Um dos melhores elogios que eu já vi alguém receber foi
uma vez quando me convidaram para fazer parte de uma equipe de roteiristas que
estava sendo formada. Na primeira reunião, em torno da mesa, fomos todos
apresentados coletivamente. Este aqui é Fulano, vocês todos conhecem; este aqui
é Sicrano, vem de tal lugar, trabalhou com A ou B... E então o cara disse: “E
este aqui é Beltrano; pra quem ainda não conhece, é o cara que manja dos
paranauês.”
Se tivesse sido comigo eu já podia me aposentar depois
dessa, não é mesmo? Nenhum governo, porém, já destinou um estipêndio vitalício
para todos os sujeitos que humildemente “manjam dos paranauês.” No máximo, eles conseguem trabalhar mais do
que todo mundo, porque toda vez que rola uma dúvida todos recorrem a ele.
Manjar dos paranauês é ser aquela pessoa a quem vêm ser
feitas perguntas essenciais. Isso pode? Isso não pode? Isso está certo? Quem
foi Fulano de Tal que é tão falado? Quem foi esse cara aqui? Isso foi assim
mesmo? Não vejo nada de mais nisto aqui, então por que todo mundo diz que é
genial?
Essa utilíssima expressão tem origem nebulosa, por isso
redatores desparanauesados a trocam por “expertise” ou congêneres. Paciência.
Tem gente que só entende um conceito se ele estiver trajando terno importado:
expertise.
É a palavra brasileira que eu queria investigar melhor.
“Paranauê”. Que diabo é paranauê? Pra mim é aquele refrão recorrente dos cantos
de capoeira. De vez em quando tem uma dúzia de rapazes e moças, vestidos de
branco, dando seus rabos-de-arraia ao anoitecer, na esquina da General
Glicério, ou na pracinha da maternidade, ou no Largo do Machado... “Paranauê!
Paranauê, paraná!”
Virou um refrão hipnoticamente repetido na canção famosa
que é o “Maracatu Atômico” de Jorge Mautner e Nelson Jacobina, revivida nos
anos 1990 por Chico Science e a Nação Zumbi.
É uma palavra brasileira? Fica próxima de Pará, Paraná e
“anauê!”, mas é bem capaz de ela ser assim não por causa de Geografia ou
História, mas por mera sonoridade. Porque
na hora de cantar, inclusive, a gente manda qualquer coisa que venha à cabeça.
A música de Mautner, por exemplo, eu só canto “anamauê”.
Tem horas que ela me lembra “parangolé”, celebrizada por
Hélio Oiticica. Claro que o artista não inventou a palavra: colheu-a na rua,
que é o jardim das palavras novas. Parangolé é sinônimo de qualquer-coisa,
esse-troço-aí, geringonça, trem-de-mineiro... É uma palavra-ônibus pitoresca e
des-semantizada, mas com uma riqueza mórfica e etimológica que permite pendurar
ali idéias várias.
Um termo que teve uma voga danada a partir dos anos 1970
foi “parafernália”, palavra que designa um conjunto de seja lá o que for; um
“guarda chuva” capaz de designar toda uma parafernália de coisas. Foi muito
usada em títulos, era tão usada quanto “narrativa” é hoje.
Não podemos esquecer que para é um prefixo às vezes limitador do que se segue. Paramilitar é
uma forma não-oficial de ser militar. Paraliterário envolve aquelas literaturas
que não são bem consideradas literatura, porque são muito ao gosto das massas.
A parapsicologia lida com assuntos muito mais nebulosos do que os da própria
psicologia. “Para---“ é como um
crachá meio desqualificador.
Paranauê parece não sofrer disso. Não sei se é a
associação inevitável com a capoeira, mas eu não acho que essa palavra tenha se
formado já de cara com um prefixo grego.
Todo este trecho até aqui são as inevitáveis ruminações
que a gente faz quando está embatucado com uma palavra no metrô, ou no bar, ou
na padaria, e não pode estender o braço para consultar o manuseado tomo. Nem
fui a ele: bastou um gugolzinho de consulta ao Supremo Manjador para ficar
sabendo que vem de Paraná, sim, mas não o nome do Estado, e sim a palavra
“paraná” em si, que significa rio, sendo “auê” uma saudação. Auê, paraná! Ave, rio!
O interessante é que o termo demonstra ser de origem
indígena, mas acabou indo morar no mundo africano, aparecendo em numerosos
cânticos e refrões da capoeira.
Manjar dos paranauês é entender de um assunto,
principalmente um assunto que envolve atividades práticas. É saber o suficiente
para não se preocupar com um milhão de pequenos detalhes, mas saber exatamente
quais são os pontos onde não é permitido errar, e mantê-los como objetivo.
Assim como o capoeira aprende a usar o próprio peso para se libertar do próprio
peso, o manjador resume mil perguntas numa só, que realmente importa, e basta
respondê-la de maneira cabal para neutralizar todas as demais.