quinta-feira, 28 de novembro de 2019

4527) "Pelejas em Rede" (28.11.2019)





Uma das melhores definições de Cantoria de Viola foi produzida, por incrível que pareça, por um rapaz jovem, carioca, que estava vendo uma cantoria pela primeira vez. Ou seja – um leigo total.

Foi num bar do Rio de Janeiro, onde uma dupla de repentistas estava se apresentando, sentada no “pé da parede”, glosando motes entregues na hora, ou comentando em versos algumas coisas que aconteciam naquele instante.

E o rapaz falou para os amigos:

– Que maneiro. Eles fazem verso em tempo real.

“Tempo real” é uma dessas expressões típicas da Era da Internet, quando nós, deslumbrados como um tupinambá diante de espelhinhos e tesouras, achamos até difícil acreditar que estamos recebendo textos, imagens, áudios, o escambau, produzidos naquele instante, do outro lado do mundo.

O repentista faz o verso na hora. Não existe aquele delay entre o fato, a percepção do fato, o armazenamento da informação, a consulta, a inspiração, a criação de um verso, a transmissão, a recepção... Não. Cantoria é tempo real. O copo cai, e o cantador no meio do verso que já estava cantando comenta que o copo caiu.

Como ele faz isso? Não sei, se eu soubesse estava fazendo, em vez de ficar aqui escrevendo umas linhas que só vão ser lidas dias ou semanas depois. Ou seja: num tempo “não real”, num tempo em que o momento da criação (pelo artista) e o momento da fruição (pelo público) ocorrem em contextos diferentes.

A definição técnica, portanto, seria algo tipo:

“Verso em tempo real é aquele em que a invenção do verso e a fruição do verso ocorrem simultaneamente, sendo esta palavra considerada não no sentido cronométrico do termo, mas no sentido de um só momento compartilhado em conjunto por vários agentes sociais”.

Esse “vários agentes sociais” aí é cacoete do tempo de faculdade; se quiserem, pode trocar por “um combôi de bêbo”.

A Internet trouxe uma dimensão nova para a cantoria de viola, a literatura de cordel, a sambada de maracatu, o coco de embolada e várias outras formas de poesia onde o improviso está sempre aceso, pronto para brotar a qualquer instante.

Maria Alice Amorim, da Universidade Federal de Pernambuco, pesquisa essa nova ramificação da poética popular há tempos; tenho aqui do lado o seu No Visgo do Improviso, ou A Peleja Virtual entre Cibercultura e Tradição (São Paulo: Educ, 2008). Ali ela já rastreava em primeira mão essa nova modalidade, inaugurada, ao que tudo indica, com a Peleja Virtual entre Américo Gomes (PB) e José Honório da Silva (PE), travada através da troca de e-mails.


Segundo Alice, é “a primeira de que se tem notícia”, tendo ocorrido em setembro de 1997, “logo seguida, em 21 de janeiro de 1998, por outra experiência ainda mais ousada: a peleja, em tempo real, protagonizada por José Honório e o médico Marcelo Mesel, em computadores instalados num bar da Vila Vitoriano Palhares, Polo Torre, no Recife, com a participação de Américo Gomes, que naquele momento estava em João Pessoa, Paraíba, escrevendo os versos, mediado por uma conexão que possibilitava o bate-papo virtual”. A troca de mensagens, registra ela, foi através de chat via IRC.

Isso chamou a atenção de muita gente, e eu próprio travei pelejas via email com Astier Basílio (2002), com Klévisson Viana (2005) e depois via Facebook com Marco Haurélio (2017). 

O novo livro de Maria Alice Amorim é Pelejas em Rede: Vamos Ver Quem Pode Mais (Recife: Zanzar, 2019), onde ela aprofunda a análise dessa nova forma de embate direto, incluindo as modalidades do maracatu rural, do samba de matuto e outras, e lançando mão de plataformas como Orkut, Facebook, etc., que os poetas, sempre inquietos e curtidores, utilizam para sentir até que ponto elas podem potencializar o repente.

O recente filme pernambucano Azougue Nazaré (Tiago Melo, 2018) mostra rapazes da Zona da Mata de Pernambuco trocando provocações nas estrofes do maracatu rural cantadas ao celular e enviadas imediatamente através de áudios de WhatsApp.


(cena de Azougue Nazaré)

Onde houver palavra, existe a possibilidade da poesia. Onde houver troca de mensagens, existe a possibilidade do desafio. Onde houver a simultaneidade entre duas vozes e uma platéia, existe a possibilidade do repente pegado-na-deixa.

O livro Pelejas em Rede é resultado da tese de doutoramento da autora no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PucSP, sob a orientação da saudosa e querida professora Jerusa Pires Ferreira.

Alice faz a demarcação entre as cantorias de verdade, com dois violeiros cantando “ao pé da parede”; as cantorias fictícias da literatura de cordel, chamadas de “pelejas”; e as pelejas virtuais onde os poetas se confrontam através de twitter, msn, facebook, zap e assim por diante.

Em todas existe o cultivo das formas tradicionais de estrofe, de rima, de métrica – aquilo que podemos considerar as “cláusulas pétreas” do Romanceiro Popular Nordestino.

E cada uma delas está se deixando contaminar pelas formas de criação e difusão eletrônica do texto. Sempre tendo em mente o objetivo principal do poeta popular: buscar o verso quente, palpitante, exibido ao público no próprio instante de sua criação. E ela rastreia todas essas variantes etimológicas e semânticas que cercam a arte trovadoresca do improviso:

É o impulso criador que, na etimologia do trovadorismo, traz a invenção, o inventar. Invenção que é o improvisus, o imprevisto, o imprevisível. Improviso, evento imponderável, momentâneo, não ensaiado, repentino, conforme Spina (1946, p. 408) e Le Goff (2009, p. 280):

Os próprios termos trobar e trobamen não são mais que criações decalcadas no sentido das palavras latinas inventio, invenite – da terminologia retórica de Cícero, na acepção do ato inventivo, de atividade literária criadora (trobar suplantou desde logo o seu correspondente latino).

O termo vem de trobar em occitano, ou seja, trouver em francês (encontrar, em português), e define um inventor de palavras e poemas.

Ou seja, um trovador é um achador, um encontrador de coisas, seguindo a frase célebre atribuída a Pablo Picasso: “Eu não procuro, eu acho”.

Eu tenho pra mim que no meio desse novelo de raízes linguísticas o verbo “trazer” também está enredado. Trovar (fazer versos) é trazer. Me lembro na minha infância de ver as velhinhas do sítio que chegavam lá em casa mostrando a minha mãe o que haviam trazido de presente: “Eu truve pra senhora uma dúzia de ovos de capoeira...”

Maria Alice Amorim pega esse feixe de práticas culturais (a inspiração, o acaso, o imprevisto, a memória, o repente) e o transporta para o universo eletrônico. Sempre mantendo a essência da criação, que na página 163 o mestre José Alagoas explica com esta bela fórmula:

Começa no deserto, amarra o verso todinho e entrega a resposta. 

Olha que coisa bonita – começa no deserto. Começa do nada, mas logo está achando, está trazendo, está trovando, e quando menos espera está ali um verso que, como o Universo, surgiu do nada.

Num dos capítulos, Alice pergunta: Existe um ciberrepente?. Ou seja: o verso neste novo sistema é qualitativamente distinto do tipo de verso que se fazia antes? Tem muito assunto para se esmiuçar aí, mas ela observa com propriedade que nas próprias comunidades de repente pela web (portais e websaites com milhares de inscritos) repete-se um fenômeno de auto-regulação que é típico da poesia popular: quando um novato erra na métrica, erra na rima, quebra sem perceber o formato da estrofe, os próprios colegas vêm em seu socorro e o corrigem: “Êpa, não é assim que se faz”.

Conservadorismo? Que nada. Correção de rumo, porque na poesia popular não existe um Ministério, uma Academia Normativa ou um Conselho de Anciãos determinando o que pode e o que não pode. É a comunidade como um todo que se pronuncia. As formas tradicionais são constantemente revitalizadas – até mesmo para poderem absorver os novos meios de transmissão.










segunda-feira, 25 de novembro de 2019

4526) "Enfim, capivaras" e a sala de jantar (25.11.2019)




(Luisa Geisler)

Existem muitos tipos de censura. Tem a censura política, a censura sexual, a censura religiosa...00

E existe um tipo de censura que seria, digamos, uma censura comportamental. Proíbe-se um livro (filme, canção, etc.) porque nele as pessoas se comportam de uma maneira que a autoridade proibidora considera inadequada, ou usam uma linguagem inadequada.

Foi o que aconteceu há pouco tempo com a escritora Luisa Geisler, convidada para a Feira do Livro de Nova Hartz (RS) e desconvidada dias depois porque alguém da prefeitura local (patrocinadora do evento) achou que o livro dela tem “linguagem inadequada”.

No livro, Enfim, Capivaras, um garoto mentiroso alega ter uma capivara de estimação. A história conta as aventuras dele e de seus amigos, durante uma noite inteira, tentando achar uma capivara de verdade.

O problema não é político, nem religioso, nem sexual. É a atitude de “vamos proteger o jovem”.  Diz Luisa (“O Globo”, 14.11.2019):

Dentro disso, há personagens confusos sexualmente, relacionamentos mal resolvidos, álcool, salgadinhos e, claro, capivaras de gravata em carrinhos de mão. Os personagens falam como adolescentes falam. Usam gírias e palavrões. Não pedem “por favor”, nem dizem “obrigada”. Eles se xingam. Alunos me informaram que seus professores disseram que esse tipo de linguajar não pode existir em livros. Não é apropriado.

Jovens ouvem palavrão e veem comportamentos “inconvenientes” na televisão de casa, nas televisões da rua, no cinema, nas revistas, nos vídeos de seus próprios celulares. Mais do que isso: veem na vida real. Não é um livro que vai ensinar um adolescente a dizer “é bom pra caralho” ou “vai tomar no cu”. É a vida.

As autoridades querem poupar os jovens de ouvir frases terríveis como essas, mas proibir um livro não vai adiantar nada.

Milhões de jovens passam o dia ouvindo palavrão, mas não dizem palavrão porque não gostam de falar assim – e estão certos. 

Tem outros que falam, porque o palavrão os ajuda a expressar seus sentimentos – e estão certos também. 

Cada pessoa cria seu próprio estilo de falar.

Por outro lado, já vi argumentos no sentido contrário. Há professores, pais, etc. que dizem: “A rua já está um horror, uma agressividade enorme, todo mundo falando palavrão. Por que trazer isso para a literatura? A literatura é um espaço que deveria privilegiar os bons sentimentos, os bons exemplos, as boas lições.”

Quem quiser difundir o bom comportamento e os bons modos tem uma solução muito boa: basta escrever e publicar livros onde isso aconteça, sem a necessidade de proibir a leitura dos demais. Se, por essa lógica, basta um garoto ou garota ler um livro onde aparecem palavrões para começar a usá-los, pela mesma lógica basta ele(a) ler um livro onde os personagens falam linguagem educada para começarem a falar educadamente também.

A literatura não pode ser menos suja do que a vida real, menos violenta, menos conturbada, menos chata, menos qualquer coisa. A literatura é uma destilação da vida, mas não no sentido de pasteurizá-la, e sim no sentido de se tornar um “concentrado” de vida. Um concentrado onde numa gota (uma gota de 120 páginas, digamos) se encontra experiência suficiente de uma vida inteira.

Como diz a autora do livro:

Acima de tudo: o que tem na realidade dos jovens em escolas municipais hoje em dia? Muito mais do que palavrão e capivara. Quando vocês falam que uma linguagem mais informal não merece ser sequer lida, estão dizendo que o jeito que esse jovem fala é inferior, sem valor. Você fala que o rap não tem mérito como parte da cultura. A linguagem é plástica e complexa na sua completude; o mundo é plástico e complexo na sua completude.

Os livros são uma extensão da vida real. No dia em que inventarem um filtro impedindo que a vida real passe para dentro deles, eles serão impressos em branco.

A atitude de “vamos proteger a literatura” me lembra um dado social muito curioso que eu observo desde garoto, desde meus 10 ou 12 anos, quando eu era tão inocente que não dizia “puta que pariu”.

Nas nossas casas de classe média havia, e há, o costume de comprar móveis melhores para a sala de jantar: uma mesa grande de madeira escura e boa, às vezes toda entalhada; cadeiras de espaldar alto, na mesma madeira, combinando; uma cristaleira com frente e prateleiras de vidro, cheia de jarras, sopeiras, terrinas, pratos, taças, xícaras, talheres de boa qualidade.

A família comprava isso... mas não usava. Eu ia estudar na casa dos meus colegas e quando era convidado para almoçar ou jantar era na mesa grande da cozinha, que era onde a família comia diariamente. Às vezes eu perguntava pela sala de jantar, e me explicavam: “São móveis caros, coisas caras, só podem ser usados nas grandes ocasiões.”

Eu não sentia falta, porque me sinto super à-vontade numa casa onde as pessoas se reúnem na cozinha, comem na cozinha, conversam, bebem, riem, se divertem na cozinha. Acho super normal. Mas convivi muitos e muitos anos com esses amigos e ficava espiando com o rabo do olho para aqueles cadeiras soturnas, empurradas para baixo das mesas; para aquelas terrinas de porcelana, aqueles copos lindos onde ninguém bebia, aqueles pratos onde ninguém comia.

Não devíamos fazer a mesma coisa com a literatura.











sexta-feira, 22 de novembro de 2019

4525) Minhas canções: "Temporal" (23.11.2019)




Minha segunda música gravada, novamente por Elba Ramalho, foi “Temporal”, em parceria com Fuba, e saiu no terceiro disco dela, Elba, de 1981. 

Essa música foi um dos resultados de uma comprida temporada que fizemos eu, Fuba e Tadeu Mathias (dois dos meus parceiros musicais mais antigos, ambos de Campina Grande) no saudoso Teatro Lira Paulistana, em São Paulo, durante alguns meses de 1980. 

O teatro ficava num porão em frente à Praça Benedito Calixto, e era um epicentro da vanguarda paulista no começo daquela década: Grupo Rumo, Itamar Assumpção, Premeditando o Breque (que depois virou “Premê”)...


(foto: Teatro Lira Paulistana, num show da Gang 90)

Nosso show modelo 3-em-1 se chamava “Lá Vem a Barca”, em homenagem ao “Mote do Navio”, canção de Pedro Osmar (nosso mestre, do grupo Jaguaribe Carne, de João Pessoa) cujo refrão diz: “Lá vem a Barca / trazendo o povo / pra liberdade / que se conquista...”.

Minhas composições, as de Fuba e as de Tadeu eram de perfil bem distinto, mas como tínhamos músicas em parceria fazíamos alguns números em conjunto. Era um show de meia-noite, ou seja, depois do “show” oficial do Lira às 21 horas tinha uma pausa e às 12 em ponto começava o nosso show, que sempre contava com 30 ou 40 abnegados nas arquibancadas de madeira.

Quem nos levou para lá foi o jornalista Inimá Simões, meu amigo de longa data, e fomos imediatamente encampados pela equipe do Lira: o Gordo (Wilson Souto Jr.), Chico Pardal, Fernando Alexandre, Plínio, Riba de Castro. Não éramos um grupo de vanguarda, mas eles se divertiam pra valer com nosso repertório, que cada noite era diferente. Isso foi ao longo do ano de 1980; em 1981 eu voltaria ao teatro para fazer alguns shows, sozinho.


(Lira Paulistana -- maquete, por Riba de Castro)

Nessa fase do “Lá Vem a Barca”, terminávamos o show por volta das 3 da manhã e íamos para algum bar, geralmente um tal “Café Melodia” que não lembro mais onde ficava, e tinha cerveja e violão até amanhecer. Nessa época, surgiu esta canção, “Temporal”.

Não lembro mais quem veio primeiro, se a letra ou a melodia. Lembro que quando comecei a fazer a letra comentei com Fuba: “Rapaz, eu queria fazer uma letra surrealista tipo as de Zé Ramalho, eu acho uma liberdade fantástica você poder fazer letras como Chão de Giz ou Frevo Mulher, onde a imagem vale pela imagem, não precisa explicar”.

Zé Ramalho estava no auge do seu primeiro estouro de sucesso, com Avôhai e A Peleja do Diabo com o Dono do Céu.

E eu tenho uma tendência para letras muito explicadas, muito racionais, muito apolíneas, onde tudo se encaixa e tudo se explica. Talvez pela influência da cantoria de viola, onde é muito forte essa obrigação de fazer sentido – o que faz de figuras como Zé Limeira exceções extraordinárias.

E as estrofes foram saindo:

Quem viu a terra gemer
nos dentes brancos do mar
e a laje fria da espuma
a sete palmos do olhar
pisou nas curvas do mapa
os raios do sol nascente
tocou na corda da harpa
de aço incandescente.
Ôôô-ôô... Ôôô-ôô...

E por aí vai. Elba Ramalho ouviu a música, gostou, gravou. Não sei se porque concordou conosco que estava na faixa surrealista de Zé, ou se porque o sucesso da minha “Caldeirão dos Mitos” no disco anterior me deu credibilidade.

A melodia de Fuba para “Temporal” é superior à do “Caldeirão...”, mais sinuosa, com mais novidades melódicas. A letra pode não fazer sentido, mas é um exercício meio André Breton, de produzir imagens que valham como imagens apenas, sem pretensão de simbolizar nada, de ser alegoria de coisa nenhuma. E de gerar novas interpretações, sempre.

Algumas dessas imagens eram fragmentos visuais que eu tinha na memória e que não sei de ganharam força por escrito. Por exemplo:

               Eu percorri todo o sonho
no meio da madrugada
e vi plantações de balas
sementes das espingardas...

Isso era uma imagem meio Salvador Dali que eu pensava de vez em quando: uma enorme lavoura, um campo arado para plantação onde as pessoas iam colocando, nas pequenas covas, em vez de sementes, cartuchos de balas; e algum tempo depois brotava ali, em vez de um milharal, uma verdadeira floresta de espingardas.


(BT no Lira, 1980 -- foto Iroã Simões)

Quase vinte anos depois, estou em casa, no Rio, toca o telefone e é Zé Ramalho. Explica que está querendo gravar um disco somente com compositores do Nordeste, e que escolheu “Temporal” para o repertório; tudo bem?

“Tudo bem,” respondo, “aliás, Zé, a gente fez essa música anos atrás pensando nas tuas letras e querendo fazer alguma coisa parecida!”. Ele achou graça e disse: “Deve ter sido, porque me identifico muito com ela.”  

Gravou e lá estamos nós no Nação Nordestina (2000), ao lado de nossos ídolos: João do Vale, Luiz Gonzaga, Petrúcio Amorim, Maciel Melo, Edgar Ferreira, Gil, Dominguinhos, Oliveira de Panelas e tantos outros.

A gravação original de Elba Ramalho:

A regravação de Zé Ramalho:


(BT no Lira, 1980 -- foto Iroã Simões)


TEMPORAL
(BT & Fuba)

Quem viu a terra gemer
nos dentes brancos do mar
e a laje fria da espuma
a sete palmos do olhar
pisou as curvas do mapa
e os raios do sol nascente
tocou as cordas da harpa
de aço incandescente.

Eu percorri todo o sonho
no meio da madrugada
e vi plantações de balas
sementes das espingardas;
eu mato, matas e mata
quem fala não mata não
quem cala consente a fala
e os gritos do capitão.

Quem viu os cachorros negros
latindo para o luar
e o voo vão dos morcegos
gritando mudos no ar
conhece a força guardada
na mola dos temporais
escurecendo as estrelas
nos ombros dos generais.

A mais cruel armadilha
encruzilhada dos fins
e os alicerces das ilhas
roídos pelos cupins
a fina dor da ferida
doendo até no facão
e o mapa da minha vida
na palma da minha mão.

Quem viu o braço da sombra
das folhas de uma palmeira
pousar em carícia longa
nos ombros da terra inteira,
ouviu na boca da noite
feroz silêncio mortal
e viu o bobo da corte
dançando no funeral.











segunda-feira, 18 de novembro de 2019

4524) Uma hora e meia em Canudos (18.11.2019)




(fotos BT)

Canudos Contado e Vivido é um título mágico na minha memória. Creio que era assim o nome de uma peça teatral que nunca li, escrita por Iremar Maciel, o presidente e uma das principais cabeças pensantes do saudoso Cineclube Glauber Rocha, de Campina Grande.

Iremar (que não vejo há muitos anos) sempre foi um poeta talentoso e um obervador crítico da História. Eu tinha de 16 para 17 anos quando ouvia falar nessa peça dele, que me despertava ainda mais o desejo de ver Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber: as ressonâncias profundas da palavra “Canudos” começaram nesse tempo, e não pararam até hoje.

Se bem que com 11 ou 12 anos eu já tinha lido o romance A Aldeia Sagrada, de Francisco Marins, um livro que venho recomendando insistentemente ao longo da vida inteira, para aqueles que recuam com timidez diante de Os Sertões de Euclides.


É a história de um menino sertanejo cujo pai abandona o lar para seguir Antonio Conselheiro. O garoto, assustado, raivoso, saudoso, desorientado, foge de casa e cruza o sertão (e a batalha) para entrar no Arraial e reencontrar o pai. Um livro humano e sofrido, onde História e ficção se misturam num mesmo impulso.

Dias atrás, fui ao sertão de Canudos para participar da I Festa Literária de Uauá, a convite do poeta Maviael Melo. Participei de uma mesa sobre poesia popular, ao lado dos poetas Jéssica Caitano (cuja metralhadora verbal eu já vira à frente do grupo Radiola Serra Alta, de Triunfo), Bule-Bule (amigo e mestre de longa data) e Nelson Maca, que conheci em São Paulo, recitando, agitando, desafiando o coro dos contentes.

Por entre shows musicais de amigos como Maciel Melo, Siba, Em Canto e Poesia e outros, acabei descolando uma ida ao Parque Estadual de Canudos, mantido pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb).


E lá fomos “no pingo do meio dia”, eu, Hudson Silva Santos, Marcos Melo e Flávia Helena, todos noviços, todos indo pisar pela primeira vez o “chão sagrado”, guiados pelas instruções precisas do Prof. Roberto Dantas, da Uneb.

Canudos é um arquétipo sempre energizado e pulsante a provocar nossa reflexão dolorida sobre as raízes sangrentas do Brasil. Isso ficou comprovado mais uma vez este ano na Flip, em Paraty, um evento que começou como uma vitrine do Brasil Oficial e está se deixando ocupar cada vez mais pelo Brasil Real. Até casa do Cordel teve este ano.

Canudos não foi a primeira, e talvez nem tenha sido a maior chacina de revoltosos em nosso país. Tornou-se símbolo e modelo por causa de um Livro. Foi uma das primeiras ocasiões em que a recém-nascida república militarista meteu os pés pelas mãos, tentando passar no fio da espada o nó górdio chamado “os brasileiros pobres”.


Não foi a primeira nem a última vez em que o poder político tentou aproveitar o surgimento de um problema menor para dar uma demonstração de força, e quando viu... O problema cresceu pra cima de si numa proporção imprevista, desencadeando um desastre sem retorno.

Canudos foi uma vitória de Pirro de onde o vencedor saiu aviltado. Faça-se uma certa justiça ao governo da época ao admitir que a “força excessiva”, como dizem os locutores de futebol, só foi posta em prática na reta final do desespero, depois que a violência padrão despertou nos resistentes uma bravura e uma selvageria inéditas.

Como diz Ivanildo Vila Nova num martelo famoso: “Brasileiro matando brasileiro, e os vencidos mostrando mais linhagem”.


Canudos, como qualquer campo de batalhas historicas, é hoje uma paisagem em verde e azul, com manchas de ocre do barro pedregoso, e o cinza fosco dos garranchos.

A criação do Açude de Cocorobó foi uma ironia final, ao fazer sumir o arraial sublevado através da água, o bem mais precioso daquele mundo ressequido. Como se os poderosos dissessem: “Pois tomem isso que vocês pediam tanto, e não se toca mais nesse assunto”.


A visão do Arraial (hoje açude) que se tem do Alto da Favela é menos verticalizada, menos abrupta, do que a que eu tinha na imaginação, a partir das leituras. Não sei até que ponto contribuíram para isso 120 anos de erosão, mas do Alto até o vale onde se instalaram os conselheiristas é uma descida suave. Uma bacia larga e rebaixada, que os canhões e os sabres do Exército conquistaram palmo a palmo, casa a casa, garganta a garganta.

E acima de tudo o silêncio. Não se ouve o motor de um carro, um grito de gente, um trilo de passarinho. Não digo que é um silêncio de cemitério porque silêncio de cemitério é um silêncio surdo, tapado. Ali não: o espaço é aberto e o vento é livre, mas mesmo assim nada se bole. É um silêncio de tocaia, um silêncio de memória e de espera, um silêncio de alguma coisa pronta para acontecer.









quinta-feira, 14 de novembro de 2019

4523) O absurdo poético (14.11.2019)




(Max Ernst, O Elefante Celebes, 1921)


A poesia fala por imagens inesperadas, que nos forçam a pensar em algo pela primeira vez. 

Dos recursos básicos à disposição do poeta (idéia, música, imagem) a imagem talvez seja o que nos produz o impacto maior à primeira leitura, porque nos evoca o mundo dos sentidos, e nos faz de maneira indireta ter experiências visuais, auditivas, táteis, etc. através da palavra.

Quando Manuel Bandeira diz (em “Cantilena”) que “o céu parece de algodão” está produzindo uma imagem visual, porque se trata de um dia chuvoso e nublado, e também tátil, porque o acúmulo de nuvens no céu lembra a textura macia, leve e difusa do algodão. 

Subindo um degrau na escala das metáforas, o poeta Marcus Accioly (em “Os bichos”) fala de “um céu de dragões entre espadas vermelhas”.  Aqui, a imagem não pode ser tomada ao pé da letra, porque busca apenas sugerir um por-do-sol nos vastos espaços sertanejos.  Os dragões e as espadas existem como projeções figurativas do poeta sobre as formas abstratas das nuvens e dos raios do sol.

O Surrealismo da década de 1920 foi um movimento importante para a libertação da linguagem poética.  Reunidos em torno do poeta André Breton e da revista La Révolution Surréaliste, esses poetas lançaram manifestos, criaram polêmicas, bateram-se contra a crítica literária, o governo e o clero, em nome de uma libertação do Homem que ia além da linguagem poética. 

Apesar de nascido no interior da literatura, o Surrealismo acabou se tornando mais conhecido durante o resto do século 20 pelo cinema de Luís Buñuel e pela pintura de Salvador Dali, Max Ernst e outros. 

O objetivo dos surrealistas era reproduzir o verdadeiro funcionamento do pensamento humano, livre de censuras impostas pela estética, pela moral, pela lógica, etc.  Isto era conseguido em muitos casos através da “escrita automática”, em que o poeta escrevia depressa, sem pensar. 

A qualidade literária desses escritos era muito oscilante, mas Breton argumentava que somos bitolados e deformados por fórmulas literárias antigas e que “é preciso limpar as estrebarias da mente”. 

Outro recurso empregado no interior do grupo era o poema escrito ao acaso, em pedaços de papel onde cada poeta escrevia algo, dobrava e passava adiante.  O resultado aleatório dessas palavras colocadas por cada um deles produzia frases de estranha beleza: “O cadáver delicado beberá vinho novo”, “A ostra do Senegal comerá o pão tricolor”, etc.

A poesia surrealista caracterizou-se por essas imagens desconexas, sem sentido, tanto assim que o termo passou a fazer parte da nossa linguagem diária para exprimir qualquer coisa absurda: “ontem eu vivi uma situação surrealista lá no escritório”, “o Brasil é um país surrealista”, etc.  

O impacto desse Movimento na poesia foi principalmente através do que poderíamos chamar, não de surrealismo puro, mas de surrealismo aplicado: a liberdade de usar as imagens mais inesperadas, mais chocantes, mais aparentemente absurdas.  O contato com as experiências surrealistas produziu em muitos poetas uma liberação imaginativa, enriquecendo seus recursos de comparação, de metáfora, de produção de imagens sensoriais.

Sem a influência do Surrealismo, talvez Garcia Lorca não tivesse a liberdade de escrever versos como estes (que lembram os quadros de seu amigo Dali):

Os morcegos nascem
das esferas.
E o bezerro os estuda
preocupado.
Quando será o crepúsculo
de todos os relógios?
Quando essas luas brancas
se fundirão aos montões?

(“A Selva dos Relógios”). 

Carlos Drummond não pode ser chamado de poeta surrealista, mas sem a liberação surrealista seria mais difícil que produzisse versos como estes de “Rola Mundo”:

Vi o coração de moça
esquecido numa jaula.
Excremento de leão
apenas. E o circo distante.
Vi os tempos defendidos.
Eram de ontem e de sempre,
e em cada país havia
um muro de pedra e espanto,
e nesse muro pousada uma pomba cega. 

Pablo Neruda também não escapou ao Surrealismo, presente não apenas nas imagens mas no espírito iconoclasta de “Walking Around”:

(...)
Acontece que me canso de ser homem.
E no entanto seria delicioso
assustar um notário com um lírio cortado
ou matar uma freira com um murro no ouvido.
Seria belo
andar pelas rua empunhando um punhal verde
e dando gritos até morrer de frio.  

Talvez o grande poema-livro surrealista de nossa literatura seja a “Invenção de Orfeu” de Jorge de Lima:

Era um cavalo todo feito de lavas
recoberto de brasas e de espinhos.
Pelas tardes amenas ele vinha
e lia o mesmo livro que eu folheava.

O aparente absurdo da imagem surrealista típica nos leva a uma espécie de alongamento mental, a um esforço do intelecto e da sensibilidade para acomodar elementos disparatados.  O ensaísta Ernst Fischer dizia que “a arte não é para passar por portas abertas, mas para abrir portas que estão fechadas”. 

O absurdo poético dos surrealistas cria novas associações de imagens e de idéias, produz emoções surpreendentes através do choque de elementos contraditórios, força o leitor a uma reeducação da sensibilidade. 

Em seu livro-poema, Jorge de Lima fala no “planalto das cobras laminadas”, em “céu duende”, num “subsolo gemendo lavas brancas”, em “águas subcelestes produzidas pelas chuvas das órbitas”, imagens que a um leitor de poesia de cem anos atrás pareceriam sem sentido mas que para um leitor pós-século 20 adquirem um supra-sentido. 

O sentido de uma imagem poética resulta de um pacto entre autor e leitor, em que este assimila o choque inicial de surpresa e, dando ao poeta um crédito de confiança, busca dentro de si próprio as ressonâncias de sentido e de emoção que aquelas frases lhe despertam.  Nunca serão as mesmas, é claro, mas um poema é isto, um gerador de múltiplas ressonâncias em múltiplos leitores. 


(Uma versão ligeiramente diferente deste artigo foi publicado pela revista “Língua Portuguesa”, da Editora Segmento (São Paulo), número 55, em maio de 2010.)










segunda-feira, 11 de novembro de 2019

4522) A arte de cortar um texto (11.11.2019)



(ilustração: Ryuta Iida)

“Escrever é cortar”, disse um escritor que sabia do que falava.  Isso assusta alguns principiantes para quem o difícil é produzir algo.  Sofrem do problema de Kafka: “Quando finalmente consigo colocar uma palavra no papel, não tenho senão esta, e todo o esforço recomeça”

Esse problema, contudo, só afeta metade da população escrevedora.  A outra metade é uma cachoeira ininterrupta de texto que se derrama sobre a página, como uma comporta de Itaipu despejando um bilhão de litros de tinta por minuto, sem ter a menor noção de como chegar a um ponto final ou, quando o consegue, sem saber como voltar atrás e reduzir essa extensão inesgotável de texto para atender aos telefonemas impacientes do editor que lhe faz a pior das ameaças: “Se não cortar, eu mesmo corto”.

Aliás, poderíamos reescrever assim este último trecho:

“A outra metade é uma comporta de Itaipu despejando um bilhão de litros de tinta por minuto, incapaz de fazer ponto final ou de cortar algo, mesmo quando o editor ameaça: – Se não cortar, eu mesmo corto”.  

Caímos de 77 palavras para 38, e o essencial foi dito. 

A primeira versão de um texto pode ser cortada e remendada sem perda de substância, porque o que o autor quer dizer nem sempre está claro em sua mente no primeiro momento da redação.  Um velho princípio básico dos manuais de roteiro cinematográfico diz algo como: “Não se prenda à primeira versão do roteiro; ela é aquele momento em que você está explicando a história para si mesmo”. Primeiras versões estão cheias disso: explicações, reiterações, raciocínios improvisados que dão a volta ao quarteirão para chegar num ponto que estava a cinco metros aqui  do lado. Tudo isto é necessário ao se botar as idéias no papel. Depois, arruma-se o conjunto de idéias, joga-se o lixo fora e basta deixar o essencial.

Todo mundo escreve procurando.  Escreve reproduzindo com palavras uma série de impulsos mentais desencontrados.  Ninguém consegue produzir o tempo inteiro frases definitivas, reluzentes.  Frases desse tipo geralmente levam quinze minutos de poda e polimento.  Podemos imaginar, é claro, que o autor pensou, repensou, e quando se sentou para escrever já escreveu a frase definitiva; mas a poda e o polimento existiram do mesmo jeito.

A maioria das pessoas escreve de improviso, ou seja, vai verbalizando as idéias no instante em que elas lhe ocorrem.  Escrevem, como se dizia, “ao correr da pena”.   Nossas idéias, principalmente nossas idéias ficcionais, nem sempre nos surgem sob a forma de palavras específicas.  É mais comum que surjam como fragmentos de situações narrativas, cenas semi-visualizadas, vontade de dizer certas coisas, de registrar emoções, narrar vislumbres de coisas não acontecidas... 

Ou seja: sabemos mais ou menos o que deve acontecer, sentamos diante do teclado e o resto é improviso.  Como esperar que desse improviso já brotem as melhores frases?  Depois do esforço inicial de trazer as coisas para o papel, começa outro esforço para tornar essas coisas mais parecidas com o que tínhamos em mente de início. Quando não sabemos o que estamos pensando, escrevemos pouco, as palavras pingam de uma em uma.  Quando sabemos demais, não há dedos nem teclas que bastem.  Já temos tudo pronto na mente mas é preciso cumprir essa tarefa exasperante de digitar as letras de uma em uma!


(ilustração: Love Book Folding)

O que cortar?  Uma das primeiras coisas a fazer é cortar aqueles fragmentos do discurso que não dizem nada mas que nos ajudam a manter o fluxo verbal.  (Poderíamos dizer: “O que cortar? Cortar o que não diz nada e serve somente para manter o fluxo.")

Coisas como “Para não falar de....”, ”antes de mais nada...”, “acima de tudo...”, “não é preciso dizer que...”, “é interessante notar que...”.  Para que serve isto?  Para o mesmo que serve o nosso “hããã...” ou “humm...” quando estamos respondendo algo em voz alta: para emitir diante do interlocutor uma falsa verbalização enquanto a verbalização verdadeira está sendo processada em outro setor da mente.  Serve para dizer algo como “calma, não parei de falar, a vez ainda é minha, daqui a pouco direi algo que faz sentido”.

E as enumerações?  Quando enumeramos, tendemos a sair enfileirando detalhes, minúcias, fragmentos, exemplos, imagens, aspectos, até que um abençoado “etc.” estanca a hemorragia.  A maioria, numa segunda “passada”, pode ir direto para o lixo.

Mais outra: sinônimos.  É muito comum a gente escrever algo como: “Precisamos de uma sociedade mais justa, mais humana, mais equilibrada, mais democrática, mais sadia, mais igualitária...”  Estamos procurando a palavra que exprime melhor nosso sentimento, e fazemos uma lista dessas palavras no correr do texto.  Na revisão, a gente elege uma ou duas palavras e corta o restante.

Num artigo de idéias é bom chegar a uma prosa enxuta, com variedade de idéias, não de vocabulário.  Uma prosa que diga as coisas com precisão, e, quando elas têm de ser imprecisas, que sejam ditas com uma imprecisão deliberada. 

No caso de textos literários, o momento de cortar é também um momento de saber que tipo de efeito queremos produzir.  O texto literário nem sempre procura a limpidez.  Às vezes queremos exprimir (através de um personagem ou narrador) uma maneira de dizer as coisas que é turva, ou prolixa, ou incoerente.  Tudo bem, contanto que, ao sairmos do âmbito do personagem, essas qualidades fiquem lá com ele.

Já vi muitos autores dizerem que sentem pena de cortar os próprios textos; me identifico com os que cortam com prazer.  São dois prazeres sucessivos: o de derramar no papel tudo a que temos direito, e depois o de tirar tudo que não serve mais.  São como o prazer de jogar futebol na lama e de depois tomar um banho num chuveiro bem forte. 

Um texto não é uma pintura a óleo onde o que não nos agrada pode ser coberto com novas camadas.  Melhor vê-lo como um jardim.  Os trechos que estamos cortando são coisas que vão comprometer o que queremos para esse jardim, seja o rigor ou a espontaneidade, seja a harmonia ou o contraste.  Cortar é também uma forma de criar; de dar realce ao que ficou.  Na escrita, o começo do processo parece com a pintura; o final parece com a escultura.

Sugiro ao leitor interessado neste tema que procure edições antigas de Tutaméia e de Sagarana, de Guimarães Rosa, pela Editora José Olympio, ou a edição das Sete noites de Jorge Luís Borges pela Max Limonad, para ver reproduções em fac-símile dos manuscritos originais, mostrando os numerosos cortes, consertos e remendos de dois escritores que sabiam dar peso e função a cada palavra. 

(Uma versão ligeiramente diferente deste texto foi publicada na revista Língua Portuguesa, Ed. Segmento, São Paulo, # 59, setembro de 2010.)

(ilustração: Brian Dettmer)

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

4521) Minhas canções: "Caldeirão dos Mitos" (8.11.2019)




Tenho visto alguns livros muito interessantes em que compositores explicam como foram criadas algumas de suas canções mais conhecidas, o processo de composição, as circunstâncias, como foi gravada a música...

Tenho alguns volumes da série de Ruy Godinho Então, foi assim? e o livro de Paulo César Pinheiro Histórias das Minhas Canções (LeYa).

Pensei comigo: está aí um bom assunto para escrever de vez em quando, porque mesmo quando as músicas não sejam grande coisa (tem as que são, e as que não são), às vezes a história lança alguma luz sobre processos criativos em si, sobre o meio musical, sobre um momento da História, e tudo isso interessa.

Minha primeira música gravada foi “Caldeirão dos Mitos”, que Elba Ramalho incluiu no seu segundo disco, Capim do Vale (1980). Foi composta, como a maioria das músicas que faço sozinho, em duas fases: primeiro a melodia, depois a letra.

A melodia era muito antiga, era dos anos 1970, quando voltei de Belo Horizonte para Campina Grande e passava o dia inteiro pegado com o violão, redescobrindo o forró e a cantoria de viola. Se bem que essa melodia, especificamente, era anotada em meus caderninhos com o título provisório de “I wanna sing this all together”, verso que misteriosamente se transformou, anos depois, em “Eu vi o céu à meia-noite”.

Esse título não era pra valer, aliás era meio chupado de uma canção dos Rolling Stones, acho que em Their Satanic Majesties Request, mas na época em que fiz essa música eu ouvia muito umas bandas menores, que tocavam no rádio. Uma delas era o Mungo Jerry, com uma canção brincalhona e simpática chamada “In the Summertime”:


Uma pessoa com o mais rudimentar conhecimento musical vai dizer que as duas músicas não têm nada a ver uma com a outra, e este é um dos mistérios da criação artística. Ela se dá por uma cadeia de associações de idéias com saltos tão grandes que na quarta ou quinta parada já não se tem a menor noção de como aquilo começou.

A única coisa clara para mim era que não haveria a tal “segunda parte”, que é uma coisa da MPB e da música fonográfica em geral. Eu queria o modelo da canção folk: estrofe musical única, com sucessivas letras nas mesmas notas. É o modelo “Asa Branca”, é o modelo que o folk-rock norte-americano, Bob Dylan à frente, empregava, bebendo nas canções irlandesas e escocesas trazidas pelos colonizadores.

No São João de 1978 eu morava em Salvador, e não tinha grana para ir passar a festa junina em Campina Grande. Me veio a idéia de fazer uma música falando em São João, mas a primeira frase que me veio à mente foi “o Apocalipse de São João”. (Olha aí como funcionam as associações de idéias!).

Essa imagem me trouxe à mente o céu pegando fogo, a qual de imediato me lembrou uma espécie de trocadilho que eu já tinha usado antes, em mais de um contexto: o fato de que “corisco” quer dizer relâmpago, e “lampião” quer dizer candeeiro, ou seja, duas coisas que produzem clarão dentro da noite. Estava pronta a primeira estrofe:

Eu vi o céu à meia-noite
se avermelhando num clarão
como o incêndio anunciado
no Apocalipse de São João
porém não era nada disso
era um corisco, era um lampião.

O que faz o compositor preguiçoso? Exatamente o que eu fiz: pega a estrutura da primeira estrofe e a repete, com outros elementos, sem introduzir nenhum conceito novo. O conceito da canção (que eu poderia, se quisesse, ter expandido para 200 estrofes) era: “Eu vi uma coisa assim-assim; não era tal-e-tal-coisa da Bíblia; era tal-e-tal-coisa do Sertão”.

Claro que o conceito não é seguido de forma totalmente rígida, me permiti introduzir aqui e ali uns elementos destoantes (Inglaterra, Paris, Japão), mas é isso mesmo. O dono do poema é o poeta. Ele não precisa obedecer a regra nenhuma, nem mesmo a que ele acabou de criar. Georges Perec, um obsessivo criador de regras, pregava o conceito de “clinâmen”, e dizia: “Crie uma regra super rigorosa, e a obedeça da maneira mais fanática; depois, num ponto escolhido com cuidado, desobedeça essa regra. Produza voluntariamente uma exceção, num ponto onde seria facílimo ter continuado a fazer como antes.”

O primeiro título que dei à música depois de pronta, pegando como deixa a estrutura “eu vi isso, eu vi aquilo”, foi “Visão do Mundo”. Tá vendo como é bom continuar procurando uma segunda idéia?

Toquei essa música em público pela primeira vez em 1979, numa coletiva de compositores baianos no Teatro Castro Alves repleto, na qual entrei por obra e graça de Zelito Miranda, com quem eu estava compondo bastante na época. Eu não tinha coragem de subir no palco, mas ele praticamente me arrastou até o microfone e disse: “Vai, Galo, agora canta essa porra.”

Na primeira versão a música não tinha o “riff” entre as estrofes, que depois ficou característico, o “tãrãrã -- tãrãrã”. Este foi criado algum tempo depois, quando eu estava no Recife ensaiando para um show que fiz com outro parceiro, Zé Rocha. Ele gostava da música mas achava que era meio repetitiva (e é), era preciso dar uma encorpada nela com alguma coisa instrumental e diferente, já que a gente ia tocar com banda. E na hora mesmo do ensaio eu fiz o rasqueado veloz, 3+3 notas, que foi logo incorporado.

Cantei muito essa música em palco de bar e em mesa de bar. Em 1979, Elba Ramalho levou para a Bahia seu show Ave de Prata, no lançamento desse seu álbum de estréia, e se apresentou no Teatro Vila Velha, acompanhada pela Banda Rojão (Zé Américo, Guil Guimarães, Joca, Marcos Amma, Élber Bedaque).

Falou que queria gravar alguma coisa minha. Eu mostrei o “Caldeirão”, ela disse: “Me mande numa fita! É genial, vou gravar com certeza”. (Eu levaria alguns anos para perceber que ela diz isso com toda música minha, mas só grava de vez em quando.)

A música foi gravada para o segundo disco dela pela CBS, Capim do Vale (1980), e acabou sendo a música de abertura do Lado A, uma honra impensável para um compositor desconhecido que estava tendo uma canção gravada pela primeira vez. Ainda mais num disco que trazia Sivuca, Alceu Valença, Zé Ramalho, Pedro Osmar, Elomar...

Quando o disco saiu, toda vez que chegava gente querendo ouvir “o disco novo de Elba”, eu tirava o vinil de dentro da capa e checava toda vez o selo pra ver se meu nome continuava lá.

A gravação de Elba produziu um arranjo perfeito, com levada de arrasta-pé (que eu chamo de “marcha-quadrilha”), e a ótima idéia de começar com a música “solta”, sem ritmo, somente voz e sanfona se erguendo lentamente em meio às percussões, e só depois a banda atacando completa no “tãrãrã -- tãrãrã”.  E no meio da canção, quando fala “Era um fole de 8 baixos a tocar numa noite de forró”, a intervenção agilíssima de Abdias.

Aqui, a gravação original: