(ilustração: pintura de Mike Stilkey)
Uma discussão recente da Internet trouxe à baila (eu estava ansioso para usar esta expressão) a questão da diferença entre o conto e o romance.
Muita gente pensa que a diferença entre conto e romance é
uma diferença de tamanho, como a diferença entre duas matrioskas.
(Para efeito dos comentários abaixo, é bom deixar logo
clara uma distinção: cada obra literária tem seu próprio formato, seja conto ou
romance. Somente por aproximação estatística podemos dizer que, p. ex., dois
contos de Sherlock Holmes se baseiam na mesma estrutura, ou que dois romances
de José de Alencar se baseiam na mesma estrutura.)
A diferença entre o conto e o romance é uma diferença que
só num certo sentido tem a ver com tamanho.
É como, por exemplo, a diferença entre um apartamento e
um castelo medieval. O apartamento tem sala, dois quartos, cozinha, banheiro,
área de serviço, e está cercado (lateralmente, e em cima, e embaixo) por
estruturas idênticas.
Um castelo medieval não é isso aí “só que em tamanho
maior”. É um conjunto de outras estruturas que são só suas; semi-independentes,
interligadas, funcionando mais ou menos em conjunto.
Um poeta simbolista com laivos científicos diria talvez
que a diferença entre o romance e o conto é a diferença entre o carvão e o
diamante. O elemento é o mesmo, mas a estrutura é diferente.
Edgar Allan Poe, um dos criadores do conto moderno, propôs
duas regras: 1) o conto deveria ser medido pela intensidade do efeito que
produz, e tudo que há nele deve contribuir para esse efeito; 2) sua leitura
deve ser ininterrupta, e para isso sua extensão ideal deve proporcionar uma
leitura contínua de meia hora a duas horas de duração.
Um conto, por essa teoria, deve ser um mergulho. O leitor
mergulha na primeira frase, e emerge ao final da última frase.
Um romance, é claro, não pode ser assim. Se o conto vale
pela intensidade do efeito, o romance deve valer pela amplitude e profundidade
dos efeitos que produz. Efeitos em níveis simultâneos, que o leitor percebe,
depois se assenhoreia deles, e vai curtindo ao longo da leitura: linguagem,
enredo, personagens, ambiente, etc.
Um conto é como um concerto de piano: há apenas um
instrumento nos dizendo alguma coisa, nossa atenção se concentra dele, num
único canal, e o segue do começo ao fim. Um romance é como uma peça orquestral,
onde (idealmente) percebemos os efeitos produzidos pelo naipe de metais, pelo
naipe de cordas, pelas percussões, pelo pianista que sola, pelo coral,
etc. Ou seja: acontecem muitas coisas
simultaneamente, em “canais” paralelos, e temos que acompanhar todas elas.
A relação do leitor com o conto (esse conto sonhado por
Poe) é uma espécie de investida, assalto, mergulho. Já a sua relação com o romance é o de uma
convivência, uma escavação vagarosa num sítio arqueológico onde a enormidade do
monumento que se exuma não nos deixa cegos ao lavor de cada detalhe.
Se precisamos de uma relação visual entre o conto e o
romance, mais do que a diferença de tamanhos eu diria que há uma diferença de espessura, onde o conto só tem uma
camada e o romance tem várias, superpostas.
Ou melhor: uma
camada é meio sem sentido, porque o conto tem sua partiturazinha orquestral,
tem personagem, linguagem, atmosfera, voz narrativa. São coisas muito próximas,
mas são independentes. Tem autor (entre os grandes, os mestres) que é excelente
para ação e descrição, mas o vocabulário é meio descolorido. Ou então o diálogo
é brilhante, mas os personagens parecem ecos de histórias relidas muitas vezes,
ou descrições de personalidades não concebidas por inteiro.
Melhor dizer que quanto menos “camadas” nesse sentido
houver num texto, “mais conto” vai ter ali. Ele se aproxima do polimento milenar
das lendas, das fábulas, dos mitos e das anedotas de mesa de bar. A história em
si, mola retesada, no mais aerodinâmico de sua energia, personalizada, única. A
história valendo por tudo.
E quanto mais camadas houvesse, oscilaríamos para “mais
romance”: personagens às dezenas, cada qual trazendo sua afinação ou sua
dissonância ao conjunto. Enredo, no sentido de história pura. Muitas camadas.
É possível um autor acertar totalmente em algumas camadas
e errar em outras. Todo gênio tem limitações. Borges recuava diante do romance
(e podemos imaginar que ele criou toda uma estética em torno disso). Garcia
Márquez não gostava de escrever diálogos. Kafka não acabava coisa nenhuma.
Voltando ao conto: com seu minimalismo de mola
comprimida, o conto é algo que quer disparar dentro da mente do leitor. São
assim os contos admirados e praticados por Borges, Poe, Cortázar, etc.: “A Pata
do Macaco”, “August Heat”, “A Profecia”, “Casa Tomada”, “O Jardim das Veredas
Que Se Bifurcam”, “O Gato Preto”...
O romance quer levar o leitor numa viagem, literalmente, por
ambientes diferenciados, núcleos mais ou menos autônomos de personagens com sua
própria narrativa interna. Diferentes tempos, diferentes ambientes, cada um
deles requerendo uma partitura própria. O romance é uma convivência. Suas histórias
envolvem dezenas de personagens. A prosa deve ser clara, fluida, energética, mas
o que prende muito leitor-de-romance é essa descortinação vagarosa de uma tapeçaria
vasta e plural.
É claro que a cada geração aparecem autores querendo
questionar a regra, desmentir a regra. Curiosos
com a possibilidade de produzir um romance com 200 páginas e uma só camada, ou um
conto de três folhas com mais camadas do que Tróia.
Não importa o que seja a literatura, coexistirão os escritores
que como Truman Burbank querem tocar com a mão no limite do universo
conhecido. E existem os que querem apenas contar uma história e ter a platéia
na mão.
Os manuais de roteiro de linha meio hollywoodiana falam
muito que “história é conflito”.
Digamos que seja. Se o romancista lida com décadas e
multidões, ocasiões plausíveis para conflito não lhe faltam. No conto, o
conflito é nesse formato de mola comprimida e disparada: a projeção de um
elemento de encontro a um outro, e o choque resultante. Ou então disparado com
a intenção de cumprir uma trajetória prevista, mesmo sem compreendê-la. Ou
(como nos contos citados acima) aquela sensação de uma instauração inevitável
de uma simetria ameaçadora e a impossibilidade de furtar-se a ela, mesmo sem
compreendê-la.
Um conto (esse conto sonhado por Edgar Poe, e que ele
soube exemplificar tão bem na prática) é como um salto de bungee-jump. O
romance é a longo prazo, é um jardim cheio de canteiros cujo crescimento a
gente acompanha, é um painel imenso que surge saindo de dentro de si mesmo.