Nos anos 1960, um escritor misterioso chamado James
Tiptree Jr. surgiu na ficção científica norte-americana, com uma série de
contos inovadores, numa linguagem energética, calejada, cínica, que não recuava
diante da violência. Demonstrava ter conhecimento direto dos bastidores do
poder, da vida militar, do uso de armas e de tecnologias variadas. E, tendo uma
escrita “máscula” e assertiva, demonstrava ao mesmo tempo um conhecimento
surpreendente da psicologia feminina, e suas personagens mulheres geralmente eram
protagonistas, tomando nas mãos as rédeas da narrativa.
Tiptree não dava entrevistas, não telefonava, não comparecia
às convenções de FC, não enviava fotos, fornecia escassos dados pessoais de si
próprio, e comunicava-se apenas através de uma caixa postal no Estado da
Virginia. Por outro lado, era um correspondente vibrante e dedicado, mandando
cartas de dez ou quinze páginas para escritores e editores que sequer conhecia
pessoalmente. Era um missivista compulsivo e envolvente, tal como Raymond
Chandler ou H. P. Lovecraft.
Seu nome começou a chamar a atenção por volta de 1968,
ano em que saíram contos seus em revistas como Analog, Galaxy, Fantastic e If. Sua produção manteve-se constante a partir daí, e sua primeira
coletânea de contos, Ten Thousand Light
Years From Home saiu em 1973. Seguiram-se várias premiações importantes: o
prêmio Hugo (1974, 1977), o Nebula (1973, 1976, 1977), o Jupiter (1977) e
outros.
Havia um certo consenso, na comunidade de FC, de que a
discrição de James Tiptree era por ser ele um agente ou ex-agente da CIA (seus
relatos pessoais indicavam isto) e precisava manter um low profile quando se envolvia em atividades profanas como a
literatura popular. Havia consenso, também, de que se tratava de um homem, não
apenas pelo nome. Robert Silverberg, um autor nem um pouco bobo, chegou a
escrever, em 1975:
Alguém sugeriu que “Tiptree” pode ser uma mulher, uma teoria que
considero absurda, porque para mim existe algo de inelutavelmente masculino em
sua escrita.
Depois, Silverberg confessou, numa carta pessoal: “Você
não me enganou. Fui eu que enganei a mim mesmo.”
Sua identidade foi revelada em 1976. Tiptree mencionou
casualmente que sua mãe havia morrido em Chicago. Seu correspondente Jeff Smith
vasculhou os obituários, e conferiu os relatos de infância e juventude de
“James Tiptree Jr.” com os textos sobre Mary Hastings Bradley, falecida aos 94
anos, escritora com vários livros sobre seus safaris na África ao lado do
marido e da filhinha pequena. Jeff Smith escreveu ao seu amigo Tiptree:
Meu caro Tip: OK, vou botar minhas cartas na mesa. Não se sinta
obrigado a fazer o mesmo. Isto já deve ter chegado aos seus ouvidos, mas o fato
é que está se espalhando um boato de que seu nome é Alice Sheldon.
Alice Bradley Sheldon admitiu a verdade; continuou usando
o pseudônimo masculino para assinar seus livros, manteve a privacidade (recebia
pouquíssimas pessoas). E sua vida anterior começou a ser mais conhecida.
Mary Hastings e seu marido Herbert Bradley (os pais de
Alice) eram ricos, colecionavam objetos de arte, e eram fascinados pela África.
Alice nasceu em 1915, e aos seis anos já acompanhava os pais em safaris, numa
caravana com mais de 200 carregadores. Foram eles os primeiros brancos a
alcançar as margens do Lago Kivu, entre Ruanda e o Congo, e fizeram as
primeiras filmagens de gorilas em seu habitat.
A garota alternava momentos de pânico e de onipotência.
Se eu largasse alguma coisa no chão, já estava habituada a apenas bater
palmas, e seis enormes canibais nus se precipitavam para recolher o objeto e me
entregar de volta.
(Alice Sheldon na África, aos 6 anos)
De volta a Chicago, Alice leu furiosamente durante a
adolescência e início da vida adulta: Rudyard Kipling, Spinosa, William James,
W. B. Yeats, Proust, Freud, Ibsen, Dostoievsky – e carradas de pulp magazines de ficção científica, que
ela doou a uma biblioteca quando entrou para o Exército (WAAC, Women's Army
Auxiliary Corps) em 1942, aos vinte e sete anos.
É grande a tentação de resumir aqui a vida de Alice, que
casou com um militar (Huntington Sheldon, “Ting”), entrou com ele para a CIA em
1952, saiu de lá em 1955 e voltou para a vida universitária, onde se doutorou
em Psicologia Experimental (1967).
A biografia de Julie Philips, James Tiptree Jr. – The Double Life of Alice B. Sheldon (St.
Martin’s Press, 2006) é uma das melhores que já foram escritas sobre um autor
de ficção científica.
Ela revela a rivalidade entre Alice e a mãe (uma
“escritora de verdade”, autora de livros sérios, elogiados pelos críticos), sua
paixão pelo xadrez (consta que seu marido, Ting, apaixonou-se por ela ao ser
derrotado num jogo de xadrez onde Alice estava com os olhos vendados), seu
projeto de montar uma granja de aves (que só lhe deu prejuízo), sua mania de
escrever aos autores que admirava (Ítalo Calvino lhe respondeu: “Uma carta como a sua é o melhor presente
que um carteiro pode deixar na minha caixa. É para o leitor desconhecido que
todo autor escreve, mas são raras as chances de encontrá-lo, mesmo por
correspondência, e de descobrir que ele é uma pessoa tão bacana e tão
espirituosa”).
Tal como Philip K. Dick (com quem também trocou cartas),
Alice era viciada em drogas permitidas, drogas de farmácia. Julie Philips relata
(Cap. 36) que num período de duas semanas em maio de 1976 ela registrou em seu
diário o uso de Seconal, fenobarbital, Dexedrine, Compazine, codeína, Percodan,
Valium, Demerol e Numorphan. O desgaste da idade se abateu sobre ela e mais
ainda sobre Ting, que era doze anos mais velho, e cuja condição de saúde se
agravou aceleradamente. Ela falava aos amigos mais próximos sobre um “pacto de
suicídio”.
Em 1987, ela matou o marido e se suicidou em seguida, não
sem antes avisar o advogado da família. Os dois foram encontrados na cama, lado
a lado, de mãos dadas.
Alguns contos de James Tiptree Jr. já saíram no Brasil,
na saudosa Isaac Asimov Magazine (Ed.
Record), editada por Ronaldo di Biasi.
Agora, a Ímã Editorial, na sua coleção “Meia Azul”, lança
o volume Mulheres Que os Homens Não Veem.
O volume traz um prefácio da escritora e blogueira Lady Sybylla, a transcrição
de trechos de cartas de Alice, e três contos dentre os melhores dela,
traduzidos por mim: “Mulheres Que os Homens Não Veem” (“The Women Men Don’t
See”, 1973), “Garota Plugada” (“The Girl Who Was Plugged In”, 1973) e “As
Mulheres Que Morrem Como Moscas” (“The Screwfly Solution”, 1977, publicado sob
o pseudônimo de Raccoona Sheldon).
James Tiptree Jr. é um desses casos de pseudônimo que
acabou se tornando, como os heterônimos de Fernando Pessoa, um personagem em
si, um “Eu dramatúrgico” que brota no momento da escrita e serve ao autor como
uma personalidade postiça, capaz de mobilizar toda a sua energia criativa, e de
acessar redutos emotivos que normalmente ficam vedados no dia a dia.
A “máscara masculina” serviu a Alice Sheldon para a
criação de uma persona biograficamente verdadeira mas com um espírito inventado.
Depois que sua identidade se tornou pública, Alice explicou às pessoas com quem
se correspondia (principalmente Ursula LeGuin e Joanna Russ) que tudo que
dissera de si mesma era verdade, menos o fato de ser homem. E depois que o
segredo vazou, ela confessou ser incapaz de “psicografar” novamente a voz de
James Tiptree Jr. Foi como se ele
tivesse desaparecido, e tudo que ela publicou a partir dali custou-lhe muito
mais esforço e teve menos impacto.
Ainda assim, o “menos impacto” de Sheldon/Tiptree está
muitos pontos acima da maioria da FC norte-americana, onde a maioria dos
autores não tem, nem de longe, a experiência de vida que ela teve, quando
começou a publicar FC aos 50 anos. Neurótica, empoderada, desafiadora,
sofisticada, ela dizia que um pseudônimo masculino a poupava de ser chamada
pela enésima vez de “a primeira mulher
a...”.
Experiência múltipla de vida e cultura literária
produziram essa autora capaz de usar títulos como:
“Her Smoke Rose Up
Forever”
“Your Faces, Oh My
Sisters! Your Faces Filled of Light!”
“The Psychologist Who
Wouldn’t Do Awful Things to Rats”
“Faithful To Thee,
Terra, In Our Fashion”
“The Snows Are Melted,
The Snows Are Gone”
“Love Is The Plan, The
Plan is Death”
Uma autora que declarou, numa carta a um amigo:
Eu sou metade mulher, metade ser humano.