A religião diz que a alma é uma essência capaz de se anexar
a um corpo material e manifestar-se através dele. Isto pode não ser verdade no
campo metafísico, mas é mais ou menos o que acontece no campo literário, em
níveis sucessivos de complexidade. Veja-se por exemplo o caso de uma obra
literária. Ela consiste em um texto, que é a alma, e que pode se traduzir nos
“corpos” mais diferentes: um livrinho de bolso, uma edição de luxo, um arquivo
PDF guardado num pendraive, um arquivo “.doc” gravado num CD, um folheto de
cordel, um disco de vinil com o texto lido em voz alta. Cada uma destas instâncias físicas é
radicalmente diferente das outras, mas todas são capazes de reproduzir, por
meios distintos, o objeto linguístico a que chamamos de texto literário (e que
pode ser um poema, um conto, um romance, etc.).
Isso não se deve à arte literária em si, e si a algo muito
mais básico, a própria estrutura da linguagem. A linguagem consiste em alma e
corpo, ou seja, espírito e matéria, ou seja, idéia e palavra. Nós usamos a palavra “livro”, os ingleses
“book”, os franceses “livre”, e assim por diante; e todos esses conjuntos de
fonemas falados ou de sinais escritos remetem à mesma idéia abstrata. É
incrível que esses sinais consigam evocar em cada pessoa uma idéia equivalente.
Acho que só ocorre porque há poucas coisas que a gente pratique tanto quanto a
linguagem. Mas... todos concordamos sobre o significado de livro, mesa, garfo,
TV, parede; mas quando começamos a discutir palavras mais abstratas
(democracia, liberdade, amor, etc.) é que vemos o quanto esses termos são meras
convenções, e como às vezes usamos a mesma palavra mas estamos pensando em
coisas muito diferentes.
Dias atrás escrevi aqui sobre a permanência da enunciação
poética num verso escrito por Drummond, por exemplo. Dias depois, no tablóide
literário curitibano Cândido, vi um poema de Alexei Bueno também dedicado ao
poeta de Boitempo, onde ele diz: “Mas não, quanta mentira... O que houve um
dia / nada o pode anular, nada esvazia / a fôrma do poema, quando o poeta /
deixa-a, médium de si, clara e repleta”.