Saiu há pouco
tempo minha tradução, pela Suma de Letras, para Time Out of Joint (1959) de Philip K. Dick, com o título O Tempo Desconjuntado.
Philip K. Dick
escreveu esse romance numa época em que mantinha uma dupla persona literária. Estava
dividido entre dois mundos, duas possibilidades de carreira como escritor.
Dick se achava
qualificado para escrever romances do chamado mainstream (novelas realistas, psicológicas, ambientadas na vida
cotidiana e normal) e romances de ficção científica.
Não seria o
primeiro nem o último autor a se preocupar com essa encruzilhada.
Antes de 1959, ele escreveu romances mainstream, psicológicos: Gather Yourselves Together, Voices From the Street, Mary and the Giant, A Time for George Stavros, Pilgrim
on the Hill, The Broken Bubble of
Thisbe Holt. Alguns se perderam; outros só foram publicados décadas depois.
E produziu romances de FC como The Cosmic Puppets, Solar
Lottery, The World Jones Made, Eye in the Sky, The Man Who Japed .
É preciso lembrar
também que ele não era um escritor convencional, aquele que trabalha
pacificamente de seis a oito horas, e depois vai ajudar os filhos no dever de
casa, ou então vai aparar a grama do jardim.
Dick sempre teve
uma relação problemáticas com as drogas. No caso dele, um californiano típico
dos anos 1960, curiosamente a predileção não era por maconha, LSD, cocaína,
heroína, etc. Dick era viciado em
comprimidos, tarja-preta de farmácia, que ele conhecia a fundo e tomava em
combinações complicadíssimas.
Foi isso que o
tornou capaz de escrever sem parar, sem comer direito, sem dormir direito. Eye in the Sky, de 1957, tem 255 páginas
na edição da Ace Books; foi escrito em duas semanas.
Como acontece com
qualquer escritor de pulp fiction, a
escrita de P. K. Dick é um jorro, uma cachoeira, um derramamento incessante de peripécias
mal-e-mal mediadas pela consciência. Já escrevi aqui no blog sobre o modo como
o ato de escrever é um estado alterado de consciência, e como os autores da pulp fiction acabaram criando sua
própria versão da “escrita automática” proposta por André Breton e os
surrealistas.
O Tempo Desconjuntado me dá a impressão de um texto
mais trabalhado, mais elaborado, mais revisado do que outros que Dick estava
produzindo naquela fase. É um dos seus melhores livros, mas meio escanteado
pela crítica.
O Tempo Desconjuntado tem a substância daquela
tradicional xilogravura antiga que define o “conceptual breakthrough”: o
indivíduo que perfura “a redoma do mundo”, “a bolha de Truman”. Ele rompe o
hemisfério realista que o cerca e descobre que o mundo de verdade é um mundo de
ficção científica onde a Terra está em guerra com a Lua.
Como em Truman, o personagem rompe a casca de
dentro para fora, movido por uma paranóia, um estranhamento, a certeza de que
estão acontecendo coisas inexplicáveis no mundo. Ele está disposto a ter seu
mundo destruído, mas quer saber a verdade.
A cidade em que
vive Ragle Gumm é uma cidade dos anos 1950; ele tem memórias da guerra, do
tempo em que serviu num posto meteorológico numa ilha remota. Servir o exército
numa guerra e ter que ficar vigiando nuvens pode ser péssimo para uns, adequado
para outros.
Gumm sai de lá
transformado num sujeito que, sem saber como, levado meramente pelo instinto e
pelo esforço, adivinha diariamente onde vai tem mais probabilidade de cair uma
bomba inimiga.
Gumm é um
antecessor deste típico herói da FC cyberpunk, “o sujeito comum que tem um
talento que ele usa mas não sabe explicar”. É o Case do livro Neuromancer e é Cayce Pollard da
trilogia “Blue Ant”. É o seer, o
homem que tem visões, e que na FC se transforma no homem cuja cabeça recebe
algoritmos e os manipula de igual para igual.
É a pessoa cujo
olho percebe detalhes, e cuja mente percebe padrões, e é capaz de tomar
decisões quase sempre corretas em frações de segundo.
É o percebedor de
padrões de regularidades, como os idiots
savants que não conseguem se alimentar sozinhos mas resolvem em poucos
minutos uma operação matemática complexa e enorme.
Esse mesmo tipo
vamos encontrar depois em várias obras de Robert Silverberg, como o Martin
Carvajal de The Stochastic Man (1975)
cuja antevisão estatística abalava campanhas políticas e o mercado de ações, e
o David Selig de Uma pequena morte
(“Dying Inside”, 1972), o telepata que chegando à vida adulta começa a perder
seus poderes mentais.
Anteriores ao
protagonista deste livro de Dick são as raridades parapsicológicas que Theodore
Sturgeon descreve em O Homem Sintético (“The
Dreaming Jewels”, 1950) ou em More than
human (1953). Não são heróis propriamente de inteligência superior.
Desajustados sociais, marginais meio romantizados, esquisitos mas humanos.
Pessoas que fazem algo sobrenatural, algo raro que pode ser útil, na paz e na
guerra.
A Guerra Fria foi
uma época em que todos os “talentos selvagens” relativos à mente foram sendo
testados. Desde o LSD administrado sem aviso às cobaias, como na recente série
de TV Wormwood quanto aos delírios de
laboratório deixando sequelas.
Ou as verbas
investidas em paranormalidade (há uma versão jocosa disto em Homens Que Olhavam Para as Cabras, 2009,
de Grant Heslov), ou a criação de um “Arquivo X” só para rastrear o
lumpen-sobrenatural.
É meio repetitivo
falar em Guerra Fria como grande influência na obra de Dick, mas essa paranóia
constante aparece em quase tudo dele. Não o medo do Comunismo ou do Nazismo,
que aparecem citados em poucos livros. Mas o medo da sociedade de vigilância e
punição a ser instalada para poder produzir uma defesa contra a ameaça
comunista e nazista.
A Guerra Fria era
a ameaça de uma guerra atômica que nunca chegou a acontecer (a não ser para
duas cidades do Japão), e para que ela não acontecesse criaram-se imensas
estruturas militares, tecnológicas, jurídicas, financeiras. A atual Sociedade
da Hipervigilância pode até nem ter sido o objetivo inicial da Guerra Fria, mas
é resultado dela.
É ao mesmo tempo a
sociedade do espetáculo, da vigilância, da interconexão, do acompanhamento. De
certa forma,Time Out of Joint é mais
uma das obras de P. K. Dick onde um personagem parece dizer: “descobri que sou
o homem mais importante do mundo”. Foi este o título de uma tradução portuguesa
deste livro.
O paranóico
descobriu-se no centro de um mundo que o conhece e acompanha suas ações com
ansiedade. E não só isto: o mundo em que ele vive foi criado para ele, em função dele, é um paraíso classe-média feito à sua imagem e
semelhança.
Já a vida pessoal
de Truman Burbank, no filme de Peter Weir, é apenas o mais bem produzido reality show da Terra, e com uma cereja
no bolo: o imenso novelão é encenado à revelia do personagem principal, para
quem aquilo é uma cidade de verdade. Ele pensa que aquele trabalho é de
verdade, que aquela esposa é de verdade...
Por isso que
Truman Burbank gostava de tomar cerveja. Nenhum filósofo, nenhum cientista pode dizer
que aquela cerveja que ele tomava ali não era real.
O Tempo Desconjuntado tem algumas das melhores
páginas “philipkdickianas” da literatura de FC, aqueles trechos onde a fachada
do Real se rasga e deixa entrever alguma coisa que existe por trás.
E no faz sentir
admiração por um personagem que decide ir em frente e confirmar uma dessas duas
hipóteses: ou eu fiquei louco, ou o mundo em que eu vivia era uma mentira.