Escrevi dias atrás aqui no blog (“O Kafka da era digital”, 12 de abril, https://t.co/caAUYpuVoH) sobre certos resultados meio surrealistas do mapeamento digital via satélite. Naquele caso, era o modo como os rastreamentos de endereços IP de computadores, quando não têm sua localização geográfica corretamente identificada, são todos “jogados” para o ponto central dos EUA, uma região pouco povoada do Kansas.
Fiquei sabendo agora da existência
de um ponto parecido como esse, que os profissionais do ramo chamam “A Ilha
Nula” (“Null Island”). É um lugar
virtual, ou seja, não tem existência material mas é útil para a organização do
espaço em nossos mapeamentos; algo como a Linha do Equador, também fictícia.
(Digressão: Conta-se que nas Copas
do Mundo disputadas na Europa em 1934 e 1938, os jogadores da Seleção
Brasileira iam de navio, e ao se aproximarem da Linha do Equador algum
espertinho pregava um fio de cabelo horizontalmente nas lentes de um binóculo e
ficava mostrando a Linha, para o deslumbramento dos
marinheiros-de-primeira-viagem.)
Null Island fica no ponto
cartográfico chamado de 0°N 0°E, ou seja, zero grau de latitude e zero grau de
longitude, o local onde a Linha do Equador cruza o Primeiro Meridiano. É o
“zero cartesiano” do mapa-múndi, o centro de tudo. Este ponto fica no Oceano
Atlântico, no Golfo da Guiné. Como o mapeamento cartográfico serve para
orientar inclusive o mapeamento satélite-digital do GPS, é um ponto importante.
Precisa ser registrado. E como ali nada existe, é mar alto, colocou-se no local
uma bóia meteorológica, ancorada ao fundo.
Esse tipo de referência é usado em
sistemas mapeadores como Google Maps, Mapquest ou outros. É o World Geodetic
System 1984 (WGS84), usado pelo Departamento de Defesa dos EUA e pelo GPS.
Sempre que um endereço é digitado erradamente ou sofre algum tipo de
interferência que o torna inválido, o resultado apresentado aparece assim, “0°N
0°E”, ao invés de um endereço completo tipo: 7o 13’ 50” S 35o
52’ 52” O. (Esta é a localização de Campina Grande, por esse sistema.) E os geógrafos (ou sei lá quem) decidiram
projetar nesse lugar zero-zero essa ilha inexistente. A Wikipedia informa que
eles atribuem à Ilha Nula uma área simbólica de 1 metro quadrado, com uma linha
costeira de 4 metros lineares.
Tal como ocorria no exemplo do
Kansas, a Ilha Nula é considerada “um dos lugares mais visitados da terra”,
virtualmente, é claro, pelas centenas de milhões de resultados “0°N 0°E” que
milhões de computadores estão obtendo todos os dias.
O artigo que estou consultando
(aqui: http://tinyurl.com/z2ptrl9)
fala que essa localização se refere apenas aos cálculos geográficos segundo o
padrão do WGS84, mas existem muitos outros padrões, e o “ponto zero” de cada um
fica num local diferente do globo. Olha só que idéia ótima para cercar de
verossimilhança científica um lugar imaginário, daqueles dignos de figurar no The
Dictionary of Imaginary Places (1980) de Alberto Manguel & Gianni
Guadalupi.
(Digressão: este dicionário, aliás,
registra apenas os lugares imaginários da literatura, não os da ciência, de
modo que Null Island não figura nele. Existe apenas uma Land of Null, também
conhecida como Wisdom Kingdom, proposta no livro infantil The Phantom
Tollbooth (1962) de Norton Juster.)
E tudo isto daria um excelente
arrazoado técnico para situar lugares
imaginários como o Monte Analogue imaginado por René Daumal, num dos “romances
inacabados” mais inquietantes da literatura. Mas isso já é outra história.