quinta-feira, 1 de abril de 2010
1859) Eu sou Holly Golightly (22.2.2009)
A moça esguia, elegante, sofisticada, desce de um táxi ao amanhecer, diante das vitrines da Tiffany, a joalheria mais cara de Nova York. Quem é ela? Uma socialite riquíssima, vinda da “balada”?... Logo a vemos abrir um saco de papel, de onde tira um misto-quente e um refrigerante em copo de plástico, para saboreá-los distraidamente enquanto namora as jóias milionárias na vitrine.
Seu nome é Holly Golightly. Ela é uma “bonequinha de luxo” (título brasileiro do filme Breakfast at Tiffany’s), o que é uma maneira suave de dizer que é uma garota de programa, sustentada por homens ricos e influentes, e cultivando em segredo a esperança de que um deles se apaixone por ela e a torne “Madame Fulano de Tal”, como no samba cantado por Ataulfo Alves.
Se eu tivesse filmado minha autobiografia aos vinte anos talvez a tivesse intitulado Happy-hour na Cinemateca, porque não me acho muito diferente da personagem de Audrey Hepburn.
Todo mundo que vai para a cidade grande vai cheio de sonhos impossíveis. (E ai daquele que consegue realizá-los, porque estaciona, estagna e fica encalhado no acostamento da vida, porque não tem mais nada a puxá-lo para a frente, rumo ao horizonte ou alguma utopia óptica equivalente.)
Íamos para as grandes cidades porque era lá que estavam as grandes cinematecas, os grandes templos do culto das Sombras, as cavernas de Platão às avessas onde finalmente conseguíamos afastar os olhos do mundo ilusório daqui de fora e fitar as imagens luminosas do Universo dos Arquétipos.
O que tinha Holly Golightly para oferecer aos homens? Aqueles olhos enormes e cândidos, aquele sorriso capaz de interromper uma guerra, aqueles ombros e braços de dar um nó na garganta, e decerto outros tesouros, tão bem ocultos pelo costureiro Givenchy.
O que tínhamos nós, toda nossa geração? Amor pelo cinema, amor pelos filmes alheios (a mais desprendida forma de amor), uma capacidade infinita para trabalhar sem remuneração. E, em alguns casos, um talento especial para fazer em um dia algo que pessoas mais talentosas precisariam de um mês para deixar pronto.
O mercado precisava de nós, nós dele, e é assim que se fazem as carreiras, casando ao pé do altar a fome de lucros das empresas e a vontade nossa de comer todos os dias.
Muitos de nós viraram roteiristas de TV, o que também é uma maneira suave de dizer que são garotos cuja reputação varia de acordo com o tipo de programa que topam fazer.
Felizes daqueles que conheceram os tempos de ouro em que a procura era maior que a oferta, e eles podiam não apenas escolher para quem iriam trabalhar como quanto gostariam de receber. Para os que vieram depois, é pegar ou largar, ou melhor, é pegar ou ser largado no acostamento da rodovia.
Dom Quixote, Emma Bovary, Holly Golightly, Barton Fink: há uma linha tênue que costura a comédia humana século após século, dizendo: “Sonhareis com as estrelas do céu, e tudo que alcançareis será o pisca-pisca da televisão”.
1858) Pare de se preocupar (21.2.2009)
Rola na Europa uma campanha de ateus e agnósticos que coloca posters nos ônibus urbanos dizendo: “Provavelmente não existe Deus, portanto pare de se preocupar, e aproveite a vida”. A finalidade da campanha não é reduzir as preocupações dos cidadãos comuns, e sim alfinetar os grupos fundamentalistas, cujos membros caem ao chão, ciscando e espumando, toda vez que avistam uma frase desse tipo. Com todo respeito, é o mesmo que mostrar cruz a vampiro.
Eu pertenço à ala direita dos AA (sou agnóstico) e entendo a intenção da campanha, inclusive simpatizo com o bom humor e a leveza da mensagem, muito diferente das diatribes furiosas que um dos seus patrocinadores, o cientista Richard Dawkins, costuma produzir em seus próprios livros. A campanha não chama os crentes-em-Deus de imbecis nem de fanáticos, apenas diz: “Calma, esse assunto não é uma prioridade, vá cuidar de coisas mais urgentes”. É claro, no entanto, que uma pessoa que apoiou toda sua vida mental no conceito da existência de Deus, e por consequência na existência de sua própria alma imortal, não vai admitir que os aviões do ateísmo derrubem duas torres tão imponentes, das quais depende sua aposta na vida eterna.
Mais do que o conteúdo secular da proposta, contudo, o que me agradou foi o jeito de dizer as coisas, algo muito importante quando se mexe com a crença alheia. Não podemos dizer “você é um idiota por acreditar nisto” (ou “por duvidar disto”). Melhor dizer assim: vá se ocupar com outras coisas. Deus existe? Então deixe Deus quieto no canto dele e vá fazer coisas que sejam úteis para alguém mais. Eu nada tenho contra a fé religiosa, mas vejo com certo desânimo as pessoas para quem acreditar numa Divindade significa passar o dia inteiro entoando loas, louvações e elogios à Divindade. Grande parte da atividade religiosa que vejo por aí consiste apenas em ficar salmodiando: “Você é grande, gigantesco, perfeito, onipotente, etc.” É isso que uma Divindade espera ouvir de seres dotados de alma imortal e de livre arbítrio?
Todas as religiões são humanas, demasiado humanas. O que têm de transcendente ou de epifânico é uma pepita no meio de um cascalho de rituais repetidos de forma mecânica. Quando chega um grupo de pessoas e diz “pare de se preocupar e aproveite a vida” na realidade está dizendo, “pare de tratar Deus como um imperador mimado e vá fazer as coisas que ele espera que você faça”. Vá alimentar os famintos, agasalhar os que têm frio, arranjar terra para quem quer trabalhar, indicar um caminho para quem está perdido no mundo.
Se não me engano há um trecho nos Evangelhos em que Cristo diz: “O que fizerdes por eles, é por mim que estareis fazendo”. Se ele disse isso, vai ver que estava dizendo algo como: “Deus existe e sou eu. Portanto, pare de se preocupar e aproveite a vida”. (Claro que hoje em dia “aproveitar a vida” é beber, cair e levantar, mas ninguém pode botar a culpa em Jesus Cristo.)
1857) Do estupro ao terrorismo (20.2.2009)
Um dos objetivos do terrorismo é espalhar o terror entre uma população que nunca sabe de onde virá o próximo ataque-surpresa, nem como, nem quando. Muito diferente das guerras galantes da Idade Média, em que um cavaleiro ajudava a erguer do chão o cavaleiro caído a quem tentaria matar no minuto seguinte. O terrorismo sempre ataca pelas costas, por assim dizer, atingindo pessoas desarmadas e desprevenidas. Seu objetivo é dizer: “Nossa guerra é contra todos, inclusive contra os que não estão em guerra. Nossa guerra é contra qualquer um, inclusive contra você.”
O Velho da Montanha é um personagem lendário da história islâmica. Encastelado numa fortaleza, ele dopava com haxixe rapazes vigorosos mas ingênuos. Produzia uma espécie de “pegadinha” em que o rapaz, sob a influência da droga, era acariciado por belíssimas mulheres nuas, que lhe serviam comida deliciosa e vinhos finos. Ao despertar, ele ficava sabendo que tinha passado algumas horas no Paraíso, e teria direito a visitá-lo novamente caso concordasse em se sacrificar pela causa, matando Fulano de Tal. Claro que o jovem lavrador, bronco, de poucas leituras, com os hormônios esfuziando, topava na hora. Assim surgiram os “hashishin”, ou “assassinos”.
Bons tempos. Hoje, a História humana parece estar sendo escrita a quatro mãos pelo Barão de Munchausen e pelo Marquês de Sade. A imprensa acaba de divulgar que a iraquiana Samira Hassan, de 51 anos, foi presa sob acusação de fornecer mulheres-bomba para atentados contra as forças invasoras internacionais em seu país. Como é feito o recrutamento? Com promessas de ir para o Paraíso? Não, apenas isto: o grupo liderado por ela atacava as mulheres e as estuprava. Uma iraquiana estuprada tem que suportar, talvez, uma vergonha mais intensa do que uma mulher ocidental, pelos agravantes típicos de sua cultura. Desesperada, sem alternativa para a vida, a estuprada era então abordada e lhe ofereciam a opção de virar mulher-bomba. Sacrificando-se pela causa, seu “pecado” seria perdoado e ela iria ao Paraíso. Cerca de 80 mulheres passaram por este processo e foram pelos ares.
Se uma mulher estuprada experimenta uma tal vergonha, que dizer de um rapaz heterossexual que sofra o mesmo vexame? É o que tem sido posto em prática na Argélia, segundo um artigo de Tom Newton Dunn no “The Sun”. Um militante argelino arrependido, Abu Baçir El Assimi, afirmou: “Os atos sexuais praticados sobre jovens recrutas entre 16 e 19 anos foram uma maneira de pressioná-los a se engajar em operações suicidas”. Numa cultura moralista, e fortemente machista, a humilhação de um rapaz sodomizado à força não tem limite. A primeira coisa em que ele pensa, talvez, é em suicídio. Os terroristas lhe oferecem, então, um “suicídio útil”, e a possível ida ao Paraíso. O terrorismo torna-se isto: um exército de aterrorizados, vítimas de um estelionato moral, sacrificando-se em busca de redenção.
1856) Notas de um mineiro soterrado (19.2.2009)
O túnel desabou. As galerias estão bloqueadas. É impossível saber a extensão do desmoronamento, a quantidade de entulho que terá de ser removida, o tempo que isto levará, a possibilidade de renovação do ar, ainda que mínima, através de alguma pequena fenda. Não se sabe. A escuridão é total, e o silêncio também o seria, se não fosse pelos arquejos com que todos naquele grupo tentam puxar o ar para dentro dos pulmões.
Cada hausto de oxigênio é uma vitória, e nos dá motivação suficiente para conseguir o próximo. A escuridão não deve assustar. Numa situação assim, o tempo não se mede em anos ou meses, mas apenas em segundos. É proibido pensar além disso. Não, não é proibido: é contraproducente, é desnecessário. Cada segundo é o primeiro. Cada segundo significa que o anterior não foi o último. É preciso relaxar. Não colocar peso em excesso. Ficar com os músculos contraídos não ajuda as equipes de salvamento a empurrar as rochas desabadas. Trincar os dentes não alarga os dutos de ventilação. Se rezar faz bem, reze.
Nada conforta tanto quanto a certeza (sinônimo de esperança) de que há equipes de salvamento abrindo caminho, cada vez mais próximas a cada minuto e a cada hora. Frustrar as esperanças deles seria imperdoável. Fazer com que tivessem se esforçado em vão seria um pecado, um crime. Vamos, vamos. Falta pouco. Cada instante que passa os traz mais perto. É só uma questão de tempo. É só uma questão de dividir com prudência o total de oxigênio restante (e não se sabe quanto é) pelo total de minutos que faltam (e não se sabe quantos são).
É preciso (mesmo que não se escute nada, mesmo que o silêncio continue assim, opressivo, sólido) acreditar que estão a caminho, que há equipes, homens bradando ordens, instrumentos de ferro partindo as rochas e escavando a terra, aproximando-se. A crença ajuda a acontecer. Saber que eles estão vindo ajuda a poupar o ar. Saber que estão vindo envia raios telepáticos na direção deles, para que cavem no rumo certo, para que não se desviem nem se atrasem. Tudo no vasto Universo tem um propósito, tudo converge para uma região onde as coisas encontram um deslindamento necessário, tudo tende a ter sentido.
No silêncio e na treva absoluta, algo acontece sem que sejamos capazes de perceber, mas acontece para nosso bem. Tudo que temos a fazer é ficar assim, manter a mente acordada e o corpo preservado, para que o que acontecerá não aconteça em vão. Não podemos cavar, não podemos abrir caminho. Nossa única maneira de ajudar os que podem é continuar ali, existindo, jazendo, à espera, transmitindo de algum modo secreto a vibração indefinível de nossa presença, para que eles cavem, cavem, cavem. Não precisamos agir, basta esperar. E respirar. Cada hausto de oxigênio em nossos pulmões mantém vivas as esperanças de duzentos homens com pás e picaretas que deslocam rochas e vêm na nossa direção. Basta continuar respirando.
1855) A resposta mental da FC (18.2.2009)
Algumas teorias dos gêneros literários procuram defini-los em termos da resposta emocional que provocam no leitor.
O gênero do horror (ou terror) é o exemplo mais à mão. Não importa a época em que se situa, o estilo literário em que se expressa, não importa tema, ambiente, personagens, desenvolvimento... O que conta é que é uma história escrita com a intenção de provocar essa resposta na pessoa que lê. E que essa pessoa procure esse livro com a intenção clara de passar por essa experiência emocional.
O mesmo pode-se dizer do humor e do cômico; o mesmo pode-se dizer também da pornografia e do erotismo. As histórias podem se passar em qualquer época e qualquer lugar, em qualquer ambiente; tudo isto é irrelevante. Se cumprirem aquele objetivo – provocar o riso, ou a excitação erótica – pertencem ao gênero, e estamos conversados.
No caso da ficção científica, a resposta procurada por autores e leitores já foi formulada de diferentes maneiras.
Definições mais antigas usam a expressão “sense of wonder”: a sensação de deslumbramento, de maravilhamento, diante de algo surpreendente, grandioso, a ponto de modificar nossa própria noção sobre o universo. Em fases posteriores, com autores e leitores mais exigentes, mais experimentados, mais questionadores, surgiram expressões como “conceptual breakthrough” (Peter Nicholls) e “cognitive estrangement” (Darko Suvin).
Ambos os conceitos são tentativas de fazer uma sintonia fina no “sense-of-wonder” tradicional, formulado na década de 1930.
Nicholls criou a expressão “conceptual breakthrough” (mais ou menos “ruptura conceitual”, o ato de destruir uma visão do Universo e ter acesso a uma visão mais complexa, como o pinto rompe a casca do ovo e descobre o mundo) enfatizando esse poder da FC de nos fazer enxergar de repente a verdadeira realidade.
É a imagem daquela famosa gravura em que um sujeito se arrasta até o horizonte, fura um buraco no céu, enfia a cabeça por ali e vislumbra mecanismos espantosos. É a visão do astronauta Bowman em “2001”, quando penetra no monolito e percebe ali o portal para hiper-dimensões.
Darko Suvin, um crítico influenciado pelo marxismo e pelas idéias de Bertolt Brecht, propôs o termo “cognitive strangement” que significa “estranhamento cognitivo” ou “distanciamento cognitivo”.
Para ele, a FC nos possibilita ter de repente uma visão “de fora” das coisas, distanciada, livre das idéias preconcebidas, como se estivéssemos vendo aquilo pela primeira vez; e isto nos dá um conhecimento mais profundo do que estamos vendo.
Como Newton vendo a queda de uma maçã, percebendo a atração do planeta Terra, e intuindo a partir disto todo um sistema de forças.
Ou como Einstein vendo um trem passar a toda velocidade e percebendo que os passageiros do trem se consideravam imóveis relativamente uns aos outros.
São essas “respostas mentais” que definem a FC, e não a presença de espaçonaves, alienígenas, robôs, pistolas de raios, etc.
1854) Arte, mercado, especulação (17.2.2009)
(quadro de Anselm Reyle)
Minha coluna tem se transformado nas “Lamentações de Jeremias” sobre o terrível golpe que se abateu sobre os milionários do mundo. Por enquanto – daqui a um ou dois anos, esperem quando o Tsunami chegar na classe média brasileira! Perderam bilhões de dólares, perderam propriedades, perderam casamentos... Perderam tudo? Nem tanto, se ainda não se desfizeram de suas coleções de arte contemporânea. Revistas variadas têm feito a cobertura do extraordinário “boom” das artes plásticas nos últimos anos, com artistas vivos e até jovens desbancando em preços os grandes mestres dos séculos passados.
Segundo um artigo de Bem Lewis na revista eletrônica “Prospect”, existe toda uma geração de novos ricos, com muito dinheiro para rasgar, bancando obras de arte contemporânea em cuja valorização eles apostam (afinal, arte é um mercado futuro que não se distingue do dólar, dos CDBS ou das ações). Esses bilionários, em vez de comprar Van Goghs e Picassos, cujo preço já está nas nuvens, investem pesado em artistas novos e multiplicam o valor dessas obras em taxas inacreditáveis. Segundo Lewis, “o volume das vendas de arte contemporânea na China aumentou 983% no ano de 2005-2006. Na Rússia, esse valor aumentou 2.365% em cinco anos (2000-2005), enquanto seu valor de mercado crescia ‘apenas’ 300%”.
A valorização desses artistas atinge tais níveis porque começam lá de baixo, ao contrário de um Gauguin ou Braque cujo preço já vive nas alturas. O pintor chinês Zhang Xiaogang viu o valor de suas obras ser multiplicado por 1.000 em uma década (1999-2008); as obras do norte-americano Richard Prince se valorizaram de 60 a 80 vezes entre 2003 e 2008; o pintor alemão Anselm Reyle era desconhecido em 2004, quando um quadro seu vendia pelo preço médio de 14 mil euros. Hoje, ele tem um estúdio com 60 assistentes produzindo quadros com preço médio de 200 mil euros.
São os recém-bilionários que estão inflacionando esse mercado: “Querem colecionar arte contemporânea, em parte, porque gostam dela, em parte porque é um símbolo de status, em parte porque grande parte das obras dos grandes mestres estão presas nos Museus, e em parte porque parece um investimento confiável”. Todo este fenômeno confirma a enorme distorção que o mercado de arte está sofrendo. Não existe mais Mercado de Arte, existe Arte de Mercado. Cem anos atrás definia-se o que era a grande Arte através de discussões estéticas, filosóficas, etc. Claro que havia um “lobby” político aqui e outro acolá, para valorizar a obra de Fulano ou Sicrano, mas ninguém poderá dizer que Van Gogh ou Rembrandt pintavam unicamente visando o mercado, como não pode dizer que Shakespeare escrevia apenas para agradar ao Rei ou Michelangelo esculpia para agradar o Papa. Mas essa arte de hoje é Arte de Mercado, voltada para os leilões e as aquisições, e não reflete a mentalidade de quem a faz, mas a mentalidade de quem a compra e a patrocina.
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