o empresário Allen Klein assumiu os negócios do grupo no auge da crise da Apple, Neil confessava ter sonhos estranhos. Sonhava que estava fugindo de um perseguidor desconhecido, correndo pelas ruas com os braços cheios de preciosos peixes feitos de prata. Quanto mais corria, mais os perseguidores se aproximavam; e quando mais tentava segurar os peixes, mais eles deslizavam e escapuliam dos seus braços. O saite do The Telegraph mostra (http://www.telegraph.co.uk/news/main.jhtml?xml=/news/2008/03/24/db2405.xml) uma rara foto de Neil substituindo George Harrison à guitarra durante um ensaio dos Beatles para o Ed Sullivan Show: aquele sujeito louro, magrinho, tocando no meio dos outros três. Pense num cara que realizou um sonho!
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