quarta-feira, 12 de junho de 2024

5071) Uma volta em "Avalovara" (12.6.2024)




(Primeira edição, Ed. Melhoramentos, 1973)
 
 
Sou, nessa hora, a partir dessa hora, a foz terrível das coisas, o ponto ou o ser para onde converge, com suas múltiplas faces, o que o homem conhece, o que julga conhecer, o de que suspeita, o que imagina e o que nem sequer lhe ocorre que exista. 
(Avalovara, 1973, p. 135)
 
Neste ano está sendo comemorado o centenário de Osman Lins (1924-1978), autor de uma obra que não se encaixa com justeza em nenhum gênero ou corrente literária. Estou aqui terminando a leitura de Avalovara, o romance que o projetou para o grande público e que o levou a ser traduzido em várias línguas. 
 
É um romance complexo, com uma linguagem elevada, rebuscada, mas belíssima, e narra, basicamente, os três casos amorosos do narrador, Abel, com três mulheres: na Europa, durante uma viagem; no Recife, sua terra natal; e em São Paulo, a cidade onde escolhe viver.  Um trajeto semelhante ao da biografia de Osman. 
 
A imensa maioria das críticas sobre este livro se detêm em alguns detalhes cruciais: uma espiral, um quadrado, um palíndromo com 5 palavras de 5 letras, uma personagem cujo nome é um mero sinal gráfico... São alguns dos artifícios estruturais usados pelo autor. 
 
Já existe uma boa bibliografia sobre a obra de Osman. 
 
Um ótimo livro focado quase exclusivamente em Avalovara é o ensaio de Regina Dalcastagnè A Garganta das Coisas (Brasília/São Paulo: UnB/Imprensa Oficial do Estado, 2000). Uma leitura inteligente e útil, inclusive por trazer um glossário de nomes próprios e uma cronologia interna da narrativa (que é cheia de idas e vindas). 
 
Uma boa biografia é a de Regina Igel, Osman Lins – Uma Biografia Literária (T. A. Queiroz, 1988), que fornece uma boa base informativa sobre a vida do autor, fazendo, sem exagero, paralelos entre sua vida pessoal/profissional e os seus livros. 
 
São dois bons pontos de partida para se começar a estudar a obra de Osman, que é grande e variada: quatro romances, dois volumes de contos, peças de teatro, numerosos volumes de ensaios e artigos, roteiros para televisão. Sem falar nas várias coletâneas de artigos, acadêmicos ou não, dos muitos pesquisadores de sua literatura. 



Osman Lins usou como ponto de partida para Avalovara o palíndromo Sator Arepo Tenet Opera Rotas – uma frase clássica que serviu de base também para o filme Tenet (Christopher Nolan, 2020), uma aventura de viagem no tempo. As oito letras que compõem o palíndromo (S, A, T, O, R, E, P, N) sugeriram ao autor criar oito linhas narrativas diferentes, que se entrelaçam de acordo com o movimento de uma espiral no quadrado mágico. 
 
Eu não devia fazer os comentários que se seguem, porque eles acabam sendo uma espécie nova de spoiler. São aqueles comentários prévios que assustam o leitor, “espantam a caça”, fazem a pessoa pensar que o romance de Osman é uma espécie de problema de álgebra a ser resolvido. 
 
Não é nada disso! O leitor ganharia se pensasse apenas que são oito contos entrelaçados, contos que voltam, de forma recorrente, como se o autor quisesse contar oito histórias ao mesmo tempo, pulando de uma para outra ao acaso. (Não é ao acaso – é de acordo com uma regra – regra que o leitor não tem a menor necessidade de saber, para poder fruir o livro.) 
 
Lembrei do comentário modesto e sensato do tradutor norte-americano Gregory Rabassa, que verteu o livro para o inglês. Em sua memória If This Be Treason: Translation and Its Dyscontents [sic] (New York: New Directions, 2005), ele diz (trad. BT): 
 
Aqui está um livro que merece uma segunda leitura. Na segunda vez em que percorri o texto, percebi o que estava acontecendo, e vi com prazer que minha tradução tinha captado muitas coisas sem que eu soubesse ao certo, da primeira vez, o que significavam. Essa segunda leitura amplia o livro ao revelar suas verdadeiras dimensões. É o contrário de muita literatura chamada de pós-moderna, que ao invés de se alargar, ao ser relida, simplesmente murcha e é levada pelo vento. (p. 117) 
 
O comentário é bom porque reconhece que no livro de Osman existe um planejamento arquitetônico, mas também existe força, ímpeto, energia vital, entusiasmo fabulatório. Em algum momento do livro o autor emprega a imagem da jaula de metal tendo no seu interior uma onça ou pantera; é essa a dualidade do livro, de um máximo de disciplina geometrizante trazendo dentro de si uma energia vital ansiosa para escapar –  e escapando, frase por frase. 



 
Das oito linhas narrativas (todas detalhadamente indicadas no índice final do romance), “Roos e as Cidades” conta a paixão de Abel, quando viaja pela Europa, pela alemã Anneliese Roos, que ele conhece em Paris. Roos é distante, enigmática, meio desdenhosa às vezes. E é feita de cidades: olhando-a, Abel vê nela uma reprodução da Europa, seus tesouros, mistérios, indagações, viagens, um mundo a ser descoberto: 
 
Roos... Nunca vimos o quarto nem o país do outro. Conhecemo-nos como soltos no mundo. Não sei que perfume têm seus vestidos no armário; de que modo arruma suas loções, seus cremes, que cor tem seu roupão de banho e em que posição ficam as sandálias, quando as descalça na hora de dormir. Muito menos sei como é o seu pai e em que trabalha. Se o sol, em Eltville, entra na janela do seu quarto pela manhã ou à tarde; se há, na vizinhança, algum pássaro ou cão que você ouça; se detesta o cão, se ama o pássaro. (p. 228) 
 
Dessas incompletudes é feita a curiosidade erótica e afetiva, e quando Abel volta a Pernambuco encontra ali Cecília, que trabalha como assistente social num hospital do Recife. O caso entre os dois ocorre em 1962-63, época do “Recife pegando fogo” com o governo Miguel Arraes e as Ligas Camponesas. A princípio ela também se esquiva a Abel, mas os dois acabam ficando juntos, quando ele por fim descobre que ela é hermafrodita. 
 
Nesta cena, ela está na casa da família de Abel, depois de um episódio em que os dois são espancados na rua: 
 
Suspicaz, Cecília nos espreita, as mãos cerradas. Vendo as duas velas acesas em frente ao oratório, pede à minha irmã: “Apague a lâmpada.”  Obedeço. Procuro no guarda-roupa um vestido nosso, antigo, leve e limpo, que lhe sirva. Ouço o grito. Um soluço? Soluço ou grito: vejo sem querer, à luz discreta das velas, o sexo duplo e dúbio de Cecília. Verso e reverso. Bainha e faca. (p. 263-264)  
 
O segmento dedicado a ela tem o nome de “Cecília entre os Leões”, e mereceu este comentário de Julio Cortázar, que leu o livro em francês e disse em 1983, numa carta a seu amigo Eduardo Jonquières: 
 
Me alegra que tenhas gostado tanto de Avalovara, porque mesmo que não o recorde em detalhe, ficou-me como uma grande experiência de leitura. Coisas como a imagem de “Cecília, rodeada de leões” perduram em minha má memória destes tempos. Penso às vezes que as coisas mais fortes que li nos últimos dez anos é a obra de dois brasileiros, Clarice Lispector e Lins; quase dá vontade da gente mergulhar no português em busca de outras coisas que por acaso existam.
(Cartas A Los Jonquières, Alfaguara, 2010, p. 546, trad. BT) 
 
A história com Cecília termina de maneira trágica (como a do país naquele momento) e Abel se refugia em São Paulo, onde encontra sua terceira amada – que não tem nome, é representada apenas por um sinal gráfico, e que chamarei aqui de ‘O’.



 
Esta é a personagem mais complexa, e a ela são dedicadas quatro linhas narrativas: “História de ‘O’, Nascida e Nascida” / “ ‘O’ e Abel: Encontros, Percursos, Revelações” / “ ‘O’ e Abel: ante o Paraíso” e “ ‘O’ e Abel: o Paraíso”.
 
É uma mulher de São Paulo, e dela se diz “nascida e nascida” porque “morreu” duas vezes: ao cair no poço do elevador aos 9 anos de idade, e depois, adulta, numa tentativa de suicídio com revólver. São duas mortes simbólicas mas que a transformam também numa pessoa múltipla, porque dentro dela continuam a viver as duas já morridas.
 
As duas outras narrativas do livro são meio afastadas do enredo principal. “A Espiral e o Quadrado” transcorre na Antiguidade, em 200 antes de Cristo, quando um comerciante romano de Pompéia promete a um escravo a liberdade se ele compuser um palíndromo dentro de um “quadrado mágico” – um frase que possa ser lida igualmente da esquerda para a direita e vice-versa, de cima para baixo e vice-versa.




E a última narrativa é “O Relógio de Julius Heckethorn”, também uma história de origem européia, cujo desfecho explode no Brasil. Um músico e relojoeiro constrói um relógio de pêndulo cujo mecanismo, a cada hora, toca um trecho de uma peça para cravo de Scarlatti ( a Sonata em Fá Menor, K 462). O mecanismo é concebido de tal maneira que cada trecho da peça musical é tocado isoladamente, mas com o passar do tempo eles irão se conectando, se superpondo, até que num momento futuro, e só nesse momento, a peça será executada por inteiro – e isto coincide com o clímax do romance.
 
Não me preocupo com este tipo de spoiler porque, como observou Gregory Rabassa, ler este livro pela segunda vez duplica o prazer, porque somente agora enxergamos todos aqueles detalhes, sabemos para onde estão conduzindo, sabemos o peso e a função de cada elemento aparentemente secundário ou banal. E isso duplica o poder revelatório da escrita, fazendo o leitor sentir-se no papel de um leitor onisciente, capaz de voltar no tempo e fazer com que aquelas pessoas voltem a viver, a amar, a sofrer, a matar. A segunda leitura eleva aquele drama ao quadrado. E à espiral.