quinta-feira, 25 de julho de 2019

4487) "Novas Cartas dos Sertões do Seridó" (25.7.2019)



Estou emergindo agora da leitura de Novas Cartas dos Sertões do Seridó, de Paulo Bezerra “Balá” (edição do autor, Natal, 2009), que me foi presenteado por Jessier Quirino, um entusiasta da obra do autor: “Imagine Elomar escrevendo memórias”, disse ele.

Paulo Bezerra era de Acari, na rica região do Seridó, que o Rio Grande do Norte espertamente subtraiu à Paraíba no século 19. Médico e fazendeiro, membro da Academia Norte-Rio-grandense de Letras, ele escreveu ao longo de anos essas cartas publicadas na imprensa de Natal, descrevendo, com olho de memorialista e com precisão de etnógrafo, aquilo que a gente chama “os usos e os costumes” de sua região.

Gosto de ler memórias literárias, não necessariamente aqueles livros onde um sujeito faz sua auto-biografia, mas os livros escritos por quem viveu numa época e num lugar bem específicos, e sente a necessidade de contar o que viu e viveu, porque é importante. A regras de comportamento, os modos de plantio e colheita, as histórias passadas de velho para moço, os pequenos usos da vida diária.

Em 1958 que foi ano de seca malina, um meu irmão abriu o polegar esquerdo com uma cutilada. O sangue corria franco e não havia uma meizinha para estancar a sangria como o pó do café, o esterco do jumento, o leite do pinhão, a rapa da favela ou do carnal do couro curtido. Então um companheiro de trabalho – que ali todos eram iguais – disse assombrado, no vexame: “Seu Gonzaga, só tem um jeito: é cabelo” e o outro foi logo lhe cortando a trunfa com a faca afiada e envolvendo o ferimento. Foi santo remédio. (p. 90)

Paulo Balá descreve com segurança as menores coisas da vida prática, e sempre no estilo severo e preciso do sertanejo. Por exemplo, eu sei o que é um chocalho, toda vida soube. Mas redescobri o objeto na descrição dele:

O chocalho é uma espécie de sino feito com folhas de ferro e depois banhadas com latão e bronze ou bronze e cobre, para ser pendurado no pescoço dos animais, por uma tira de sola curtida, com uma extremidade dobrada – a cabeça – e a outra ponta afiada para correr na fenda da cabeça, dando-se um nó – nó especial de marra -, graduando segundo a grossura do pescoço, invenção que veio de longe, das bandas de lá. Também a marra pode ter uma só largura e ser atacada com fivela. (...) Costuma-se pôr chocalho em reses mansas que apascentam as outras em torno de si. Rês arisca, velhaca e braba bota o rebanho a perder, pois, ao correr, corre tudo. (p. 174)

“Estilo literário” não é floreio, não é enfeite: é o uso da linguagem para construir idéias, evocar imagens, fazer emergir emoções. Paulo Balá escreve com a clareza de quem ergue uma parede de casa de fazenda.

Curiosamente, uma obra que me veio à memória durante a leitura do livro dele foi Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas, de Robert M. Pirsig, onde o autor explica que se você for capaz de cuidar de uma moto deve ser capaz de escrever, e vice-versa.

Essa cultura, esse estilo sertanejo é adquirido talvez a duras penas (ele se queixa da escassez de livros em casa, na sua meninice), mas com critério e determinação.

No livro de Phelippe e Teophilo Guerra – “Seccas Contra a Secca” – tomado por empréstimo por meu pai (1891-1959) e que mandou copiá-lo de forma manuscrita, a bico de pena, tinta de tinteiro e mata-borrão, cópia feita por Noêmia Emília de Lucena e terminada a 7 de janeiro de 1954, cobrindo 792 páginas de caderno pautado, estavam as informações daquele ano.  (p. 29)

Nas memórias de Paulo Balá não se vê, felizmente, aquela nostalgia sentimentalista que tantas vezes acomete os memorialistas nordestinos, sempre prontos a afirmar que tiveram a mais feliz infância, a mais harmoniosa família, a mais rica fazenda...

A emoção corre por baixo do texto, nas entrelinhas. Como nesta carta que ele transcreve, escrita na velhice por Josefa Cunha de Medeiros (1926-1990), contando como foi seu casamento e sua mudança para a Fazenda Pinturas:

Casei no dia 25-02-48. Chegamos nas Pinturas a cavalo, às 5 horas da tarde., acompanhados por José Pipiu, Gilvan de Gil e Clidenor e às 6 horas chegaram 22 vaqueiros. Depois do jantar, e de mulher só havia eu, Zezé leu uma despedida em nome dos vaqueiros e de seu Silvino e Dona Maria. Não conhecendo a casa das Pinturas, fiquei parada com a sua beleza.

Ainda gravados na minha memória os nomes das vacas: Curimã, Atalaia, Ponta Baixa, Bargadinha, Quixaba e Caracol; dos jumentos: Estrela e Mourão; dos burros mulos: Mocinha, Melada, Charuto, Taruga, Moreno e Cutia, que morreu com 38 anos, e dos vaqueiros: Zé de Agostinho, Isaac, Alaor, Edilson e outros tantos que esqueci.  (p. 85)

Por trás de uma recordação tão nítida, tão controlada, pulsa toda uma noveleta de Corpo de Baile.

O autor recorda a chegada gradual da modernidade tecnológica nos sertões:

O rádio – e talvez por aqui tenha sido o primeiro a ser instalado em sítio – foi posto sobre uma banca num dos salões da casa o qual até hoje é chamado de “salão do rádio”, como há o “dos vaqueiros”, onde os vaqueiros dormiam, o “de pedra” por ter o piso de pedras vindo do Sabugi em carro de boi e o “das cadeiras”, lugar de receber eventuais visitas. Da antena, protegida com isoladores de vidro, um de cada lado e esticada entre dois barrotes acima do telhado, descia o pendente. A escuta das estações, todas distantes, dependia da qualidade do tempo, do pipocar das descargas elétricas: os jornais falados com notícias da Segunda Guerra Mundial – batalhas, avanços e recuos – e, em 1939, a transmissão de eventos do Congresso Eucarístico Nacional, realizado no Recife.  (p. 139)

Paulo Balá tem o cuidado de colocar após a menção a cada nome de pessoa seu ano de nascimento e de morte. Cada menção é uma lápide, é a chancela de uma história completa de vida. Gosto desse memorialismo onde o autor não se derrama em minúcias narcisistas a respeito de si próprio – escreve sobre o que o cerca, escreve sobre o que viu, o que testemunhou, e, a depender de como escreva, está ele todinho em cada frase.



(Paulo Bezerra "Balá", 1933-2017)