sexta-feira, 28 de novembro de 2014

3671) As eleições no futuro (29.11.2014)


(foto: Niur)

Segundo Edgar Allan Poe, não existe nada codificado por uma mente humana que outra mente humana não possa descodificar.  Dizer que uma urna eletrônica é à prova de hackers é como dizer que um ônibus espacial é à prova de acidentes.  Mas não há dúvida de que a era vídeo-eletrônico-digital deu ao pessoal das teorias da conspiração um combustível em expansão proporcional à da Internet. Uma dessas manias é achar que tudo que é eletrônico está sendo manipulado, pelo simples fato de poder ser manipulado sem deixar rastros materiais visíveis.

Votação em urnas eletrônicas são uma coisa ainda muito vulnerável, muito rudimentar. Minha suposição é de que um dia em vez de Título Eleitoral, Identidade e CPF teremos uma combinação de chipes subcutâneos (turbinados com o auxílio de drogas injetáveis periódicas) que captarão todas as nossas reações a tudo que estivermos recebendo em bio-wifi: noticiário ou futebol, canais de música online, de notícia, de opinião... Será através dessa interface permanente que nos comunicaremos, recitando SMSs em voz baixa, fazendo transferências bancárias, criptofirmando documentos, autografando o reconhecedor-vocal de algum fã. 

Isto (vejam a sutileza!) irá compondo aos poucos nossos votos. Quando estivermos todos assim, não precisaremos mais votar.  Os candidatos disputarão o eleitorado apresentando um cartel de propostas, recursos, e assinalando (num mutirão de uma semana com sua equipe) suas respectivas opções em, sei lá, 1.423 itens fornecidos pela Gerência Eleitoral.  Os itens refletem todas as variáveis de comportamento da população que estão sendo captados via os mencionados chips, etc.  A soma de todas as nossas reações emocionais e instintivas ao longo do dia vai sendo computada (temos com isso um substancial desconto de Imposto de Renda) e constitui o nosso voto. 

Estaremos registrando o tempo todo nossas reações emocionais diante de leis, obras, decretos, pronunciamentos públicos.  Na verdade, estaremos votando 24 horas por dia, cumulativamente, sete dias por semana, e nos apresentaremos à Justiça Eleitoral para que seja emitido o código de barras relativo a nossa história política.  De posse dele, iremos apresentá-lo em nossa seção e zona, um código de barras onde estarão registradas todas as nossas simpatias, antipatias, concordâncias, discordâncias.  E na hora do voto, essa soma total de opiniões contraditórias (que nem de longe é consciente) será instantaneamente computada, resultando num voto válido. E, como os sertanejos dos velhos currais eleitorais nordestinos, estaremos votando sem nem sequer saber em quem.




3670) Tradução e anacronismo (28.11.2014)


(Ilustração: Vita Wells)

“A folhas tantas do Wilhelm Meister, descreve Goethe um piquenique e assim conclui: ‘Seria tudo muito mais romântico se não houvesse ao fundo uma carruagem’.  E como, para nós, não há nada mais romântico do que uma carruagem – que vontade de substituí-la, dizendo que ficaria muito mais romântico se não houvesse ali um automóvel! A ‘tradução’ na verdade seria um anacronismo, mas que fielmente traduziria a intenção e o sentimento do autor”.

A citação é de Mario Quintana, em seu livro Da Preguiça Como Método de Trabalho (1987). Quintana era tradutor, sim; trabalhou para a Editora Globo de Porto Alegre, que por muitos anos foi uma das melhores, senão a melhor editora do Brasil.  O poeta traduziu Virginia Woolf, Joseph Conrad, Balzac, Proust, Aldous Huxley, Guy de Maupassant... 

Se bem que da longa lista de suas traduções que acabo de consultar (na Poesia Completa da Aguilar) lembro ter lido apenas os Romances e Contos de Voltaire (1951) e O Tio Prodigioso (The Fabulous Clipjoint) de Fredric Brown (1951).

No exemplo de Quintana, o autor indica, e o tradutor percebe, que o efeito pretendido é de estranhamento, mas a passagem do tempo dilui esse efeito porque confere a todos os elementos da cena (o piquenique, a carruagem) uma aura uniforme de romantismo.  A carruagem, que seria tão prosaica na época quanto o automóvel é hoje, perde esse poder de contraste. A intuição de Quintana é precisa, e a sua queixa é compreensível: para reproduzir o efeito pretendido pelo autor seria preciso recorrer talvez a um anacronismo, mas a liberdade de um tradutor (pelo menos numa obra com esse perfil) não deve ir tão longe.

É uma situação meio sem saída, porque se no original diz carruagem, é preciso dizer carruagem na tradução.  Uns leitores perceberão o efeito, e o próprio texto insiste nele; outros terão algum direito de estranhá-lo ou de mal percebê-lo.  

Já vi casos meio extremos em que o tradutor, ansioso para salvar cada migalha, pespega um asterisco e um comentário ao pé da página.  Pra mim, isso só se justifica em edições especiais, comentadas, anotadas, de obras de importância histórica.  Poderia até ser o caso do Wilhelm Meister hoje; mas num romance contemporâneo ou de menor prestígio (aqueles casos em que a história é mais importante do que a fama do autor), para que quebrar o fluxo da leitura a toda hora? Para que “dar pausa no DVD” e explicar esse nível de detalhe?  

Quem está entrando num livro pela primeira vez tem mais interesse (acho) em preservar a fluidez espontânea da história, o percurso sem muitas interrupções (mesmo informativas), deixar as anotações apenas para detalhes realmente indispensáveis.