Um spoiler,
quando falamos de filmes, livros, etc., é a revelação de uma informação antes
da hora, estragando o prazer do mistério ou do suspense.
A expressão mais próxima em português seria “desmancha-prazeres”,
cujo inconveniente é ser mais longa e ter uma latitude maior de significado. Um
desmancha-prazeres pode ser, por exemplo, uma pessoa que vai com a gente para
uma festa, ou um passeio, e reclama o tempo todo.
Procurei agora (e não achei) na Internet o meu exemplo de
spoiler preferido, muitas vezes
citado. Um antigo desenho do “Amigo da Onça”, de Péricles, em O Cruzeiro. Ele mostra o sádico
personagem saindo de uma sessão de cinema e dizendo, enquanto passa pelos
espectadores que entram na sala: “O
assassino é o pai da moça... O assassino é o pai da moça...”
(O "Amigo da Onça", de Péricles)
A história de mistério policial deve ser o gênero de
narrativo que mais depende (ou que invariavelmente depende) do fato de uma
informação crucial precisar ser ocultada ao leitor até o último capítulo,
quando Sherlock Holmes ou Hercule Poirot reúne os suspeitos, explica a história
toda e aponta o culpado.
Mesmo assim, há inúmeras obras não-detetivescas que dependem
de mistérios, dúvidas, incertezas. Histórias onde não sabemos ao certo o que
aconteceu. Um fato remoto na infância de alguém. Um episódio de que todo mundo
evita falar. A verdadeira identidade de uma pessoa. Às vezes, a própria
identidade de quem está contando a história.
No final, vem a revelação, mas o objetivo maior da
narrativa não é a resposta em si, mas o longo período de incertezas e dúvidas,
que é compartilhado pelo leitor, e que tem sua função dramática.
Revelar o final antes da hora pode estragar a experiência
de quem, na leitura, precisa justamente saborear todas as possibilidades,
versões e hipóteses, antes de receber a resposta final. É um prazer específico que
se extrai de alguns tipos de narrativa.
Mas nem sempre o spoiler
estraga o prazer da leitura. Muita gente até gosta. Uma curiosa pesquisa constatou
que para muitas pessoas a informação tida como “desmancha-prazeres” as levava a
gostar mais das histórias – desde que a revelação fizesse parte do texto, e não
fosse uma “dica” dada por alguém, fora do livro.
Aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2016/10/4168-o-suspense-e-o-spoiler-9102016.html
No útil websaite LitHub, um texto de Jonathan Russell
Clark discute o que ele considera “o spoiler
mais famoso de todos os tempos”, o prólogo de Shakespeare para a tragédia Romeu e Julieta. Nesse prólogo, em forma
de soneto, a platéia é informada de que “um casal de desafortunados amantes
tira a própria vida”. Clark considera que essa revelação, feita no instante mesmo
em que as cortinas se abrem, é uma estratégia brilhante do autor.
Primeiro, diz ele, porque nesta peça, mais do que em muitas outras, o final trágico é de cortar o coração, porque poderia tão facilmente
ter sido evitado. Se uma desgraça tão catastrófica desabasse inesperadamente
para a platéia, ela talvez reagisse mal; mas a peça já se abre dizendo como
acaba, o que esvazia um pouco o impacto negativo.
Por outro lado... isto não nos impede de torcer para que
o casal fique junto, mesmo sabendo que eles não vão ficar. E quando o desfecho-mau acontece (diz Clark), não nos
queixamos do Autor, que foi leal conosco, e sim de nós mesmos, da nossa
esperança ingênua. E culpamos a injustiça do mundo – o que é (diz ele) o
objetivo de toda a grande literatura.
(Casino)
Existe também o falso spoiler
preparado pela narrativa. No filme Casino
(1985) de Martin Scorsese, Robert DeNiro faz um gangster que logo na primeira
cena entra no carro, liga a ignição e o carro explode em chamas. Em seguida, o
filme volta no tempo, em flash-back,
para nos mostrar a razão do crime. Lá pelas tantas é que somos informados de
que o bandido escapou da explosão.
É um recurso usado tantas vezes que já estamos calejados.
Um filme que começa com o protagonista sendo enterrado, fuzilado, enforcado,
etc., já entrega de bandeja que aquilo não passa de uma encenação. O “nosso
herói” certamente vai ressurgir vivinho da silva daí a pouco, e vai explicar o
truque que usou para enganar seus perseguidores.
Isto vale, contudo, para filmes mais leves, filmes de
aventura, de entretenimento. Num filme de pretensões mais realistas, um fato
crucial mostrado perto do início dificilmente será desmentido depois.
O spoiler será,
sempre, um desmancha-prazeres? Não necessariamente. Podemos ler várias vezes um
livro onde há algum tipo de mistério esclarecido no final, alguma surpresa que
nos pegou desprevenidos apenas na primeira vez, alguma reviravolta da narrativa
que nos espantou mas não irá nos espantar na repetição da leitura. Por que?
Para Clark, um spoiler
sempre se refere a “o que acontece”,
mas as grandes histórias dizem respeito ao “como
acontece” e ao “por que acontece”. E estes aspectos podem ser trabalhados pelo
autor com tal riqueza de elementos que a releitura sempre trará novidades. Diz
ele:
“A alquimia das melhores
histórias está em sua consistência: uma conexão de elementos mínimos, infinitesimalmente
trançados entre si e com o amálgama que os une; está nas idas e vindas entre o
que está acontecendo de fato, os motivos por que está acontecendo, e as razões
que tornam tudo isto importante.”
É por isto que mesmo os mistérios detetivescos cujo
desfecho eu já conheço podem ser lidos sem susto. Já sei quem matou as vítimas
em histórias como O Mistério da Laranja
Chinesa de Ellery Queen, ou Madball
de Fredric Brown, ou The Three Coffins
de John Dickson Carr, ou O Assassinato de
Roger Ackroyd de Agatha Christie. E daí?
Essa revelação específica deixou de ser importante. No
trajeto até ela, contudo, há uma série de pequenas revelações, pequenas
conotações, detalhes secundários mas relevantes, que me motivam a ler de novo;
e há o prazer de acompanhar a mestria com que o autor soube tecer tudo aquilo,
e que é equivalente a escutar pela enésima vez uma sinfonia somente pelo prazer
de ver como tantos efeitos diferentes foram amarrados num todo que faz sentido
e que dá prazer.