O pessoal andou comemorando alguma data relativa ao
cinema brasileiro, e isto induziu a Netflix a colocar na prateleira alguns
títulos clássicos. Dei-me o presente de rever Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963), que eu não assistia
de novo há décadas.
Por essas convergências naturais da História, os nomes de
Nelson Pereira dos Santos (1928-2018) e Glauber Rocha (1939-1981) foram sempre
“pronunciados com o mesmo fôlego” naquela época. Ao se discutir cinema feito no
Brasil, quem mencionava um tinha sempre que falar no outro, geralmente para compará-los,
e mostrar o quanto eram diferentes (e eram).
Ainda assim, foram grandes amigos e combateram juntos na
mesma trincheira. É curioso que em muitos movimentos de criação artística
surjam lado a lado dois artistas que servem de polos opostos, de pontos de
referência para atrair discípulos e seguidores. Nelson era o clássico, Glauber
era o vanguardista. Nelson era o herdeiro do cinema de rua Neo-Realista italiano.
Glauber era o contemporâneo do cinema de rua da Nouvelle Vague francesa. Nelson
era amigão de todo mundo. Glauber confrontava todo mundo.
E Nelson tinha um vínculo programático com a literatura
brasileira, uma espécie de missão auto-imposta de levar para a tela as nossas
grandes narrativas literárias. Glauber devorava literatura, era um fã confesso
de Guimarães Rosa e José de Alencar; mas não se dava o trabalho de adaptar
ninguém. As referências na tela eram muitas, mas as histórias eram só dele.
(Nelson Pereira dos Santos)
Nelson Pereira dos Santos, que teve uma carreira
profissional muito mais extensa, adaptou, entre outros, Machado de Assis (Um Azyllo Muito Louco, 1970), Guimarães
Rosa (A Terceira Margem do Rio,
1994), Jorge Amado (Jubiabá, 1987; Tenda dos Milagres, 1977), Graciliano
Ramos (Vidas Secas, 1963; Memórias do Cárcere, 1984), além de
dirigir trabalhos para TV sobre a obra de Gilberto Freyre e a de Sérgio Buarque
de Hollanda.
Muitos amigos meus tinham de Nelson a visão de um
cineasta meio conservador, tradicionalista. Pudera. Seu cinema era sempre
comparado aos delírios barrocos de Glauber, às anti-narrativas desconcertantes
de Julio Bressane, ao escracho udigrudi de Rogério Sganzerla.
Éramos jovens e impacientes por novidades, tínhamos
fascinação pelas experiências narrativas, pelos modos de narrar que estavam
nascendo ao mesmo tempo que a nossa consciência das formas narrativas. Queríamos
fragmentação, descontinuidade, incessantes surpresas, transgressões
inesperadas. Quanto mais doidice melhor.
O cinema de Nelson não era careta, nem alérgico ao
experimentalismo. Ele transformou O
Alienista de Machado de Assis num longo happening,
carnavalizando as ruas de Paraty em Um
Azyllo Muito Louco, 1970. Filmou a aventura de Hans Staden entre os
canibais brasileiros, em Como Era Gostoso
Meu Francês (1971), pedindo que a equipe técnica trabalhasse sem roupa,
para não constranger os atores. Criticado por muita gente, fez desde ficção
científica absurdista (Quem é Beta,
1972) até cinebiografia de dupla sertaneja (Na
Estrada da Vida, 1980).
Considerado por todo mundo um clássico, Vidas Secas, estreado em agosto de 1963,
é um filme que em seu momento deve ter sido tão surpreendente e inquietante
quanto o foi Deus e o Diabo na Terra do
Sol, quase um ano depois.
O livro de Graciliano Ramos é todo fragmentado em
episódios, tanto assim que ainda hoje se discute se é um romance ou uma
coletânea de contos interligados. É um desses romances que acompanham um grupo
de personagens não envolvidos em nenhuma “jornada do herói”, em nenhuma
“demanda”. Não estão cumprindo um arco
narrativo que se encerrará de forma triunfante no desfecho. Nada disso.
É o que eu chamo de “romance horizontal”, ou “romance ao
rés-do-chão”. Muitas coisas acontecem, mas não vão num crescendo, rumo a um clímax.
Apenas se sucedem. O filme de Nelson segue esse formato, com saltos às vezes
surpreendentes de um episódio para outro. E são esses episódios que ficam em
nossa memória, mesmo que um deles raramente conduza ao episódio seguinte.
Fabiano e a mulher falando ao mesmo tempo, num diálogo de
surdos. Fabiano a cavalo e encourado, quebrando mato na caatinga. A discussão
com o Soldado Amarelo, a surra na cadeia. A morte da cachorra. A morte do
papagaio. A morte da vaca. O encontro com os jagunços. O sofrimento para calçar
sapatos e ir à vila. Não há um vetor dramatúrgico necessário entre esses
episódios; são meio aleatórios, poderiam vir em qualquer ordem, pois não há um
Fim em vista.
Em mundos assim, habitado por gente a um fio de distância
da morte, o tempo apenas se prolonga, sem conduzir a lugar nenhum. Uma
fatalidade sublinhada pela simetria entre a primeira e a última imagem: a
família se aproximando durante vários minutos, sob o sol cegante, sob o rangido
angustiado do carro de boi; e no final afastando-se numa caminhada
interminável, do mesmo jeito, no mesmo sofrimento, como se todas as cenas
intermediárias não tivessem conduzido a coisa alguma.
Sempre se elogiou muito, e com razão, a fotografia de luz
estourada que Glauber Rocha e Valdemar Lima usaram em Deus e o Diabo... Ele já provém de Vidas Secas, com aquela brancura cegante. Um amigo comentou comigo,
há muitos anos, que ver Vidas Secas era como dilatar a pupila no oculista e
sair à rua no pingo do meio-dia. Luís Carlos Barreto (ótimo fotógrafo que
depois foi fagocitado por um produtor de grandes projetos) ajudou a criar essa
marca visual. O filme tem uma imagem encandeada, ofuscada por um sol imóvel e
branco; e faz contraste com o alívio da penumbra nos interiores, que só entende
quem já precisou se esconder daquele sol. Uma paleta xilográfica, talhada a
gume de faca, de pretos-e-brancos agressivos, retomada recentemente em Sertânia (2019) de Geraldo Sarno.
Um aspecto do filme que até hoje não me convence é a
escalação de Átila Iório para o papel de Fabiano. O ator parece tolhido,
bloqueado, preso numa camisa de força. Isso é ainda mais visível nas suas
interações com Jofre Soares e Maria Ribeiro, ambos vigorosamente integrados aos
seus personagens. Iório se esforça pra reproduzir a postura servil de Fabiano,
sua passividade embrutecida, mas os diálogos soam falsos, e nem se trata de uma
questão de sotaque nordestino. São falas decoradas e aplicadamente repetidas,
mas são falas sem vida. O ator é mau? De jeito nenhum: logo depois deste filme
ele faria o que talvez seja o grande papel de sua carreira no cinema, o Gaúcho
de Os Fuzis (Ruy Guerra, 1964), onde
ele faz uso de seu vigor físico, e de um jeito de falar escrachado,
provocativo, cheio de veracidade.
E assim é Vidas
Secas, uma sequência de episódios que se sucedem sem parecer que avançam
nem no tempo nem no espaço. Uma noite de folguedo de bumba-meu-boi diante de
coronéis e autoridades. Sinhá Vitória contando despesas e ganhos com o auxílio
de caroços arrumados no chão. O fazendeiro rude (Jofre Soares) à mesa, pegando
no dinheiro e na comida com a mesma mão. Os animais tratados com brutalidade
desnecessária. A criança fatigada pela caminhada deita-se no chão, e o pai
exclama; “Anda, condenado do diabo!” (uma exclamação tipicamente de
Graciliano).
E o menino que pergunta à mãe o que é inferno, fica
sabendo que é um lugar ruim, e fica olhando em volta e repetindo: “Inferno.
Inferno. Inferno. Inferno. Inferno.”
Como no verso terrível de Cruz e Sousa ("Pandemonium").