Um ditado popular afirma que “Exu matou ontem um pássaro
com uma pedra que jogou hoje.”
E por que não poderia? No meu entendimento, Exu é o
abridor (e fechador, quando lhe interessa) de caminhos, o portador de mensagens
ou de mercadorias. É o Hermes dos gregos e o Mercúrio dos romanos.
Uma de suas funções é de pegar alguma coisa em A e
transportar para B. É um viabilizador de procedimentos, como diria algum desses
geniozinhos corporativos de terno-e-camisa pretos e cabelo desenhado. “Exu
entrega,” garantiriam eles, eufóricos com a miragem de metas-de-desempenho.
Preciso desde logo deixar claro que, para mim, a discussão
sobre quem é Exu, e o que faz Exu, está em pleno domínio do simbólico e do
anímico, da imaginação personificadora. Eu não perco o sono imaginando se Exu
existe. Para mim, ele existe no mesmo plano de realidade que Édipo, Sherlock Holmes, Super-Homem, Dr. Who... É um personagem, um arquétipo, um ícone.
Não é algo em que a gente “acredita”, é algo que a gente
concebe, examina, usa para tirar conclusões, para imaginar variantes. A “imagem” de
cada um deles (“imagem” total, muito mais além da simples representação visual)
é como a senha de acesso para o desencadeamento de um processo criativo que
envolve memória, associação de idéias, imaginação, desejo, aceitação, recusa.
Exu é igual a porta, portal, porteira, ponte, passagem?
Tenho essa imagem meio esboçada na imaginação. Salvo melhor juízo, Exu pode ser
também um facilitador, um zangão do Detran, um coiote da fronteira Texas-México,
um guia-esperto-para-turistas-indefesos. Um removedor de coágulos. Um desengasgador de gargalos. (E, sempre, o
contrário disso tudo. Quando lhe convém.)
E, vejam só: por este raciocínio, Exu é um desembargador.
Porque esta palavra vem de “des + embargar”, e embargar é
“embarricar”, “criar barricadas”, “trancar com barras”, “encher de obstáculos”,
“impedir a passagem”. E, reversamente, desembargar é facilitar o fluxo, liberar
a via, dizer para a multidão: “Bora, pessoal – circulaaandooo!...”
E os nossos Desembargadores, é claro, são discípulos humanos
manipulando o poder do exuísmo. Embargam quem os incomoda. E desembargam quem
os favorece.
Exu é uma Rua da Passagem. Se Exu é personificação desse
conceito abstrato, isto significa que ele não é limitado, quando está em pleno
uso de seus poderes, pelas restrições normais de tempo, espaço e causalidade. Exu
é capaz de desafiar o fluxo unidirecional do tempo, e a própria Segunda Lei da
Termodinâmica.
A Segunda Lei da Termodinâmica diz que o Universo como um
todo está se encaminhando para uma morte térmica, uma dissipação irremediável
de energia, que ocorrerá quando todas as estrelas existentes tiverem consumido
o combustível nuclear que as alimenta. Não haverá mais pontos de fogo e de luz
no Universo, e ele se tornará um espaço indiferenciado, escuro e frio.
Exu acende um cigarro, bota os pés em cima da
escrivaninha, e argumenta: “Beleza, mas vamos lembrar que a Segunda Lei da
Termodinâmica, como qualquer outra lei, tem os seus pontos fracos, as suas
brechas, os seus interstícios. Dá pra negociar. Dá pra transgredir aqui e
ali... e escapar impune.”
Quebrar a flecha do tempo, para Exu, é besteirinha.
Ele se evade das restrições físicas de tempo e de espaço,
pulando para uma dimensão extra a que não temos acesso. Exu é como o cavalo do
jogo do xadrez – o único capaz de pular por cima das casas vazias e das casas
ocupadas por outras peças. Para o restante das “peças pedestres” do jogo, o
cavalo é um orixá mágico. Vejam só – ele está num ponto, e logo em seguida,
magicamente, sem ter transposto o espaço intermédio, aparece num ponto mais à
frente. Ou mais atrás.
O nosso conceito de tempo (nosso – seres humanos,
demasiado humanos, sujeitos à velhice, e Segunda Lei da Termodinâmica) se
parece com o dos peões do xadrez. Andamos somente uma casa de cada vez, e
sempre em frente, não podemos andar de lado, nem pegar uma transversal oblíqua,
e muito menos andar para trás.
O tabuleiro de xadrez é uma boa metáfora para o universo
onde convivem seres naturais (os peões = os humanos) e seres sobrenaturais (=as
outras peças) que podem ir de um lado para outro, transpor enormes distâncias,
ir para a frente (=o futuro), ir para trás (=o passado), cada um deles
submetido às suas próprias regras e limitações, mas com uma liberdade que nós,
meros peões, nem sequer imaginamos.
E o cavalo tem uma liberdade a mais que todos: a de
saltar usando os túneis de outra dimensão.
O tempo de Exu não é uma seta em direção perpetuamente
única. É uma espiral, onde ele vive
eternamente indo e voltando, consertando aqui, complicando acolá, voltando
atrás para resolver um problema, pulando à frente para retomar o caminho,
curando uma situação passada, correndo para evitar um efeito colateral futuro. Feito
aquele pessoal da escola de samba, que durante o desfile, enquanto a escola
avança como um rio vagaroso, fica correndo pra frente e pra trás, coordenando,
mandando acelerar, mandando segurar um pouco...
O tempo não é uma linha, pelo contrário, é um tabuleiro
de muitas dimensões onde Exu passeia dentro de sua própria jurisdição. Abrindo
caminhos. Transportando energia. Administrando trocas. Puxando a ponta de cada
elástico para gerar uma tensão-de-necessidade, um traslado de forças que deverá
ser cumprido.
Recebendo a bola rebatida pelos zagueiros e acionando os pontas-de-lança.
Exu não precisa necessariamente fazer o gol. Ele até prefere deixar isso para
entidades mais visíveis e famosas, que só fazem isso mesmo, empurrar a bola do Acaso
para dentro da rede do Destino. E que por isto ficam com a fama de Onipotentes,
de Resolvedores, de Supremos Poderes.
Que nada. Têm seu poder, sim, mas nada seriam sem a
costura incansável de Exu. Carregador de piano. E que, quando é preciso, faz a
ligação entre a defesa e o ataque, conduz de uma área até a outra; esconde a
bola, sem permitir o desarme; ou toca a bola de primeira, lançando vertical, em
profundidade.
Daí que lhe seja possível viajar no Tempo, mexer no
código-fonte dos acontecimentos, banhar-se de novo no mesmo rio, retroagir no
interior de um evento até transformá-lo no seu inverso.
Claro que Exu (ou qualquer ente capaz de viajar no Tempo)
não é onipotente, não pode executar tudo que desejaria; mesmo ele tem limites.
Mas ele obedece à seta do Tempo como nós, humanos, obedecemos à Força da
Gravidade, que funciona por igual sobre todas as coisas, mas que conseguimos
eludir. Porque afinal de contas somos capazes de erguer balões de gás,
foguetes, dirigíveis, asas-delta. Domesticamos forças capazes de contrabalançar
a atração da gravidade, e as usamos em nosso benefício.
Assim fazem os viajantes no Tempo: conseguem, de maneira
localizada, específica, contrabalançar a seta do Tempo e acessar, de maneira
limitada mas bastante útil, momentos específicos do futuro e do passado.
E conseguem voltar trazendo uma prova. Uma flor? Não; talvez um pássaro. Exu mata a ave e
mostra a pedra.