Eu me lembro de que, ainda menino, ouvia minha mãe
comentar com outras pessoas um filme com um tema arrepiante. Um padre, no
confessionário, recebe a confissão de um assassino, que revela ter acabado de
matar uma pessoa. O assassino vai embora. A polícia investiga o crime. O padre
sabe quem foi; mas não pode dizer nada, porque o segredo da confissão, na
religião católica, é inviolável.
Depois, o enredo tem uma complicação a mais: a polícia
descobre que o homem assassinado estava chantageando o padre, por algum motivo.
Ele corre o risco de ser preso – e continua sem poder revelar quem é o
criminoso.
Somente depois vim a saber que esse filme foi dirigido
por Alfred Hitchcock; é A Tortura do
Silêncio (“I Confess”, 1953), com Montgomery Clift no papel do padre. Vi
esse filme agora, pela primeira vez. Eu sempre guardo alguma coisa dos meus autores
preferidos para ver um dia”. Quando eu estiver com 95 anos de idade, sempre
terei à minha disposição um livro “inédito” de Kafka, um disco “inédito” de
Gilberto Gil, um filme “inédito” de Scorsese. A velhice nunca nos privará de
estar vendo algo pela primeira vez.
A Tortura do
Silêncio foi mal visto pela crítica justamente por causa de sua premissa
central. A maioria das pessoas não “comprou” a idéia de que o padre tinha que
manter silêncio. Os católicos levam a confissão muito a sério, mas nem todo
mundo é católico, e a voz geral era: “Gente, custava nada dizer que quem matou
foi o jardineiro? O Papa ia absolver!”.
Isto nos conduz a um dos argumentos mais canhestros de
nossa avaliação de obras literárias ou do cinema. É quando alguém desdenha a
história, dizendo que ela não faz sentido, e somos obrigados a dizer: “Naquele
tempo era assim”. Os valores morais eram outros. As lealdades familiares ou de
grupo eram outras. As leis e proibições eram outras.
Muitas vezes somos forçados a explicar para alguém (pais
para filhos, professores para jovens estudantes) que aquela história não é
absurda, pelo contrário, aquele drama vivido pelos personagens era, na época em
que o livro foi publicado, um drama sério e real que pesava sobre as pessoas.
É mais trabalhoso do que explicar a leitores jovens o que
era orelhão, talão de cheques, aerograma, corso carnavalesco...
Hitchcock era um cineasta católico, muito influenciado
(tal como Federico Fellini, Luís Buñuel) pela educação religiosa que recebeu na
infância. Para ele, o drama do Padre Logan, em A Tortura do Silêncio, era um drama real.
A tortura de um indivíduo que conhece o autor de um crime
mas não pode revelá-lo já estava no filme anterior do cineasta, Pacto Sinistro (“Strangers on a Train”,
1951). Nele, um psicopata (Bruno) propõe a um tenista profissional matar a
ex-esposa deste, enquanto Guy, o tenista, deveria matar o pai de Bruno –
enquanto ambos garantiriam álibis invulneráveis para o dia do crime. Guy
recusa, horrorizado, mas quando sua ex-esposa de fato aparece morta ele não tem
como denunciar o criminoso sem parecer cúmplice.
(Montgomery Clift, como o Padre Logan)
Em I Confess, o
papel do Padre Logan coube a Montgomery Clift, um dos grandes atores de sua
geração, mas cujo estilo não se afinava com o do diretor. Hitchcock sempre
preferiu tratar os atores como se fossem bonecos, marionetes cujas ações,
gestos e expressões seriam cuidadosamente previstos num storyboard e depois executados diante da câmera. Clift era um ator
do método stanislawskiano. Procurava reconstituir a origem das emoções do
personagem, e precisava de uma razão psicológica para tudo.
Hitchcock dizia: “Eu pedia ao ator para que saísse do
prédio e olhasse para o alto, para que eu pudesse cortar para a imagem seguinte.
E ele dizia: Não sei se o personagem estaria olhando para o alto nesse
momento...”
O segredo da confissão é o grande “gancho” narrativo do
filme, mas nem constitui uma grande novidade. Na segunda parte do Dom Quixote, logo no primeiro capítulo,
Cervantes alude a um conto do folclore valenciano, em que um padre é roubado
mas o ladrão o força a jurar que jamais o denunciará a pessoa alguma. Algum
tempo depois, está o padre rezando a missa com a presença do Rei, e avista o
ladrão no meio dos fiéis. Rapidamente, ele conta para a congregação o que lhe
sucedeu, e virando-se para o altar declara:
Jurei não o dizer a ninguém, mas digo-o a vós, Senhor Deus, que não
sois homem nem mulher, e o ladrão está ali debaixo do púlpito.
E com isso o ladrão é preso, o dinheiro recuperado, e a
honra do prelado não sofre nenhum arranhão.