quinta-feira, 28 de janeiro de 2010
1583) Janis e Joan (9.4.2008)
Foram as grandes damas do rock e da música folk, para a minha geração. Eram diferentíssimas entre si, foram contemporâneas, e até hoje não sei se chegaram a se encontrar pessoalmente. Em geral, quem era doido por uma delas olhava a outra com desconfiança, mas para mim, aos dezoito anos, eram as minhas Musas. Eu colocava seus elepês alternadamente, ouvia-os com a mesma paixão, acreditava, com a mesma intensidade, no que cada uma dizia. Quando cantavam seus males de amor, eu fantasiava que as estava recolhendo sob o meu braço protetor, e dando-lhes carradas daquele carinho de que tanto precisavam.
Janis Joplin era aquela contradição viva, uma branca que cantava como uma negra, rasgando a alma em tiras em cima do palco. Ela se queixava: “Faço amor com 20 mil pessoas durante três horas e depois volto para o hotel para dormir sozinha”. Era gordinha, branquela, sardenta, desajeitada. Tomava todas, provava de tudo. Não seria em hipótese alguma a garota que a gente gostaria de apresentar como namorada: “Papai, mamãe, esta aqui é Fulana...” Janis tinha aquele jeito escrachado e irreverente que ressurgiu anos depois em Cássia Eller, um jeito de bicho-do-mato difícil de domesticar. Ria alto, chamava nomes, escandalizava, cuspia no chão, coçava a mera hipótese de um saco. Cantava qualquer coisa, e quando cantava a música renascia, surgia pela primeira vez. Morreu de overdose aos 27 anos.
Joan Baez era o contrário disso, mas no mesmo patamar de intensidade. Tinha uma voz de soprano, cristalina, hipnótica. Quando começava a cantar, calavam-se, como nas lendas medievais, os pássaros nas árvores, as fontes nas colinas. O que tinha Janis de dionisíaca tinha ela de apolínea, sempre de branco, os cabelos negros muito longos e lisos, o perfil clássico de estátua grega. Era de ascendência mexicana, cantava em várias línguas. No primeiro LP seu que possuí, ela cantava “Muié Rendeira” e a “Bachiana no. 5” de Villa-Lobos. Era tímida, reservada, enigmática. Na música brasileira, seu jeito lembra o de Ná Ozetti. Preservava sua vida pessoal. Mas quem quiser a prova do estrago que Bob Dylan fez no seu coração, ouça “Diamonds and Rust”, composta para ele.
Falo das duas no passado, mas Baez ainda está viva, aos 67 anos, uma bela senhora cujos cabelos agora estão brancos e curtos. A voz, pelo que vi num especial de TV, continua a mesma. O mundo segue a ordem natural das coisas. Os dionisíacos queimam depressa, como uma lâmpada supervoltada. Os apolíneos queimam devagar como uma vela, cujo corpo diminui de tamanho mas a chama permanece a mesma. O olhar de Joan Baez revela hoje uma maturidade que parece sempre ter tido, e da qual ela precisa para aceitar o fato de que o mundo em que vive agora é o oposto do que sonhou um dia. Janis, neste mundo de hoje, seria muito mais feliz do que ela, mas explodiu cedo, o que para nós talvez não faça diferença, porque a luz que emitiu não dá sinais de arrefecer.
1582) Um crime imperdoável (8.4.2008)
Zezinho é operário da construção civil e gatuno contumaz, acostumado a dar-um-ganho nas posses alheias sempre que arranja um jeito. Trabalha no acabamento de edifícios, e não é raro que esteja finalizando um trabalho num prédio onde outros apartamentos já estão ocupados pelos moradores. No fim de uma tarde propícia, ele dá um jeito de ficar por último. Uma vez sozinho, pega uma gazua (ou cópia de chave, obtida em cumplicidade com o porteiro) e entra em algum apartamento cujos moradores estão fora. Pega coisas miúdas e cai fora. Seu grande golpe até hoje foi um notebook, que levou dentro de um jornal.
Uma noite, Zezinho fez a manobra habitual, mas teve azar. Estava no apartamento há poucos minutos quando ouviu a porta da frente se abrir e o dono da casa entrar. Pelo que o homem murmurava, Zezinho (que se escondeu rapidamente e prendeu a respiração) percebeu que ele trazia a filha semi-adormecida, que a deixava na cama de um dos quartos, e ia à garagem trazer o resto da família. Zezinho amaldiçoou-se pela falta de sorte, mas sabia que tinha alguns minutos para cair fora. Esperou o homem sair. Quando ouviu a batida da porta da frente, contou até vinte e saiu, pé ante pé.
Talvez tenha feito barulho, ou talvez a garota tenha levantado por algum motivo. Ela o viu passando no corredor, assustou-se, correu para a porta gritando pelo pai. Zezinho agarrou a menina, começou a bater nela; a garota chorava e chamava o pai. Desvencilhou-se dele e fugiu para o quarto. Zezinho a perseguiu, desesperado. Ele mesmo não lembra direito o que fez em seguida, mas depois de feito precisava ganhar tempo. A janela tinha uma tela de nylon. Ele a cortou com o que viu à mão. Enfiou por ali o corpo, deixou-o cair, achando que a queda atrairia todo mundo para o térreo. Saiu aos tropeções pela porta da frente do apartamento, e ao chegar às escadas ainda ouviu o elevador se abrindo e as vozes da família.
É absurda, minha história? Pode não ter acontecido, mas improvável não é. Por que até agora ninguém pensou numa história parecida com relação à morte da menina Isabela, dias atrás, em São Paulo? O pai e a madrasta da menina estão presos, e existe uma corrente-pra-frente, da imprensa e da opinião pública, querendo a punição dos dois. Talvez sejam culpados, por que não? Violências irrefletidas acontecem por aí, o tempo todo. Mas parece que, hoje em dia, a hipótese de um pai matar a filha dessa maneira é tão lógica, tão normal, tão previsível, que nem mesmo a hipótese de um suposto “Zezinho” (ou outra qualquer) é considerada. Espero que a polícia a esteja considerando, porque a imprensa em geral, até agora, já decidiu quem é o culpado (embora, escaldada, não o diga com todas as letras). É terrível o que vou dizer; mas de certo modo tenho esperança de que o culpado seja mesmo o casal. Porque se eles forem inocentes, o crime que está sendo cometido contra eles é tão grave quanto o assassinato de uma criança.
1581) Eu quero mudar o mundo (6.4.2008)
É um tique mental de nossa época. Todas as vezes que critico algo de errado, alguém diz: “Que é isso, rapaz! Você é um daqueles ingênuos que querem mudar o mundo?!” Claro que quero, sim, mudar o mundo, e não acho que seja ingênuo por querer isso. (Sou ingênuo noutras coisas; não nessa.) Querer mudar o mundo nunca foi ingenuidade, nunca foi utopia. Mudar o mundo não apenas é possível. É inevitável. Mudamos o mundo o tempo inteiro enquanto estamos vivos, enquanto estamos andando, agindo, falando, fazendo coisas. Optando, influenciando, interferindo.
Quando eu tinha dezesseis anos, a palavra de ordem era “mudar o mundo”. O cinema daquela época, a música popular, a literatura, o teatro, tudo que se fazia naquela época tinha como objetivo mudar o mundo. OK, nem tudo era assim – mas a parte mais significativa, mais inovadora, mais criativa e mais inteligente era assim. Todo mundo queria mudar o mundo. A expressão hoje na moda, “fazer sucesso”, já existia, mas era condicionada ao sucesso de cada um nessa tarefa, ou seja, à quantidade e qualidade de mudanças que cada um conseguia produzir.
Porque na verdade ninguém muda o mundo inteiro, instantaneamente, com um estalar dos dedos, uma batida da varinha-de-condão, não é mesmo? Os rapazes espertos de hoje, que só pensam em sucesso (leia-se: ganhar muito dinheiro), parecem supor que os projetos antigos de “mudar o mundo” buscavam isso – uma mudança tipo conto-de-fadas, um clique, um enter, um play. Pois olhe, naquele tempo não havia mudança que não exigisse esforço, trabalho, sacrifício; que não exigisse estudo ou preparação. O ideal de “mudar o mundo” não tinha a visão de hoje, quando tudo parece ser acessível e acessável, quando ninguém precisa nem saber ler para poder navegar, quando nem é preciso saber escrever para escolher o produto, basta levar até ele o dedinho do cursor e apertar o botão.
Estou sendo irônico com a cultura digital? É meu direito, porque foi minha geração, a dos cinquentões, que a inventou. Tim Berners-Lee, que inventou a World Wide Web, é mais novo do que eu; Bill Gates e Steve Jobs também. (Não digo isto para me gabar, porque além desse dado numérico não tenho muito a ver com esse pessoal.) Foram necessárias muitos milhões de noites em claro, simultaneamente, para criar os programas e protocolos que possibilitam a galera de hoje estar a um clique de distância do produto que querem comprar ou da foto de mulher pelada que estão procurando. (E, mais uma vez, não quero ser melhor do que ninguém – também compro produtos e olho foto de mulher pelada.) A poesia e o cinema talvez não mudem o mundo tanto quanto a informática e a política, mas mudam, sim, tudo muda. O mundo muda como o vento se move. Só é vento porque está se movendo, e só é mundo porque está mudando. Cabe à gente embarcar na mudança (que ocorrerá, queiramos ou não) e dizer: “Já que vai mudar, é pra mudar assim”. E mostrar como.
1580) Não aqui, mas agora (5.4.2008)
A Anistia Internacional promoveu há poucos anos uma campanha pelos direitos humanos que incluía uma intervenção vanguardista no espaço urbano. O conceito da campanha era: “Isto existe. Não aqui, mas agora”, e exibia atrocidades que estavam sendo cometidas naquele mesmo instante em outros lugares do mundo. Como se sabe, a Suíça é uma espécie de utopia do bom comportamento, um lugar onde tudo é limpo, tudo funciona, tudo é organizado, tudo é politicamente correto. Um lugar tão irritantemente bonzinho que mereceu de Harry Lime, o personagem de Orson Welles em O Terceiro Homem, a crítica arrasadora: “A Itália da família Bórgia só tinha tiranos e criminosos, mas nos deu as grandes obras de arte da Renascença, nos deu Leonardo da Vinci e Michelangelo. A Suíça é a democracia perfeita, e produziu o quê? Chocolate e relógios-cuco”. (O mais engraçado é que todo mundo atribui essa frase ao ator Orson Welles, que a pronuncia, enquanto ela deve ser de Graham Greene, autor do romance original e do roteiro do filme.)
A campanha consiste em painéis mostrando fotos de pessoas, em tamanho natural, superpostas a imagens que reproduzem com exatidão a imagem ao fundo (uma rua, um prédio, um parque) o que produz um efeito de “trompe l’oeil”. Imaginamos que o painel é transparente, e que estamos vendo pessoas que estão de fato ali. Assim, vemos prisioneiros encapuzados sofrendo tortura, adolescentes mal vestidos empunhando metralhadoras, um pai carregando nos braços o filho baleado, crianças esqueléticas catando restos de comida no chão... Como o fundo da imagem reproduz o fundo verdadeiro do local onde o painel está exposto, a impressão que nos dá é que houve uma ruptura do espaço-tempo e ali, naquela plácida calçada suíça, emergiu de repente uma criatura de Serra Leoa ou Abu-Ghraib.
É um exemplo de como se pode executar uma intervenção vanguardista num espaço urbano – desconstruindo o espaço, usando técnicas de “trompe l’oeil” e de camuflagem visual – e ao mesmo tempo produzir um choque ideológico, um choque político no observador. Critica-se muito a arte de vanguarda por ser esvaziada de conteúdo; a campanha da Anistia nos mostra o contrário. Ela mostra coisas que não existem aqui – no Aqui em que nos encontramos nós, transeuntes suíços – mas existe agora, neste instante, no mundo e no tempo em que vivemos. Por um desses cacoetes mentais que cultivamos, achamos que só é real o que acontece nas nossas proximidades, e que problemas existentes no Sudão ou no Haiti não nos dizem respeito. A campanha da Anistia traz para nosso Aqui (ou, pelo menos, para o Aqui dos suíços) o fervilhar de problemas de um Agora que nós e eles fazemos o possível para esquecer. Quem quiser, confira neste link esses cruzamentos fictícios mas reais entre o Tempo de todos e o Espaço de alguns: http://www.amnesty.ch/fr/actualite/news/2006/nouvelle-campagne-d-affichage-d-amnesty
1579) Grillet e o cine romance (4.4.2008)
Depois do sucesso de O Ano Passado em Marienbad, Alain Robbe-Grillet passou a ser disputado como roteirista por vários cineastas. Ele conta seu encontro com Michelangelo Antonioni. “Nós nos entendemos muito bem no começo,” diz ele. “Mas então eu comecei a descrever-lhe o roteiro que tinha em mente: Quando o filme começa, vê-se na tela...” Antonioni o interrompeu: “Conte-me a história. Eu resolvo o que se vê na tela”. Grillet conclui: “Mas isto era impossível para mim. Eu não sei pensar em termos de história. Só sei pensar no que alguém vê ou ouve”.
Antonioni era um cineasta da velha escola, sem muita capacidade fabulatória (para inventar histórias interessantes), mas dotado da capacidade de contar histórias alheias em imagens inesquecíveis. Quando Grillet se oferecia para fornecer as próprias imagens, surgia o impasse. Era como numa parceria em que Antonioni se dispunha a colocar música numa letra do outro, e o outro já lhe trouxesse a letra com melodia pronta.
A maioria dos obituários escritos a respeito de Grillet quando da sua morte semanas atrás referia-se a ele como alguém famoso nos anos 1960 mas hoje esquecido. Pode até ser que seus livros não venham sendo reeditados ou traduzidos; mas a sua linguagem infiltrou-se de forma pervasiva em toda a literatura de hoje. Onde quer que nos deparemos com a tal literatura “câmera + gravador”, ali está a marca do criador do Nouveau Roman francês. É cada vez maior na literatura de hoje a presença de autores com intensa memória ou imaginação visual, autores que com esse talento formatam todo um estilo de expressão.
Georges Perec, em As Coisas ou em A Vida Modo de Usar elevou ao quadrado essa veia descritiva de Robbe-Grillet. Perec tem uma riqueza verbal espantosa, e uma mistura de imaginação e memória visual que fazem dos seus livros uma das literaturas mais visuais do nosso tempo, em que ambientes, pessoas e objetos são descritos com uma excepcional eficácia. Para contrabalançar esse voyeurismo compulsivo, Perec é também um excelente inventor de enredos, de peripécias, de complicadas interferências da história do personagem A na história do personagem B, que por causa disto interfere em C, que interfere em D, e assim por diante.
O que salva a literatura de Grillet de uma monotonia insuportável é sua propensão ao mistério, que faz com que possa aplicar-se a boa parte dela o que ele diz da literatura de Raymond Roussel: “O mistério é um dos temas formais mais prazeirosamente utilizados por Roussel: procura de um tesouro oculto, origem problemática deste ou daquele personagem, ou de tal objeto, enigmas de toda espécie apresentados a todo instante tanto ao leitor quanto ao herói sob a forma de adivinhações, de charadas, de colagens aparentemente absurdas, alusões, caixas de fundo falso, etc.” Num mundo como o dele, em que tudo é intoleravelmente nítido, o mistério está nas conexões entre o que é visto, na razão de ser do que se fez presente.
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