Estou por aqui, me entretendo com a leitura vagarosa de João Paraibano, o Herdeiro dos Astros
(Teresina: Gráfica e Editora Halley, 2016), coletânea de versos e de
depoimentos organizada por Ésio Rafael, Marcos Passos e Santanna O Cantador, em
homenagem ao grande repentista, amigo de todos nós, falecido em 2014.
Conheci João Paraibano por ocasião do II Congresso
Nacional de Violeiros de Campina Grande, em 1975, quando ele cantou duplado com
um dos seus parceiros mais constantes, Sebastião Dias. Naquele Olimpo de
repentistas no auge da arrancada para o sucesso, e que eu estava encontrando
pela primeira vez, João não se destacava. Era tranquilo, baixinho, meio tímido,
ainda mais jovem do que eu, e ficava em segundo plano diante de presenças mais
vigorosas.
Foi somente com o passar dos anos, a repetição dos
Congressos, e as noitadas em pé-de-parede que se prolongavam após as disputas,
que pude vê-lo cantar mais solto, mais confiante, agigantando-se por trás da
viola, ficando do tamanho dos versos que fazia.
No mundo dos cantadores existem várias divisões informais,
tipo “os que são isso, os que são aquilo”. Uma dessas divisões é: “Os que
cantam leitura, e os que cantam sentimento”. (Claro que qualquer bom repentista
canta as duas coisas; essa divisão aponta apenas a ênfase de cada um.) João era
um cantador de sentimento, de observação da natureza, de conhecimento das
minúcias da vida no sertão, da compreensão psicológica das atitudes do homem,
da mulher e da criança sertaneja.
O livro organizado pelos três poetas faz uma recolha
valiosa de grandes improvisos, grandes glosas e episódios pessoais, além de uma
série de testemunhos de amigos e parentes. João está inteiro ali, mesmo descontando-se a
tendência sertaneja para a hipérbole sentimental.
Meu parceiro Cavani Rosas, que naqueles idos de 1975
morava em Campina Grande e acompanhava os congressos de cantadores, fez a capa
e as belas ilustrações a bico-de-pena do livro, que traz ainda um “porta
retratos” de fotos de João, sua família, suas cantorias.
Muitos versos de João, para mim, surgem naquele
território poético da observação da natureza e da paisagem humana, dos
costumes, dos pequenos gestos das pessoas. Um simples registro, um flash, mas
numa concentração poética semelhante à do haikai japonês, capaz de em três
linhas evocar uma paisagem física, uma estação do ano, um momento de
introspecção e meditação por parte do poeta que observa.
Alguns versos de João Paraibano:
Ainda lembro do
cheiro
que minha mãe dava
n’eu
da cor da primeira
nota
que meu padrinho me
deu
eu não peguei com
vergonha
papai foi quem
recebeu. (pág. 120)
Veja-se a delicadeza psicológica
desse verso: o carinho materno misturado à lembrança de um momento em que o
menino é admitido no mundo adulto dos homens, onde circula o dinheiro. E o fato
do menino lembrar a cor da nota, não o valor. E a fluência dessas duas
expressões tão nordestinas: “cheiro”, “com vergonha” (=encabulado,
constrangido).
Quem vive numa
prisão
leva a vida no
desprezo
pede uma esmola a
quem passa
nas mãos um cigarro
aceso
pernas do lado de
fora
e o resto do corpo
preso. (pág. 98)
Aqui é a observação do
comportamento social. Em Campina Grande eu já morei vizinho à Casa de Detenção
(no apartamento que minha tia Adiza tinha na Praça Félix Araújo, no Monte
Santo). Esta é uma foto precisa de como os presos passavam o dia: sentados no
peitoril da janela gradeada, com as pernas para fora, e tirando onda, por cima
do muro, com quem passava na calçada.
Fiz capitão na
bacia
de feijão verde e
farinha
quando o angu tava
feito
mãe saía da cozinha
subia em cima da
cerca
dava um grito e
papai vinha. (pág. 49)
“Capitão” é o que na minha
casa chamavam de “raposa”: feijão e farinha amassados juntos na mão, formando
um bolo compacto para ser comido com a mão mesmo. E esse detalhe da mãe subindo
na cerca para gritar pro marido (no roçado) que o almoço está pronto só me
lembra uma cena de filme de Kurosawa ou de Andrei Tarkovsky.
Ao passar em
Afogados
diga a minha esposa
bela
que derramei duas
lágrimas
sentindo saudades
dela
tive sede, bebi uma
e a outra guardei
pra ela. (pág. 54)
Aqui vale mais uma vez a
delicadeza da imagem, a lágrima guardada para a mulher querida, como algo
minúsculo e precioso.
Meu passado foi
assim
comendo juá banido
o vento dando
empurrão
no lençol velho
estendido
com tanta
velocidade
que mudava a
qualidade
que a tinta dava ao
tecido. (pág. 123)
“Banido”, em nordestinense, é
“estragado” – juá é tipicamente uma frutinha que se esparrama com exagero pelo
chão, e as crianças acabam comendo qualquer um. A impressão visual da imagem do
lençol sacudido pelo vento é o que Ezra Pound chamava de “fanopéia”, a evocação
vívida, com palavras, de uma impressão visual. É uma variante e um
enriquecimento do famoso verso de Manuel Xudu sobre o pião “que roda na
ponteira / com tanta velocidade / que muda a cor da madeira”.
Vou pro meu sertão
antigo
pra ver tapera sem
centro
ver minha mãe na
cozinha
cortando cebola e
coentro
botando um prato no
pote
pra não cair mosca
dentro. (pág. 70)
Numa sextilha de rimas
limitadas (“...entro”), o poeta retrata com simplicidade a cozinha de casa de
sítio, o pote de barro com água num recanto. Geralmente coberto com uma tábua
ou bandeja, com copos emborcados em cima; mas João enriquece a imagem ao supor
um pote sem tampa que a mulher cobre mesmo assim com um prato qualquer.
Toda noite quando
deito
um pesadelo me
abraça
meu cabelo que era
preto
está da cor da
fumaça
ficou branco após os
trinta
eu não quis gastar
com tinta
o tempo pintou de
graça. (pág. 124)
Aqui, vale a naturalidade com
que “tinta” é rimado com “trinta”, e o tom grisalho (olha a fanopéia) é
sugerido pela “cor de fumaça” em contraste com o “preto”. O verso bom é o verso
simples em que tudo parece inevitável, parece que aquelas palavras sempre
andaram umas junto das outras, e mesmo assim se conjugam de repente para
produzir uma imagem pequena, mas nítida, concisa, memorável.