“Minha primeira revista literária foi na Paraíba. Eram os anos 1950, mas chegavam muitos contos pelo correio. Criamos um concurso, prêmios, sorteios. Por dois anos a revista se pagou, com venda e alguns anúncios. Um dia chegou um conto, 20 páginas bem datilografadas, papel meio caro, paramos tudo para examinar. Se fosse bom, ocuparia o espaço de dois contos padrão. Ficaríamos com um a mais em nossa reserva, que andava escassa.
“Li. Era meio americanizado demais. Rapaz entra na
aeronáutica, vai para a guerra a contragosto, no final é morto por um desertor.
Mas se passava no Brasil, era bem escrita, pedi a leitura ao saudoso Domiciano
Eiras. Ele ligou no outro dia. Tinha gostado, achou as paisagens da ilha
deserta o máximo, os piratas sensacionais, mas preferia que “no final ele e a
imperatriz ficassem juntos”. Eu tinha
pressa, desliguei intrigado. Ilha?
Imperatriz?
“Misael Lemos foi o terceiro a ler, e disse que era uma
história cavernosa e interplanetária, com monstros bizarros que em alguns
momentos o tinham assustado de verdade. Perguntei sobre o título. Ele
respondeu: “Parece uma indicação técnica, das peças do tempo de Shakeapeare.
‘Click’ é o sinal dado por um contrarregra, e depois o ator entra, e atua.” Era
citado na história, que era toda ela uma espécie de encenação.
“Misael mandou o conto
para o escritório de Formiga, editor-chefe. Falou que a gente tinha gostado,
mas não sabia se tinha entendido direito.
Na noite seguinte, foi lá, e Formiga falou: “Ambientada no Sertão do Rio
do Peixe seria uma ótima história de cangaço. Gostei das perseguições, das
cavalgadas.” Pousaram o texto na mesa sem discuti-lo: detiveram-se na língua do
título, que Formiga dizia ser em inglês, e Misael que o título tornava-se em
português em virtude daquele “e”, e as outras três palavras sendo meros
estrangeirismos não digeridos.
“A campainha tocou, chegou
a pizza que haviam pedido, e após o repasto os dois limparam a mesa, ensacaram
o lixo, fecharam a sala e foram tomar uma. Misael disse depois que pensava no
conto como um paradoxo divertido e intrigante. Formiga, envolvido com o
trabalho, só tentou procurar o datiloscrito dois dias depois. Remexeu a sala
uma manhã inteira até lembrar. A pizza, o lixo. O conto, seu envelope com
endereço e com o nome do autor, que nenhum de nós lembrava, estava, caso
existisse ainda, a caminho de algum lixão sanitário com milhões de toneladas
cúbicas.