A
notícia da morte de João Gilberto me pegou justamente num sábado em que eu
preparava um artigo sobre estilo literário. Estilo, em termos gerais.
Estilo
(ia eu pensando) é um conjunto de qualidades e defeitos tão peculiares que dão
um perfil único e inimitável àquele artista. Um conjunto de habilidades e
limitações: coisas que ele faz melhor que qualquer um, justapostas a coisas que
qualquer um faz e ele é incapaz de fazer.
Quero
ser mico de circo se João Gilberto fosse capaz de me ver tocando violão (assumidamente
mal) durante 2 ou 3 horas e depois tocar do jeito que eu toco. Não poderia. Ele
só sabia tocar – acho eu – do jeito de João Gilberto.
Em
qualquer capital brasileira há grandes violonistas de barzinho capazes de tocar
igual a João e, se me vissem, igual a mim em 15 minutos. Tocam igual a Baden
Powell e a Mark Knopfler, se quiserem. E por isso nunca serão outra coisa senão
grandes violonistas de barzinho.
João
Gilberto desenvolveu sua estética, sua batida, sua harmonização, sua emissão
vocal, num meio musical extremamente exigente e vigilante, o da vida noturna do
Rio de Janeiro dos anos 1950. Era um Brasil onde o conceito milionário de
sucesso era apenas um vapor muito tênue. Era uma selva de qualidades conflitantes,
um Brasil capaz de acolher com hospitalidade as violentas guinadas artísticas
da Bossa Nova.
A
grandeza de João foi a de criar um idioma musical próprio, mistura de candura,
rigor e complexidade, e com isso provocar respostas diferentes em cada um dos seus
discípulos. Veja-se a diversidade da obra de admiradores seus como Tom Jobim e
Chico Buarque, no lado mais caretão da MPB, e como Gilberto Gil e Caetano
Veloso, no lado mais carnavalesco do tropicalismo.
Todos
influenciados por João, todos diferentíssimos dele, a ponto de um jovem de hoje
ter dificuldade de enxergar a influência de João em muitos deles, mas nenhum
deles (podemos arriscar) ousaria o quanto ousou sem o exemplo radical de João
Gilberto.
Nunca
fui um grande fã de João, acho que por uma questão cronológica. Tivesse nascido
uns cinco anos antes e talvez a Bossa Nova tivesse me arrebatado como arrebatou
tantos outros; e como o próprio Tropicalismo me arrebatou mais tarde.
Só
comecei a reconhecer o papel desbravador de João quando li o Balanço da Bossa de Augusto de Campos,
onde ele reconstitui vários processos desconstrutores com que João e a Bossa
desinflaram a música popular operística e tenorística da época, com seus
dós-de-peito, seus sentimentos porejantes de dramaticidade. Era o bolerão de
Nelson Gonçalves (que continuo admirando – vejam só como são as coisas), Vicente
Celestino e companhia.
A
Bossa Nova varreu essa nossa música melodramática e sentimental com uma
estética enxuta, simples, que raspava todos os excessos até revelar a ossatura
de harmonia, melodia, ritmo e canto. Mostrava como nada daquele recheio fazia falta,
e que era possível haver emoção sem sentimentalismo, força sem empostação.
Alguém
disse da arquitetura de Oscar Niemeyer que ela demonstrava o quanto o concreto
é leve. As harmonizações e as divisões rítmicas de João Gilberto mostravam que
era possível haver uma ultra-sofisticação por trás de estruturas aparentemente
simples, nuas, despojadas.
Como
a poesia de João Cabral de Melo Neto e seu poeta-engenheiro que sonhava com
superfícies claras, limpas, um copo dágua, uma quadra de tênis. Um “edifício
crescendo de suas formas simples”.
Uma
estética que correu mundo. Num trecho da contracapa de Bringin’ it All Back Home, Bob Dylan dizia: “Muitos podem gostar de
um suave cantor brasileiro, mas eu já desisti de tentar a perfeição”. O álbum é
de 1965, quando a Bossa Nova já pipocava nos EUA após o histórico concerto do
Carnegie Hall em 1962.
Gosto
é gosto, e sinto muito mais prazer ouvindo os seguidores de João Gilberto do
que ele próprio, porque neles (Tom, Chico, Gil, Caetano) me atrai a
exuberância, a variedade de formas, a espontaneidade melódica (muito mais do
que a complexidade harmônica), a potência poética.
Os
únicos discos dele que já tive foram o “Chega de Saudade”, “O amor, o sorriso e
a flor” (o da capa solarizada), aquele com Astrud e Stan Getz, aquele outro da
capa colorida que tem “Farolito” e outro que não lembro o nome, já na fase dos
óculos, terno preto e cabelos brancos. Para mim ele é uma lição de minimalismo
comparável com Erik Satie na música erudita e com Paul Klee e Miró na pintura.
E
também, como todos estes, uma obra percorrida por um forte veio infantil, como
de meninos que nunca cresceram e que mesmo depois de barbados continuam a
brincar como se tivessem cinco anos. Este veio alimentou fortemente a Bossa
Nova, com suas letrinhas ginasianas que às vezes derrapavam no simplório. Isso
nunca me incomodou muito – eu fui desde o início um fã da Jovem Guarda, e nunca
liguei para o infantilismo de “O Pato” ou “Lobo Bobo” porque para mim eram
versos no mesmo nível simpático e brincalhão de “A Festa do Bolinha” ou “O
Calhambeque”.
A
própria voz de João Gilberto nunca se despregou muito da infância, era aquela
voz sem muita força, de quem ainda não cresceu cabelo no peito, de quem
acostumou-se a falar baixinho porque mora numa casa onde todo mundo é
estentórico e tonitruante.
A
casa dele era a casa cheia de decibéis onde pontificavam Cauby Peixoto, Ângela
Maria, Leny Eversong e outros prodígios capazes de sustentar uma nota no ar
durante o tempo de se fumar um cigarro sem filtro. Eles ensinaram a João,
talvez, o valor da fala pequenininha, como uma estrela miúda que alumeia o mar.
Havia
em João esse viés infantil, herdado por compositores e cantores em busca de
simplicidade das coisas realmente grandes: Sidney Miller, Nara Leão, o próprio
Chico Buarque com seu rosário de canções adaptadas das musiquinhas de roda e
contos de fadas.
Só
vim a considerar João Gilberto um gênio quando li o Chega de Saudade de Ruy Castro, agora já nos anos 2000, e
finalmente entendi um pouco desse personagem por trás do cantor que parecia
desafinar e era mais afinado que todo mundo, que parecia atravessar o ritmo e
na verdade estava com as rédeas do ritmo na mão o tempo todo.
Um
gênio raramente morre feliz. Um gênio raramente tem uma vida à altura da beleza
que deixou para os outros. Eu faço uma distinção (bem minha, bem pessoal) entre
“gênio” e “grande artista”. Um gênio não é simplesmente alguém mais inteligente
do que o resto. É um cara anormal, no sentido de que tem (olha aqui a definição
de “estilo”, mais uma vez) uns certos talentos e umas certas limitações numa
combinação que ninguém mais tem, e num grau de intensidade que poucas pessoas
em volta dele conseguem tolerar.
Chico
Buarque, Tom Jobim, Edu Lobo, Caetano e companhia, todos são artistas
excepcionais, mas nenhum deles é um gênio. São sujeitos iguais a mim e a você.
Com a diferença de que compõem, escrevem cantam, etc. melhor do que eu ou você.
Um
gênio é um sujeito fora de esquadro, fora do cotidiano normal de outras
pessoas. Um gênio é alguém que incomoda, que provoca constrangimentos, que não
é fácil de manobrar. Pode ser capaz de ingenuidades terríveis, de crueldades
desnecessárias, de extremos egoísmos e generosidades extremas (tão extremas que
nos deixam desconfortáveis). E não o faz pensando nas manchetes dos jornais nem
na conta bancária. Faz porque isso é parte de sua formatação deformada, que o
torna intensamente brilhante para algumas coisas e um tosco total para outras.
Renoir,
Cézanne, Portinari, não eram gênios, eram grandes artistas. Gênio era Van Gogh.
Um gênio é sempre alguém que você pensaria duas vezes antes de aceitar como hóspede
em sua residência. João Cabral, Vinicius de Moraes, Manuel Bandeira, Carlos
Drummond, não foram gênios (por esta minha nomenclatura), foram grandes poetas.
Gênio era Arthur Rimbaud, era Edgar Allan Poe.
As
maluquices de João Gilberto são conhecidas demais para repisar aqui. Fechado em
si mesmo, sem ver ninguém e ao mesmo tempo dando telefonemas de cinco ou seis
horas seguidas para pessoas que mal conhecia, ele seguia esse destino
inapelável dos que não conseguiriam ser menos excêntricos – mesmo que
quisessem, mesmo que achassem possível, mesmo que percebessem que as outras
pessoas são diferentes deles.
Um
gênio raramente tem uma vida pacata, uma morte tranqüila. Raramente é feliz,
mesmo quando por um golpe de sorte é festejado em vida. Admiramos a obra que
produzem, mas jamais invejaríamos a vida que gerou essa obra.
São
os grandes solitários, os que brilham muito mas enxergam pouco. São números
primos: aqueles que só se dividem por si mesmos, e pela Unidade.