terça-feira, 21 de maio de 2024

5064) Sete tristezas (21.5.2024)




1
Saul Ormolov, segundo violino da Orquestra Filarmônica de Cracóvia, 42 anos de idade, 23 de orquestra, é feliz na sua vida familiar e na sua profissão, mas cultiva uma melancolia secreta em sua relação com Pavel Bednarek, 61 anos, primeiro violino da mesma orquestra. Os dois são amigos há décadas, as famílias têm boas relações, costumam convidar-se para jantar em casa duas ou três vezes por ano, e Saul costuma referir-se a Pavel como “o meu mestre”. O sentimento incômodo na alma de Saul é o fato de que, embora Pavel o tenha incentivado e ajudado ao longo de toda a carreira, e tenha ficado do seu lado em algumas situações cruciais envolvendo emprego, salário, etc., é muito raro que Pavel elogie o seu modo de tocar e, mais ainda, que admita ter aprendido alguma coisa com quem ele próprio chama de “o meu melhor discípulo”. Não se trata de vaidade ou egocentrismo da parte de Saul, que no exterior e no íntimo é um indivíduo sereno e modesto. É que ele deve tanto a Pavel que experimentaria uma enorme felicidade se viesse a saber que em algum momento fez algo que satisfez o mestre, que deu ao mestre um certo orgulho do discípulo. Saul não gosta de ser o único que recebe e aprende, queria apenas saber que em algum momento ele também ensinou, ele também alegrou. 
 
2
O sucesso editorial não chegou todo de uma vez para Charlotte Reys Buchanan, que estreou com o romance Seventeen Days, eleito “melhor livro do ano” pelo Chicago Examiner, louvado pela crítica, mas com vendas modestas. Dois outros romances se seguiram até a sua explosão de vendas com Never My Love, best-seller do New York Times durante dois meses. Seguiram-se livros sempre aclamados, à razão de um por ano; mais de trinta milhões de exemplares vendidos, capas em revistas, novos prêmios (chegou a ser finalista do Booker Prize britânico em 2015), num total de 28 romances e seis coletâneas de contos. Entrevistada quatro meses antes de sua morte aos 80 anos, ela declarou: “Conquistei praticamente tudo que uma ficcionista pode ambicionar, e nada tenho a me queixar dos meus editores, do meu público. Uma coisa apenas me incomoda, é saber que o melhor livro que escrevi na vida foi o meu livro de estréia, e desde então não produzi nada que sequer se assemelhasse a ele.” 
 
3
João Luís Vallardo, 41 anos, de São Paulo, saiu de casa esperançoso naquela manhã, tão esperançoso que prometeu a sua filhinha Henriqueta, de sete anos: “Papai vai receber um pagamento hoje, e amanhã compra seu joguinho”. No metrô, rumo a Vila Madalena, arrependeu-se da generosidade, porque as dívidas eram muitas, mas depois desarrependeu-se, porque a filha era estudiosa e compreensiva, merecia um presente caso as vacas ficassem gordas. Ao entrar no escritório do Dr. Madero, este ergueu os olhos de um documento, ouviu seu relato sobre o serviço concluído há mais de uma semana, a espera do pagamento, e retrucou: “O senhor me desculpe, eu não combinei nada disso, pelo que entendi o senhor iria executar este serviço em troca do perdão daquela dívida.” João disse: “Isso foi proposto pelo senhor, eu não concordei, e enfim chegamos a um acordo de 10 mil reais, contra-entrega.” O homem cravou-lhe dois olhos como quem crava dois pregos, e disse: “Eu não me lembro dessa conversa. E o senhor faça o favor de se retirar.” De nada adiantaram quarenta minutos de dignidade ofendida, de tentativas de conciliação, de propostas de meio-termo, de raiva impotente; o outro disse, na cara de pau: “Eu não acertei nada disso com o senhor. Dona Lourdes, acompanhe o cavalheiro. Passe bem.” Ele retirou-se derrotado, trêmulo, estupefato, preso a um novelo de ímpetos homicidas, suicidas e incendiários. Caminhou a esmo pela Fradique Coutinho, Mourato Coelho, Teodoro Sampaio, Henrique Schaumann, Cardeal Arcoverde, Pedroso de Morais, Rua dos Pinheiros, Potiguar Medeiros, Avenida Rebouças... Chegou em casa coberto de suor e poeira, Henriqueta surgiu aos pulos e aos pedidos, ele a abraçou e disse: “Desta vez não deu certo, meu amor, papai não recebeu, o país está em crise.” 
 
4
A melancolia nos olhos verdes de Adrienne Lavalier, 22 anos, estudante da Sorbonne, moradora de Saint Germain des Près, tem como causa indireta sua paixão repentina e incondicional por Juvenildo Cardoso, 23 anos, percussionista, morador de Montmartre, depois que se conheceram ao longo de alguns shows de rock, mas tudo mudou quando foram pela primeira vez a um restaurante, e Juvenildo fez o que sempre fizera desde seus velhos tempos em Jequié, puxou a cadeira, sentou-se, já pensando em pedir uma bebida e depois uma comida, e só então percebeu Adrienne ainda de pé, junto à cadeira intocada, à espera de um gesto que não veio, porque Juvenildo não fazia noção do que se esperava dele. E depois que isso se repetiu algumas vezes, forçando Adrienne à humilhante concessão de puxar a própria cadeira, o amor, mais uma vez, foi para o espaço.   
 
5
Sobrou para o pobre do Dilsinho da Matriz, 20 anos, craque do passinho, fera do cavaco, compositor de futuro, tanto que fez parte da famosa “mesa da garagem”, na casa-bar de Mãe Carminha, onde numa madrugada eufórica de 2017 foi composto o samba vencedor “Braços Pro Céu”, que conduziu a escola G.R.E.S. Unidos de Vila Descalça ao histórico campeonato da Terceira Divisão carnavalesca, com o enredo “Ascensão e Queda do Padre dos Balões”. Ao receber uma cópia do CD, ainda quentinho do forno, ele leu: “Composição: Paulo Padeiro, Misael Clemente, Odorico 7mbro, Luís Manuel, Rafa de Militão, V. J., Camaçari, Peu Peu e Dentinho.”  Com timidez e angústia ele questionou: “Não botaram meu nome? Aquele verso ‘Chora meu povo / sonha de novo / e faz de conta que existe o Carnaval’ não é meu?! Letra e melodia?!”  Camaçari coçou os dreads, constrangido, e explicou: “Sim, sim, mas, essas coisas, você sabe como é. Já tinha gente demais.” 
 
6
Sandro Maciel, 72 anos, inteiro de corpo, leve de espírito, teve uns perrengues de saúde, mas coisa leve, levinha, nada comprometedor, mas mesmo assim sua esposa Dona Lindalva, 66 anos, baixou uma Lei Seca de trinta dias, jogou todas as bebidas no lixo, jogou até o Álcool 70 do tempo da covid. Sandro tentou argumentar, foi racional, foi clínico, foi explicativo, tentou ser ameaçador mas definitivamente não era seu estilo, resignou-se com os trinta dias e deliberou aproveitá-los para finalmente ler “A Montanha Mágica”. Na primeira vez que Dona Lindalva precisou sair, ela fechou por fora as duas portas do apartamento no 18º. andar, segura de que o detento não teria chance. Mal ela se afastou, Sandro pulou da poltrona e começou a investigar rotas de fuga, solerte como um cão farejador. Por fim chegou à área de serviço onde havia uma janela estreita mas promissora, ainda coberta com a rede plástica do tempo em que Sandrinho, hoje casado e pai, era apenas um infante. Ele cortou os fios, estava em pleno processo de escapar para o poço do edifício e a platibanda que dava acesso aberto ao corredor dos fundos, quando escutou às suas costas a voz gélida da carcereira: “Pode descer daí, foi só um teste, e guarde as energias que hoje de noite você vai pagar seus pecados.” 
 
7
Maria das Graças Santana, 26 anos, graduada em jornalismo, era uma das mais entusiasmadas profissionais da equipe do portal de notícias A Voz da Serra, na cidade de Santa Marta do Norte. Elogiada pelo seu pique de trabalho, pontualidade, estilo fluente, ela sentia que o que lhe faltava para poder sonhar mais alto era uma grande reportagem, um furo, ou uma grande entrevista. Pensou ter chegado sua chance quando num evento cultural alguém a designou aleatoriamente para a mesa do Dr. Expedito Perlingeiro, 78 anos, cacique dos transportes públicos em Santa Marta, e este, em plena degustação de uísques duplos, botou-se de importante diante dos olhos azuis e arregalados da jovem, sem nem saber quem era ela, e contou com detalhes uma reunião-a-portas-fechadas que tivera na véspera com um Senador da República, de quem extraiu revelações desconcertantes sobre a política local. Maria das Graças voltou para casa às 2 da madrugada e só foi dormir às cinco, depois de publicar no portal as revelações estarrecedoras que ouvira sobre as atividades do dito Senador. Acordou às 9, pulou da cama com urgência para ver quantos acessos, e se deparou com uma curta mensagem do seu editor-chefe: “Gracinha, não sei onde você encomendou seu cérebro, mas quero lhe informar que o Senador é o financiador do nosso portal. Acorde, criatura”.