quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

4661) Leituras de 2020 -- parte 4 (6.1.2021)



O melhor livro sobre cinema que li este ano não é um ensaio, é um romance metalinguístico: Suspects (1985) de David Thomson. O livro foi traduzido no Brasil (Marco Zero, 1992, trad. Luiz Eduardo Mendonça). O gimmick metalinguístico é o seguinte: Thomson fez uma seleção de 58 filmes, geralmente do gênero “policial noir”, e conta a vida inteira de personagens extraídos desses filmes, revelando muito mais sobre eles do que a gente poderia imaginar, e criando uma trama de crime em que todos estão envolvidos. A prosa de Thomson é excelente, e nem é preciso ter visto os filmes para apreciar a sutil arquitetura de crimes, traições e conspirações com que ele amarra títulos que vão desde O Iluminado de Kubrick a Casablanca de Michael Curtiz, desde Rebecca de Hitchcock até Pacto de Sangue de Billy Wilder.
 
Aqui, comentei o filme com mais detalhes:
 
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/06/4593-os-habituais-suspeitos-2562020.html
 
Algumas das minhas leituras mais demoradas não são de romances, mas de livros de ensaios – livros que por sua própria natureza abrem transversais de consulta que fazem o leitor avançar devagar, porque a cada página surgem nomes ou temas que despertam nossa curiosidade.


Daí a minha demora em terminar o extraordinário Phantasmagoria (2006) de Marina Warner. Como descrever esse livro? É um ensaio sobre as múltiplas formas de visualização do imaginário, aqui incluído o mundo sobrenatural. Cada capítulo aborda um tema: “Cera”, as máscaras mortuárias, representações de santos, museus de cera; “Ar” e “Nuvens”, o espaço aéreo conforme representado nas lendas e nas artes plásticas como o meio onde se deslocam criaturas etéreas; “Luz” e “Sombra”, os recursos ópticos que produzem imagens (lanternas mágicas, etc.); “Espelho”, os múltiplos atributos culturais do reflexo, do “duplo” etc.; “Fantasma”, as pesquisas para-científicas do século 19 sobre aparições de espíritos; “Éter”, a natureza das ondas (rádio, TV, etc.) e o modo como foram encaradas na literatura e na arte; “Ectoplasma”, uma discussão específica sobre essa polêmica “matéria de que os espíritos são feitos”; e “Filme”, o surgimento da fotografia e do cinema como um resultado de todo esse longo processo.
 
No ano que vem farei mais comentários, porque pretendo reler as 450 páginas da prosa culta e elegante de Marina Warner. 


Outra ensaísta com quem me identifico é Flora Sussekind, de quem este ano reli o precioso Cinematógrafo de Letras – Literatura, Técnica e Modernização no Brasil (Cia. Das Letras, 1987). Flora rastreia a presença das novas técnicas de criação e reprodução (fotografia, radiofonia, discos de fonógrafo, telefone, cinema, etc.) na literatura brasileira da época, incluindo aí a prosa de ficção, o jornalismo, a poesia, a crônica, as correspondências... É fascinante ver a enorme variedade de reações dos nossos escritores diante dessas novidades high-tech: surpresa, desconfiança, adesão entusiástica, desdém satírico, contemplação abismada...
 
Foi um livro que li em sua época de lançamento, pesquisando pistas sobre nossa literatura de FC, e relendo agora encontrei ali muitas das atitudes da época pós-Internet, esse misto de atração e repulsa que exercem sobre nós (que vivemos da mera palavra!) essas tecnologias aparentemente todo-poderosas.


Numa direção totalmente oposta, a do passado mítico e inatingível, vai outro livro que me parece essencial para quem pesquisar literatura fantástica brasileira: Esquecidos por Deus – Monstros no Mundo Europeu e Ibero-Americano (séculos XVI-XVIII) de Mary Del Priore (Cia. Das Letras, 2000). Como se sabe, é extremamente farta (e contraditória) a documentação sobre criaturas monstruosas encontradas nesse período por navegadores, viajantes e exploradores de recantos remotos do mundo. Numa época onde qualquer viajante se deparava com hábitos, paisagens, objetos, seres e rituais que não cabiam na sua moldura cultural, eram muito frequentes a má-interpretação, a confusão, o exagero, o ruído na transmissão de experiências, e assim por diante. (O exemplo clássico é a lenda do centauro: ao ver um homem montado num cavalo, coisa que não se praticava em seu país, alguém interpretou aquele ser como um monstro híbrido.)
 
Mary Del Priore comenta os monstros registrados pela História no quadro dos pressupostos zoológicos, religiosos e mitológicos dos homens que fizeram esses relatos. É também muito importante a rede de conexões que ela estabelece dentro da iconografia (é vastíssimo o repertório de desenhos e gravuras sobre essas criaturas monstruosas), mostrando como textos copiavam (=plagiavam) textos, gravuras copiavam gravuras, ilustrações de um manuscrito eram furtadas para ilustrar relatos de natureza totalmente diversa, etc.
 
Era um sistema de fake news onde nem sempre havia a intenção de mentir ou falsificar, e ocorria muitas vezes apenas o entusiasmo ingênuo de passar adiante uma informação sensacional cuja veracidade não era confirmada (e às vezes não podia mesmo ser). A história dos monstros é, na verdade, a história da imaginação dos que se dedicavam a eles.


Ainda nessa praia, tenho que registrar o obrigatório Fantástico Brasileiro – O Insólito Literário do Romantismo ao Fantasismo (2018) de Bruno Anselmi Matangrano e Enéias Tavares. É um levantamento precioso da literatura fantástica brasileira em suas vertentes principais (ficção científica, horror, fantasia), vendo suas origens em alguns pressupostos do Romantismo do século 19 e vindo até o momento atual onde os autores identificam “o Fantasismo”, nome que propõem para o movimento atual de autores que se movimentam com facilidade entre aqueles três gêneros.
 
Para quem quiser checar o estado contemporâneo da ficção fantástica entre nós, é um livro indispensável, pela quantidade de autores e obras que recebem avaliações breves mas objetivas. O folclore, a literatura infanto-juvenil, as entidades e os eventos; tudo isso recebe atenção e se articula à massa da obras literárias propriamente ditas. Obra de referência obrigatória, para ter sempre à mão, na estante.
 
Na literatura fantástica, li alguns romances notáveis este ano.



Exquisite Corpse (1995) de Robert Irwin (no Brasil, Jogos Surrealistas, Record, 1998, trad. Alda Porto) tem como tema o movimento Surrealista dos anos 1920-30, desta vez sob a ótica dos escritores e artistas de Londres, não de Paris. Robert Irwin é autor de The Arabian Nightmare (1983), um pesadelo fantástico no espaço interior da mente e do sonho, e de The Arabian Nights: a Companion (1994), o melhor livro de referência que conheço sobre As Mil e Uma Noites.
 
O romance usa o conceito surrealista do “amor louco” (“amour fou”), “amor de louco contra louca” como dizia Paulo Vanzolini, explorado por André Breton na poesia e Luís Buñuel no cinema. O narrador, Caspar, é um pintor londrino que se apaixona surrealisticamente por Caroline, uma secretária de mentalidade simples e prática. Esse casal impossível vive uma porção de aventuras até que Caroline rompe e desaparece; Caspar faz as bobagens de sempre, é internado num manicômio, mas vem a II Guerra, e os fatos se sucedem enquanto ele tenta abrir caminho num mundo mais fantástico do que os quadros que pinta.
 
Irwin mescla seu romance com inúmeros nomes e pequenos fatos reais. Caspar e os outros artistas da “Serapion Brotherhood” soam autênticos em seu surrealismo meio ingênuo, meio suicida. As experiências de Caspar numa viagem à Alemanha nazista fazem um paralelo incômodo entre o Reich e o Surrealismo, dois movimentos que brincaram de maneira um tanto imprudente com energias negativas profundas.


Também inglês mas mais alegre, lúdico e cheio de vitalidade é Nights at the Circus (1984), de Angela Carter, uma escritora de quem se pode pegar qualquer livro de olhos fechados e ler com os olhos bem abertos. É a história de Sophie Fevvers, uma mulher alada que trabalha num circo (sim, ela tem asas e voa de verdade), e do jornalista que ao entrevistá-la (na primeira parte do romance, 90 páginas de uma narrativa brilhante que transcorre ao longo de uma noite) se apaixona por ela e literalmente “foge com o circo”. Há tradução brasileira (Rocco, 1991, trad. Claudia Martinelli).
 
Mais comentários aqui sobre o livro de Angela Carter:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/09/4619-noites-no-circo-de-angela-carter.html
 
Muita gente não sabe que Salman Rushdie, o autor de Os Versos Satânicos, estreou com um romance de ficção científica, concorrendo a um prêmio oferecido pela editora Gollancz, dos livros amarelos de FC que tanto li na antiga biblioteca da Cultura Inglesa, na av. Graça Aranha. Ao que se diz (Wikipedia), o júri, formado por Brian Aldiss, Arthur C. Clarke e Kingsley Amis, elogiou o livro e recomendou-o ao prêmio, mas a editora não quis, porque a história não tinha nada a ver com o tipo de FC que eles queriam colocar no mercado.


De fato, Grimus (1975) é tudo menos uma FC convencional, e só pode ser relacionado ao gênero porque sua narrativa envolve imortalidade, viagem por universos paralelos (chamados de Dimensões Exteriores, etc.) e a existência de seres de outros planetas que se locomovem no espaço-tempo. Não importa. É uma narrativa de estrutura mítica, uma quest ou demanda onde um jovem índio norte-americano, Flapping Eagle, adquire a imortalidade através de uma beberagem (como o “imortal” de Machado de Assis) e depois sai pelo mundo à procura de quem possa desfazer o prodígio.
 
Rushdie tem o dom da prosa fluida, do humor sardônico, da imaginação lúdica; leitores de FC que costumam exigir coerência científica ou lógica devem passar longe deste livro, que é uma ótima aventura literária absurdista.

 
Numa outra ponta do espectro, registro o díptico Angels & Insects (1992), duas “novelas” de A. S. Byatt reunidas num só volume. (Há edição brasileira, Anjos e Insetos, Cia. Das Letras, 1994, trad. Celso Nogueira.) Em ambas, o fantástico e a ciência (no caso, a ciência do século 19) avançam às cegas e de mãos dadas. A prosa brilhante de Byatt mais de uma vez me despertou a vontade de ler seu clássico romance Possession (1990), que já vi no cinema.
 
A novela “Morpho Eugenia” fala de um jovem entomologista recém-chegado da África que se casa com a filha de um cientista ilustre, e percebe aos poucos ter entrado num ambiente de hábitos estranhos e inexplicáveis. “The Conjugial Angel” mostra um grupo de pessoas de meia idade que costumam realizar sessões espíritas e invocar as almas dos seus mortos. Uma das personagem é real, a irmã do “Poeta Laureado” Alfred, Lord Tennyson. Personagens históricos e fictícios, ectoplásmicos e de carne-e-osso se misturam nessa narrativa. Alguns trechos que acompanham a atividade mental da médium, Sophie Sheekhy, são notáveis na recriação puramente verbal de um estado alterado de consciência em que pessoas vivas e mortas parecem coexistir num mesmo plano de percepção mútua.
 
 
(continua nos próximos dias)