quinta-feira, 26 de junho de 2008

0427) Poesia e crise psíquica (1.8.2004)




(Fernando Pessoa fazendo um poema)


Comentei ontem nesta coluna episódios ocorridos com Augusto dos Anjos e Cole Porter, que em momentos de doença grave compuseram versos impecáveis. Uma espécie de crispação mental foi capaz de elevá-los a um estado alterado de consciência, a uma epifania criativa. 

Outro episódio curioso, e em alguns pontos semelhante, é narrado por Fernando Pessoa numa carta a Mário Beirão, em fevereiro de 1913 (“Crise psíquica”, em O Eu Profundo). 

Pessoa atravessava uma fase de atividade febril, escrevendo aos borbotões. Uma fase que ele denominava “crise de abundância”, em que a mão mal tinha tempo de registrar por escrito a cachoeira de versos que lhe brotava da mente. 

O poeta (que tinha fobia de trovoadas, desde a infância) voltava para casa certo dia, quando o céu carregou-se de nuvens escuras, e uma chuva pesada começou a cair. Tenso, angustiado com a possível proximidade de um ribombar de trovões, Pessoa apavorou-se e começou a correr para casa. Mas (como diria Veríssimo) deixemos que o próprio Fernando nos conte o que aconteceu.

“Atirei-me para casa com o andar mais próximo do correr que pude achar, com a tortura mental que você calcula, perturbadíssimo, confrangido eu todo. E neste estado de espírito encontro-me a compor um soneto – acabei-o uns passos antes de chegar ao portão de minha casa --, a compor um soneto de uma tristeza suave, calma, que parece escrito por um crepúsculo de céu limpo. E o soneto é não só calmo, mas também mais ligado e conexo que algumas coisas que eu tenho escrito. O fenômeno curioso do desdobramento é coisa que habitualmente tenho, mas nunca tinha sentido neste grau de intensidade.”

Eis o tal soneto, que ele intitulou Abdicação

Toma-me, ó Noite Eterna, nos teus braços 
e chama-me teu filho... Eu sou um Rei 
que voluntariamente abandonei 
o meu trono de sonhos e cansaços. 

Minha espada, pesada a braços lassos, 
em mãos viris e calmas entreguei, 
e meu cetro e coroa – eu os deixei 
na antecâmara, feitos em pedaços. 

Minha cota de malha, tão inútil, 
minhas esporas dum tinir tão fútil, 
deixei-as pela fria escadaria. 

Despi a Realeza, corpo e alma, 
e regressei à noite antiga e calma 
como a paisagem ao morrer do dia.

A história torna-se plausível quando vemos que o soneto, apesar de bom, tem todas as imperfeições de um improviso: repetição de palavras que se enfraquecem mutuamente (“braços”, “calma”), um primeiro terceto bem fraquinho, rimas óbvias. 

Existe no entanto uma coerência estilística na descrição desse Rei que se despe de seus atributos de realeza; e existe verossimilhança psicológica nesse percurso mental de quem foge às angústias e às batalhas da vida real para regressar à paz dessa Noite simbólica. 

Que um indivíduo seja capaz de produzir um poema tão articulado enquanto corre na base do pernas-pra-que-vos-quero debaixo de um toró, é para mim uma prova definitiva de que todo momento poético é um momento de loucura sob controle.





0426) A epifania da criação (31.7.2004)

(Cole Porter)


Sempre acreditei que o momento da criação artística (tanto quanto o momento da criação científica, visto que os dois são essencialmente a mesma coisa) é um estado alterado de consciência, um momento de epifania em que todos os interesses de ordem prática recuam para segundo plano, e a mente focaliza-se com toda sua energia naquela idéia que está brotando e desenvolvendo-se. São momentos raros, decerto. A maior parte da criação artística é pedestre, sofrida, e não se compara ao vôo de uma águia, e sim a um hipopótamo escalando uma montanha. Mas sempre me impressionou o fato de Augusto dos Anjos ter composto em seus últimos dias, febril, delirante, invadido pela pneumonia, um dos seus sonetos mais belos, “O último número”: “Hora da minha morte. Hirta, ao meu lado, a idéia estertorava-se...” Sim, mas mesmo estertorando-se compunha um poema de inquietante simbolismo filosófico – o conceito de Último Número é notável, ainda mais numa época em que poesia e matemática eram consideradas coisas incompatíveis.

Um artigo recente de John Lahr na revista The New Yorker comenta um episódio curioso na vida do compositor Cole Porter. Aos 46 anos Porter estava andando a cavalo num clube quando o cavalo tropeçou e caiu sobre ele, quebrando-lhe as pernas. Este acidente mudou a vida do compositor, que passou por numerosas cirurgias e nunca se recuperou totalmente, sendo forçado a usar muletas até sua morte, muitos anos depois. Sobre este episódio, Porter afirmava (e o seu biógrafo William McBrien achava difícil acreditar) que durante as seis horas em que ficou caído, esperando socorro, ficou trabalhando mentalmente numa das estrofes de uma canção que compunha na época, “At Long Last Love” (“O amor, até que enfim”). Os versos dizem: “Is it an earthquake or simply a shock? / Is it the good turtle soup or merely the mock? / Is it a cocktail, this feeling of joy? / Or is what I feel the real McCoy?” (“Será um terremoto, ou apenas um choque? É uma sopa-de-tartaruga legítima, ou uma falsa? Será que é só um coquetel, esta sensação de felicidade? Ou isto que eu estou sentindo é a-coisa-pra-valer?”).

Talvez num estado de tensão extrema a mente busque energias onde parecia não as ter; talvez o desespero, a dor física, desencadeiem no cérebro alguma compensação química que uma mente criativa seja capaz de utilizar como combustível para a criação. Em todo caso, o que é admirável é a decisão de criar, a decisão de, mesmo diante da morte certa (caso de Augusto) ou possível (caso de Cole Porter), concentrar o que resta de energia na composição de versos que, sem dúvida, já vinham sendo ruminados e planejados pelo poeta há algum tempo, como é habitual na criação literária. O momento de criar é uma epifania, um momento de iluminação íntima, um momento revelatório. O fato de versos serem produzidos em circunstâncias tão adversas não são um contra-senso: ele demonstra por A + B a excepcionalidade do momento da criação.

0425) Os “racconti” de Luis Fernando Borgerth (30.7.2004)

(Fernando Borgerth,
"Cinturão de Asteróides")


Alguns artistas plásticos se impõem à nossa imaginação pelo uso das formas, outros pela pesquisa de texturas, outros pela coerência cromática... Não prolongarei esta desnecessária enumeração. Prefiro dizer que tenho uma curiosidade especial pelos artistas cujas obras mostram uma dimensão que chamarei de “literária” à falta de um termo melhor. São “literárias” porque parecem contar uma história, parecem mostrar algo que aconteceu há poucos instantes ou que está a ponto de acontecer, parecem nos dar entrada num universo de lugares e criaturas muito distintos do nosso. Artistas cuja matéria prima são os seres e os eventos de um espaço-tempo vizinho ao nosso, mas puramente imaginário.

No carioca (radicado em Belo Horizonte) Luiz Fernando Borgerth existe esta coerência obsessiva, que se espalha por um espaço pictórico aparentemente inesgotável. A maioria dos seus quadros mostra cenas da vida cotidiana num mundo que, pela arquitetura, pelas roupas, lembra uma Europa medieval; parecem ilustrações de contos de Boccaccio, mas um Boccaccio dotado de um olho tão esperto e contemporâneo quanto um Ítalo Calvino. No catálogo da exposição individual que acontece em Belo Horizonte até 30 de julho, Eulalia Jorda-Poblet lembra os nomes de Bosch e Brueghel, e de fato o trabalho de Borgerth tem em comum com o destes o uso de um espaço amplo com dezenas de personagens que, em grupos de três ou quatro, dedicam-se a ações distintas, como que compondo mini-quadros dentro do quadro maior.

Só que Bosch e Brueghel, diz ela, são pintores invadidos por um senso de ameaça e de pecado ausente dos quadros de Borgerth. Obras como “Em Cinemascope” (2003), cheia de mulheres seminuas e de gente bebendo, ou “Folhagens” (2004), um matagal repleto de fadinhas igualmente nuas e álacres, podem evocar o “Jardim das Delícias” boschiano, mas o espírito que os governa parece mais próximo da inocência de certas visões de Chagall ou de Paul Klee, um olho meio infantil, ainda não corrompido pelo mundo, e que se dedica ao traço com a aplicação de um pré-adolescente.

Falei em conteúdo literário, e não sei por que me vêm à mente as “Fábulas Italianas” de Calvino, contos folclóricos recontados pelo escritor; ou os contos de Ray Bradbury sobre as cidadezinhas do interior onde basta chegar um circo ou um parque-de-diversões para que coisas extraordinárias comecem a acontecer. Há algo de histórias-em-quadrinhos nestes pequenos quadros (quase todos acrílico sobre tela, com cerca de 30x40cm), há algo dos anacronismos propositais de Moebius, algo das aparentes incongruências de Lewis Carroll... Imagens (infelizmente pequenas) dos trabalhos de Borgerth podem ser vistas em: http://www.murilocastro.com.br/expo/expo.php?expo=10. São pequenas polaróides de um mundo onde algo extraordinário está acontecendo, e se olharmos para elas por bastante tempo acabaremos nos transportando para lá e descobrindo o que é.