segunda-feira, 8 de julho de 2013

3232) 10 Canções (7.7.2013)





(Sidney Miller, Brasil - Do Guarani ao Guaraná)



“O mundo é um moinho” (Cartola), tocando no rádio da prateleira do botequim quase deserto, na noite em que Vamberto fumou um maço de cigarros, tomou oito uísques e ligou onze vezes para o celular de Marlene, que só dava fora de área.

“Luzia Luluza” (Gilberto Gil), cantarolado quase toda tarde por Soninha enquanto vende ingressos na bilheteria de um multiplex, lembrando o primo que lhe mandou esse mp3 no dia em que soube onde ela passaria a trabalhar.

“Stairway to Heaven” (Led Zeppelin) cantado mais-ou-menos ao violão por um rapaz numa festa, e servindo de trilha sonora involuntária para algo que acontecia num terraço próximo. 

“Private Dancer” (Tina Turner), que quando tocava nas festas Mariinha botava pra quebrar nas coreografias, sem entender pirocas da letra.

“Alice’s Restaurant” (Arlo Guthrie), numa versão em português, fidelíssima e aparentemente integral, que Laércio escutou cantada no bar ao lado de um restaurante onde ele estava tendo a reunião de trabalho mais crucial dos últimos dez anos, e viajou na manhã seguinte sem nem saber quem era o cara.

“Puxando fogo” (Elino Julião), que lembrava a Carlos sua infância, quando seus pais tinham uma barraca de bebida e tiragostos, e de vez em quando, no domingo à noite, depois da saída do último freguês, eles botavam essa música, dançavam os dois na barraca vazia, depois desarmavam tudo e iam para casa na maior paz.

“Até pensei” (Chico Buarque), que tocava numa loja de discos, fazendo Adalberto parar para escutá-la por três minutos, findos os quais encontrou casualmente na calçada o Dr. Vieira que não via há anos e que depois de uma boa prosa acabou por oferecer-lhe o emprego de que ele tanto precisava.

“Rue Watt” (Boris Vian). Era (ele descobriu muitos anos depois) a música-tema, ou, como se dizia na época, “a característica”, do melodrama rádio-folhetinesco “A Bastilha do teu Coração”, onde sua mãe era locutora e atriz. Teve um choque quando ouviu a música durante seu doutorado em Bardologia.

“Na Emenda” (Trio Nordestino), impossivelmente escutado por Guilherme e Mariana em Amsterdam, da calçada, vindo de um terceiro andar de uma casa desconhecida, numa noite de inverno zero-graus, e que os consolou do frio, da distância, da nostalgia gastronômica e de alguns desencontros da alma.

“Pois é, pra quê?” (Sidney Miller), uma balada nostálgica e existencialista, puxada por um assobio estradeiro e um violão mínimo, cartum e litogravura cravando e certificando as arestas ásperas do espírito do ser, o recorte cruel das aparências pop, a gincana de colagens dos tropicalistas. A fotografia de um momento cheio de curvas, feita por uma mente que queria tudo entender.









3231) Rorschach (6.7.2013)




Este sobrenome evoca o criador dos famosos cartões com borrões de tinta que os psicólogos mostravam aos pacientes, pedindo uma interpretação. A primeira vez que ouvi falar neles foi num livro de FC da antiga Coleção Futurâmica, Pânico na Terra de L. R. Fanthorpe. Um capítulo inteiro, numa nave, mostra a psicóloga da equipe submetendo todos os oficiais a esse teste, e qualificando o resultado de cada um. Muitos desses borrões são simétricos, porque produzidos através de respingos de tinta num cartão que é depois dobrado sobre si mesmo, e desdobrado depois, exibindo as manchas.

Muitos anos atrás vi numa revista francesa de cinema, em algum lugar, a expressão “Glauber Rorschach” para se referir ao diretor baiano. A vantagem das imagens Rorschach é que elas permitem uma grande variedade de interpretações. Estas não são totalmente espontâneas. O borrão simétrico induz uma semelhança inconsciente com plantas ou com animais que têm esse tipo de estrutura.

O personagem chamado Rorschach na série dos Watchmen (roteiro para quadrinhos de Alan Moore, filme de Zack Snyder) tem uma máscara como um tecido branco cobrindo sua cabeça e seu rosto inteiro. Nessa superfície branca de tecido flutuam e deslizam manchas negras, num movimento perpétuo, como um protetor de tela escondendo o verdadeiro rosto de alguém. Talvez os borrões pretos no espaço branco reflitam o nosso moído mental inconsciente, que nunca cessa, nunca diminui, e nunca chega a lugar nenhum. Um holograma da mente humana.

E como é possível haver um tecido assim, por onde as manchas passem sem deixar rastro? Poderíamos estabelecer (quem é de FC pensa logo em algo deste jeito) que esse tecido é uma espécie de superfície polímera, recoberta de pequenas estruturas em forma de poliedro bidimensional (no caso, mais precisamente, em forma de hexágono). Cada hexágono-célula pode estar apagado ou aceso, zero ou um. Como ele está cercado por seis outros hexágonos, podemos estabelecer que o fato dele ser preto ou branco depende de cada condição momentânea dos seis que o limitam. Se em cada microssegundo houver em volta dele, por exemplo, cinco positivos e um negativo (ou seis positivos e nenhum negativo), positiva ela será. Se no instante seguinte as outras mudarem, ficando, p. ex., quatro negativas e duas positivas, a célula no centro desse círculo imediatamente ficará negativa. O estado de cada ponto luminoso dependerá dos que o cercam, mas nenhum deles controla o processo.

As manchas negras na máscara branca de Rorschach têm a imprevisibilidade estatística das tempestades, dos terremotos, de tudo que é tão grande que não pode ser previsto a curto prazo.


3230) Mostra a tua cara (5.7.2013)




A última vez que a Avenida Presidente Vargas e a igreja da Candelária ficaram daquele jeito foi no famoso comício das “Diretas Já”, que dizem que deu um milhão de pessoas. Não importa quantas foram. Nunca se vira tamanha quantidade. Mas no comício sobre a Emenda Dante de Oliveira havia um esforço concentrado e consciente vindo de cima, vindo das elites políticas, dos caciques partidários, dos notáveis com cacife para opinião política. Havia um sistema de som, um planejamento de mídia, e acima de tudo um palanque, onde oradores diriam mais ou menos o que se esperava que dissessem. Havia um centro.

Nada contra essa visão do mundo, só que é muito copernicana. O mundo não funciona de maneira tão simples. O fato de existirem criaturas e sistemas com aspecto de mandala não quer dizer que esse seja o estilo preferido da Natureza. Vai ver que às vezes ela se baseia em algoritmos químicos. Vai ver que às vezes se baseia numa eletromagnética binária do espaçotempo, e por cima dela um sistema retroalimentador e motoperpetuante chamado Vida.

A multidão não tem um centro pelo simples fato de que grande parte das coisas da Natureza não o tem. Suas características são outras. A multidão pode ser vista como uma câmara cheia de gás, lacrimogêneo ou não, onde é possível comprimir cada vez mais o gás e fazer suas moléculas, mais apertadas umas às outras, movimentaram-se num ricochete cego como o de bolas de pinball.

A multidão não é centro, é fatia estatítica de um Todo que é cada vez mais mapeado e investigado com fervor. Daí a importância de institutos de pesquisas e de coleta de dados porta-a-porta, algoritmos qualificadores, sistemas de amostragem mais sutis. Hoje a Presidente Vargas fica cheia e não se vê sistema de som, político ou palanque. Não existe Big Bang, não existe centro, não existe o Monarca de qualquer regime político. A multidão mostra que por baixo dessas Unidades aparentes o mundo é torvelinho perpétuo. Não tem rosto, tem coreografia e fluxo.

Cada avenida dessas, dura de gente (como se diz na Paraíba), é uma espécie de holograma onde está pelo menos um exemplo de cada elemento do Todo. Graças à rua estamos sabendo quem é isto ou aquilo, pelo menos no momento, já que as paixões políticas são tão intensas quanto passageiras. Olhando a multidão passar fica mais claro quem é contra ou  a favor de Dilma, quem repete slogan centenário, quem puxa hino, quem oferece caipirosca, quem mostra suástica, quem mostra foice e martelo, quem mostra cruz. Se o mundo fosse um lugar justo, coisa que nem sonha, cada um de nós poderia sair em praça pública e dizer quem é, sem medo e sem arrogância.



3229) Palavras difíceis (4.7.2013)





Um dos conselhos mais frequentes em cursos de escrita criativa ou em oficinas literárias é: “aumente o seu vocabulário”. O conselho é bom, mas às vezes mal interpretado. Muita gente folheia o dicionário ao acaso, procurando palavras que nunca viu, anotando-as e depois procurando um modo de encaixá-las num texto.


Devia ser proibido usar uma palavra sem tê-la visto, antes, nuns dez contextos diferentes. É o contexto que nos ensina o significado de uma palavra. Criança aprende a falar assim. Nunca vi uma criança de 5 anos procurar uma palavra no dicionário. 

Cem por cento do nosso vocabulário se forma via contexto. Uma variedade de contextos define uma palavra melhor do que qualquer dicionário. Aliás, os bons dicionários, mais do que somente definir, contextualizam o tempo todo.

Palavra difícil é aquela que a gente nunca viu antes. Para muitos leitores, o verbo “contextualizar”, usado acima, é uma palavra banal; para outros será uma palavra difícil, porque nunca a viram. 

Palavras de vocabulários específicos são sempre “difíceis” para quem não é do ramo: escanteio, sustenido, cacófato, ciberespaço, alínea, hipotermia, pirangueiro, sincopado, catraca, virabrequim, deletar... Ninguém nasce conhecendo essas palavras e algumas pessoas morrerão sem conhecê-las. São fáceis? São difíceis? Para alguns sim, outros não.

Usar palavras difíceis para fingir erudição é uma armadilha em que todo principiante cai em algum momento; é um tropeção inevitável em qualquer aprendizado. 

Algumas profissões, como as da área jurídica, se deixam aprisionar num jargão obscuro e pomposo. É como uma moeda que só tem valor num país pequeno. Quando esse cacoete irritante invade o terreno da comunicação (como o jornalismo) ou da arte (como a literatura) suas limitações ficam mais evidentes. A linguagem é para ser compreendida, e enriquecida, em medida equivalente, e sem parar.

Quando as oficinas literárias nos aconselham a aumentar nosso vocabulário estão sugerindo que usemos as palavras de maneira mais nítida, mais específica. Ao invés de dizer que Fulano vinha montado num cavalo, fica melhor dizer se era um alazão ou um baio.  Um boxeador nocauteou o outro com um soco, mas é mais interessante dizer que foi um gancho de esquerda. Se um personagem é mulher, o uso de termos específicos como balzaqueana, ninfeta, periguete ou matrona nos dá uma fotografia mais precisa da criatura. 

Cada palavra dessas vem carregada de contexto, carregada de conotações previamente acumuladas ao longo de muitos anos e de utilização intensa. Se você nunca viu a palavra, deduza pelo contexto e vá se acostumando. É assim que todo mundo aprende.