domingo, 21 de abril de 2024

5054) A arte do spoiler (21.4.2024)



 
Um spoiler, quando falamos de filmes, livros, etc., é a revelação de uma informação antes da hora, estragando o prazer do mistério ou do suspense. 
 
A expressão mais próxima em português seria “desmancha-prazeres”, cujo inconveniente é ser mais longa e ter uma latitude maior de significado. Um desmancha-prazeres pode ser, por exemplo, uma pessoa que vai com a gente para uma festa, ou um passeio, e reclama o tempo todo. 
 
Procurei agora (e não achei) na Internet o meu exemplo de spoiler preferido, muitas vezes citado. Um antigo desenho do “Amigo da Onça”, de Péricles, em O Cruzeiro. Ele mostra o sádico personagem saindo de uma sessão de cinema e dizendo, enquanto passa pelos espectadores que entram na sala: “O assassino é o pai da moça... O assassino é o pai da moça...” 



(O "Amigo da Onça", de Péricles)
 

A história de mistério policial deve ser o gênero de narrativo que mais depende (ou que invariavelmente depende) do fato de uma informação crucial precisar ser ocultada ao leitor até o último capítulo, quando Sherlock Holmes ou Hercule Poirot reúne os suspeitos, explica a história toda e aponta o culpado. 
 
Mesmo assim, há inúmeras obras não-detetivescas que dependem de mistérios, dúvidas, incertezas. Histórias onde não sabemos ao certo o que aconteceu. Um fato remoto na infância de alguém. Um episódio de que todo mundo evita falar. A verdadeira identidade de uma pessoa. Às vezes, a própria identidade de quem está contando a história. 
 
No final, vem a revelação, mas o objetivo maior da narrativa não é a resposta em si, mas o longo período de incertezas e dúvidas, que é compartilhado pelo leitor, e que tem sua função dramática. 
 
Revelar o final antes da hora pode estragar a experiência de quem, na leitura, precisa justamente saborear todas as possibilidades, versões e hipóteses, antes de receber a resposta final. É um prazer específico que se extrai de alguns tipos de narrativa. 
 
Mas nem sempre o spoiler estraga o prazer da leitura. Muita gente até gosta. Uma curiosa pesquisa constatou que para muitas pessoas a informação tida como “desmancha-prazeres” as levava a gostar mais das histórias – desde que a revelação fizesse parte do texto, e não fosse uma “dica” dada por alguém, fora do livro. 
 
Aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2016/10/4168-o-suspense-e-o-spoiler-9102016.html



 
No útil websaite LitHub, um texto de Jonathan Russell Clark discute o que ele considera “o spoiler mais famoso de todos os tempos”, o prólogo de Shakespeare para a tragédia Romeu e Julieta. Nesse prólogo, em forma de soneto, a platéia é informada de que “um casal de desafortunados amantes tira a própria vida”. Clark considera que essa revelação, feita no instante mesmo em que as cortinas se abrem, é uma estratégia brilhante do autor. 
 
Primeiro, diz ele, porque nesta peça, mais do que em muitas outras, o final trágico é de cortar o coração, porque poderia tão facilmente ter sido evitado. Se uma desgraça tão catastrófica desabasse inesperadamente para a platéia, ela talvez reagisse mal; mas a peça já se abre dizendo como acaba, o que esvazia um pouco o impacto negativo. 
 
Por outro lado... isto não nos impede de torcer para que o casal fique junto, mesmo sabendo que eles não vão ficar. E quando o desfecho-mau acontece (diz Clark), não nos queixamos do Autor, que foi leal conosco, e sim de nós mesmos, da nossa esperança ingênua. E culpamos a injustiça do mundo – o que é (diz ele) o objetivo de toda a grande literatura. 



(Casino)
 

Existe também o falso spoiler preparado pela narrativa. No filme Casino (1985) de Martin Scorsese, Robert DeNiro faz um gangster que logo na primeira cena entra no carro, liga a ignição e o carro explode em chamas. Em seguida, o filme volta no tempo, em flash-back, para nos mostrar a razão do crime. Lá pelas tantas é que somos informados de que o bandido escapou da explosão. 
 
É um recurso usado tantas vezes que já estamos calejados. Um filme que começa com o protagonista sendo enterrado, fuzilado, enforcado, etc., já entrega de bandeja que aquilo não passa de uma encenação. O “nosso herói” certamente vai ressurgir vivinho da silva daí a pouco, e vai explicar o truque que usou para enganar seus perseguidores. 
 
Isto vale, contudo, para filmes mais leves, filmes de aventura, de entretenimento. Num filme de pretensões mais realistas, um fato crucial mostrado perto do início dificilmente será desmentido depois. 
 
O spoiler será, sempre, um desmancha-prazeres? Não necessariamente. Podemos ler várias vezes um livro onde há algum tipo de mistério esclarecido no final, alguma surpresa que nos pegou desprevenidos apenas na primeira vez, alguma reviravolta da narrativa que nos espantou mas não irá nos espantar na repetição da leitura. Por que? 
 
Para Clark, um spoiler sempre se refere a “o que acontece”, mas as grandes histórias dizem respeito ao “como acontece” e ao “por que acontece”.  E estes aspectos podem ser trabalhados pelo autor com tal riqueza de elementos que a releitura sempre trará novidades. Diz ele: 
 
“A alquimia das melhores histórias está em sua consistência: uma conexão de elementos mínimos, infinitesimalmente trançados entre si e com o amálgama que os une; está nas idas e vindas entre o que está acontecendo de fato, os motivos por que está acontecendo, e as razões que tornam tudo isto importante.” 


 
É por isto que mesmo os mistérios detetivescos cujo desfecho eu já conheço podem ser lidos sem susto. Já sei quem matou as vítimas em histórias como O Mistério da Laranja Chinesa de Ellery Queen, ou Madball de Fredric Brown, ou The Three Coffins de John Dickson Carr, ou O Assassinato de Roger Ackroyd de Agatha Christie. E daí? 
 
Essa revelação específica deixou de ser importante. No trajeto até ela, contudo, há uma série de pequenas revelações, pequenas conotações, detalhes secundários mas relevantes, que me motivam a ler de novo; e há o prazer de acompanhar a mestria com que o autor soube tecer tudo aquilo, e que é equivalente a escutar pela enésima vez uma sinfonia somente pelo prazer de ver como tantos efeitos diferentes foram amarrados num todo que faz sentido e que dá prazer.