domingo, 2 de janeiro de 2011
2443) "Drummond: Esperteza" (2.1.2011)
Já falei nesta coluna (“Drummond: Poemas Natalinos”) sobre o “olho esperto” que o Modernismo jogou dentro da poesia brasileira. O termo é bem atual, bem 2010. É um olho rock-and-roll, um olho hip-hop, um olho típico de uma geração jovem e escolada, se bem que não na escola. É um olho “street-wise”, com a sabedoria das ruas; um olho malandro. Um jeito desabusado de ser, irreverente, levemente desonesto, ou pelo menos capaz de pequenas contravenções e de mentiras táticas. Não necessariamente um olho mau-caráter. Chega a sê-lo em alguns casos, e o uso insistente deste adjetivo na cultura urbana carioca o deixou contaminado de mau-caratismo aos olhos de muita gente. Quando em algum lugar do Brasil se quer menosprezar com acidez a desonestidade de alguém, é ao sotaque carioca que se recorre como exemplo: “Fulano é muito metido a ichpiérto...”
A esperteza é uma forma de inteligência em pequena escala e com objetivos imediatos, a curtíssimo prazo. Beira a desonestidade porque não está vinculada a valores eternos ou princípios morais, e sim à simples e imediata esgrima de vontades e de inteligências. Fulano quer isto, Sicrano quer aquilo, e o mais esperto é o que consegue o que quer, em detrimento do outro. A esperteza sempre se dá num contexto de disputa, de competição, de jogo, de confronto entre A e B. Sabedoria é outro papo.
No livro Alguma Poesia (que completou 80 anos), Carlos Drummond já vê de modo presciente a instauração deste valor no embate amoroso. O romantismo literário não prevê esperteza; prevê valores absolutos como a paixão, a devoção, o ciúme, a solidão, etc. Esperteza? Invenção modernista. Como a do poema “Esperteza” de Drummond, que diz: “Tenho vontade de / — ponhamos amar / por esporte uma loura / o espaço de um dia.” Vejam mesmo que heresia; no século 19 este poema iria para fogueira, por reduzir o amor a um esporte, e pressupor que esse amor de veneta duraria um dia apenas.
Depois continua: “Certo me tornaria / brinquedo nas suas mãos. / Apanharia, sorriria / mas acabado o jogo / não seria mais joguete, / seria eu mesmo.” Jogo, brinquedo: o poeta considera a possibilidade de ver o amor como algo leve, sem compromisso. Algo fugaz e sem sequelas. Um amor que não traria grande abalos para a vida do amante, nem durante nem depois. Serviria no máximo para o propósito egoísta de deixá-lo mais senhor de si, de suas próprias forças. Um amor século 20. Um amor de cinema americano. (A “loura” sonhada dessa forma está mais para Jean Harlow do que para as ninfas pré-rafaelitas). E o poeta conclui: “E ela ficaria espantada / de ver um homem esperto”.
Será impressão minha, ou este poema de 1930 é um esboço do argumento de Acossado de Godard, além de tantos outros filmes em que um homem esperto pega uma loura, extrai dela o que lhe interessa (prazer, lazer, dinheiro) e depois se vai, assobiando uma canção pop? Se o século 20 foi o Século da Esperteza, Drummond o percebeu desde cedo.
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