quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

3097) O plágio poético - 3 (31.1.2013)






A facilidade de plagiar um poema, maior do que plagiar um filme (que custa uma fortuna) ou um romance (que dá um trabalhão) faz do plágio poético um crime difícil de registrar. Plagiar poemas é fácil, ainda mais agora. Eu posso ler na Internet, numa revista croata, a tradução em inglês de um poema feito por um autor italiano que mora na Holanda (a poesia é mais internacional do que a World Wide Web). Não me custa nada – se eu for um larápio, um calhordinha – copiar esse texto inglês, dar-lhe novo título, traduzi-lo (substituindo por outra coisa as partes que eu não entender), e – voilà! Um poema em português, inédito. Nem no Google você rastreia.

Talvez seja essa facilidade, que já existia na era pré-Internet, que inspirou Roberto Bolaño a criar um dos personagem mais divertidos de seu livro A Literatura Nazista nas Américas (1996). O livro é um conjunto de biografias de 30 literatos, simpatizantes do fascismo, do nazismo, de ideologias de extrema direita. Todos são imaginários, mas é difícil ler essas sinopses (cada uma vai de duas a dez páginas) sem pensar: “Conheci um Fulano que era exatamente assim”.

A certa altura Bolaño nos apresenta o haitiano Max Mirebalais, plagiador compulsivo. De origem humilde, ele começou a trabalhar num jornal local e, como assistente de colunista social, teve acesso um dia às festas nas mansões dos ricos. Diz Bolaño: “Assim que ele descobriu aquele mundo, quis pertencer a ele”. Decidiu fazê-lo através do ‘status’ de poeta, e começou plagiando Aimé Césaire. Ninguém percebeu, e ele passou a plagiar (e publicar) poemas de René Depestre. Todo mundo adorou, e ele atacou a obra de Anthony Phelps, Jean Dieudonné Garçon e muito outros.

A irresistível ascensão social de Max Mirebalais é tão fulminante (porque, ao que parece, ninguém lê poesia haitiana no Haiti, a menos que seja amigo do poeta) que ele vai morar na Europa, e precisa criar heterônimos. Diz Bolaño: “Foi assim que nasceu Max Le Gueule: a chave de ouro da arte do plagiador, uma salada dos poetas de Quebec, Tunísia, Argélia, Marrocos, Líbano, Camarões, Congo, República Centro-africana e Nigéria”.

Plagiar gente obscura é uma maneira fácil de sair da obscuridade, desde que o plagiador tenha acesso a canais de divulgação que são inacessíveis ao plagiado. E é em casos assim que o plágio deve ser punido: quando alguém copia e assina, de modo deliberado e mal-intencionado, a obra de alguém que não pode se defender desse ataque. Em casos assim, amigos, não existe papo de “compartilhamento” ou de que “a poesia é de todos”. Como dizem os nossos poetas, “todo o bem que eu desejo a gente ruim / é chibata, cacete e camburão”.



quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

3096) O plágio poético - 2 (30.1.2013)




(Tim Dooley)


Falei ontem sobre um poema de Christian Ward copiado de um poema de Tim Dooley, que por sua vez pretendia ser uma paráfrase (homenagem? citação?) do famoso poema de Pablo Neruda, “Walking around”. Dooley pode dizer que estava apenas parafraseando ou citando (ele indica Neruda no título). Mesmo assim, a maior parte do seu poema são frases de Neruda ao pé da letra. Pode-se argumentar a seu favor que ele reconheceu a presença de Neruda, não quis agir às escondidas. Muito bem, isso pode lhe dar pontos em honestidade, mas o conjunto não lhe dá pontos em poesia. 

Já o caso de Christian Ward me parece mais grave, pelo que li. Ele só admitiu ter plagiado Dooley depois de ser flagrado plagiando outra pessoa. Ward inscreveu no concurso para o Prêmio Hope Bourne o poema “The Deer at Exmoor”, que foi o vencedor. Essa vitória tornou seu poema conhecido e logo alguém, que tinha lido o poema de Helen Mort, mostrou que eram quase iguais. Ward afirmou pela imprensa: “Eu estava escrevendo um poema sobre minha infância em Exmoor e fui descuidado. Usei o poema de Helen Mort como modelo para o meu, mas me precipitei e acabei enviando um rascunho que não era inteiramente obra minha”.

Ora, idéias alheias todo mundo pega. O mínimo que pode fazer é deixar claro, em público, que recorreu àquelas fontes. Eu tenho um poema chamado “Blow-up” que dediquei a Michelangelo Antonioni, Julio Cortázar e César Leal. São as minhas referências para a criação daquele poema que, mesmo assim, me parece muito original, e meu (mas qualquer um dos citados, se o lesse, descobriria na hora de onde ele veio). Já citei/parafraseei Drummond, Cabral, Vila Nova, Dylan, Carlos Nejar, Pessoa, Leminski, Ginsberg... Não me orgulho nem me envergonho disso. São estudos, exercícios. Meus poemas podem não ser grande poesia, mas não são plágios, são reelaborações que eu defenderia em qualquer tribunal.

Você pode usar idéias, formas, estilos ou enredos alheios. A Arte é uma reciclagem permanente de formas e de idéias, tanto coletivas quanto pessoais. A única coisa que pode justificar esse uso é: 1) Você deve criar mais do que cita, ou seja, a parte sua, pessoal, original, deve ser maior, deve ter mais peso do que a parte referencial, feita a partir da obra alheia; 2) Você deve fazer isso de tal modo que se o autor citado ou imitado vir o que você fez, ao invés de reclamar, diga: “Puxa vida, esse cara é muito bom, vejam só o que ele fez a partir de uma idéia que eu tive”. Ou seja: “procurar fazer da cópia uma obra que o autor do original pudesse apreciar com prazer e aplaudir com orgulho”. Se não for assim, ou é picaretagem ou incompetência. (Continua amanhã)



terça-feira, 29 de janeiro de 2013

3095) O plágio poético - 1 (29.1.2013)







(Christian Ward)

Acusações de plágio na poesia são tão frequentes quanto, muitas vezes, equivocadas. Eu sempre tive o costume de fazer, em meus versos, alusões, citações, referências a versos alheios. Não aconselho a ninguém. Isso é cacoete, vício de quem leu demais os mesmos versos e só por isto começou a se sentir meio proprietário deles. Todo poeta principiante imita, cita, tenta reproduzir os efeitos que viu nos seus ídolos. É normal. O que não é normal é publicar esses exercícios como se fossem obra original.  O “poema referencial” tem que ter “originalidade extra”, algo que vai além da cópia ou da homenagem. Somente assim a publicação se justifica.

Há um caso de plágio recente na Inglaterra envolvendo o poeta Christian Ward, que teria plagiado um poema alheio. No meio da discussão Ward pediu desculpas pela imprensa e confessou que ter se apropriado de um poema de Tim Dooley, poeta e professor de literatura. Copiei o poema de Ward, “The Neighbour” e o de Dooley, “After Neruda”, para compará-los.

Amigos, os poemas são iguaizinhos, embora aqui e ali Ward tenha feito pequenas mudanças. Mas eis a primeira estrofe do poema original, de Dooley (http://bit.ly/Uk5na5): “Sometimes he’s tired of being a man. / The reflection he sees, in shopwindows / or the cinema screen, takes on a sad / substance, tired and withered: ash-stains / on a shiny piece of suit cloth.”  E eis a primeira estrofe do plágio, de Ward (http://bit.ly/SydZg0): “He often tells me he’s tired of being a man. / The reflection he sees in shop windows / or the cinema screen takes on a sad / substance, tired and withered: ash-stains / on a shiny piece of suit cloth.”  Não traduzo porque o espaço não dá, mas ninguém precisa saber inglês para ver que são praticamente idênticas, até as quebras de linha são as mesmas.  Pra mim é claro que Christian Ward leu o poema de Dooley, gostou e resolveu publicá-lo sob seu próprio nome, para ser elogiado.

Mas nem era preciso que Pablo Neruda fosse citado no título para que eu percebesse a semelhança do poema de Tim Dooley com “Walking around”, um dos meus poemas favoritos de Neruda, o que começa dizendo: “Sucede que me canso de ser hombre...”. Localizei uma tradução em inglês, feita por Robert Bly, para que as semelhanças ficassem mais visíveis. Eis Pablo Neruda: “It so happens I am sick of being a man. / And it happens that I walk into tailorshops and movie houses / dried up, waterproof, like a swan made of felt / steering my way in a water of wombs and ashes.” É apenas a primeira estrofe, mas é muito claro que Dooley quis fazer uma paráfrase de Neruda, e que Ward praticamente copiou o poema de Dooley. (Continua amanhã)



domingo, 27 de janeiro de 2013

3094) A Larica (27.1.2013)




(ilustração de Gustave Doré para Pantagruel, de Rabelais)




A Larica é uma entidade que se apossa – por meios ainda não reconhecidos pela ciência convencional – do corpo desprevenido de um ser humano, e passa a dominá-lo, em seu próprio e parasítico proveito, sempre que ele o permite. O principal sintoma de um indivíduo possuído pela Larica é uma fome inegociável. Se a mesa estiver vazia, o sujeito é capaz de roer a toalha.

Por que tem este nome? Ninguém sabe. Ouvi uma explicação dando conta de que em Cuba, ao que parece, existe uma expressão popular dizendo que: “En la vida del boémio existe la madrugada pobre, y existe la rica”. Não sei se as palavras são exatamente estas, mas La Rica passou a ser um sinônimo daquelas madrugadas insones em que uma mente doentiamente ativa fica impulsionando um corpo a noite inteira de um lado para o outro de um apartamento, fazendo-o esbarrar nos móveis, perder o rumo e ir parar na cozinha quando visava o banheiro, mas de qualquer maneira já que este lugar onde ao que parece eu estou agora é a cozinha, então deve haver uma geladeira, muito bem, eis geladeira. Tudo confere. O que tem dentro deste tupperware? Bora esquentar, e quando comer a gente descobre. 

A Larica funciona assim. Ela é uma entidade pouco nítida para mim que, agnosticamente, não dou a mínima para orixás ou elementais terrestres ou consciências semióticas. Só sei que funciona. O sabor do que se come em Larica é sagrado. Não venham me dizer que a coquilha-de-são-jaques é mais saborosa do que o macarrão-parafuso-com-carne-moída trazido de volta à vida neste instante, mediante ficção científica, cibernética, microondas e pensamento positivo.

Um pão de anteontem redunda na mais saborosa torrada que já chiou num grill. Há maravilhas inexploradas, toda uma fractal de sutilezas possíveis no mix entre o purê de batatas e o arroz. As frutas, então, são um universo à parte. Basta pensar na pletora de líquidos em que uma fruta pode ser mergulhada com proveito gastronômico e chegaremos a números galácticos. Não subestime as bolachas; qualquer substância achatada posta entre duas delas tem, por milagre estrutural, seu sabor enriquecido.

A Larica nos leva de volta à essência sagrada do ato da alimentação, tão banalizado pelos comerciantes de secos-e-molhados e tão aristocratizado pelos gurmês. Só sobreviveremos se destruirmos alguma coisa. Precisamos tirar de algum lugar a energia que nos mantém em movimento. Se um bicho come, ele está interagindo com o Universo num dos seus níveis mais primais, onde a frivolidade não tem vez. O bicho consome energia do Universo. O Universo a fornece, de olho nele. Está contabilizando. Um dia, vai pedir de volta. Algum problema?


sábado, 26 de janeiro de 2013

3093) O anjo e o átomo (26.1.2013)



(Salvador Dali, O anjo caído)



Eu nunca vi um anjo e nunca vi um átomo, mas, por alguma razão profunda, duvido “de graça” da existência do anjo e acredito “de graça” na existência do átomo.

A primeira proposição precisa ser qualificada para não gerar mal entendidos. Jamais duvido da existência do anjo como um produto da nossa cultura, um personagem, uma criatura composta de lendas e imagens. Um anjo existe tanto quanto um elfo, um vampiro, um saci. São personagens da cultura, têm sua função, ajudam a focalizar emoções, servem de símbolo, servem de comparação, ajudam a contar parábolas e histórias... 

Enfim, são personagens que se tornaram indispensáveis na nossa cultura, pelo menos a ocidental e cristã, pois não sei se os chineses, os ianomâmis ou os aborígines da Austrália têm criaturas equivalentes.

Já o átomo, comparado com o anjo, é uma coisa muito sem graça. Quando eu era menino ele era representado como um aglomerado de bolinhas de cores diferentes (o núcleo) rodeado, em órbitas, por outras bolinhas menores (os elétrons). Nunca deixou de me inquietar a noção de que “a menor partícula da matéria” podia ser dividida em partículas ainda menores. Essa contradição filosófica nunca me escapou. 

Em todo caso, um átomo não é feito de miçangas, e sim de vibrações localizadas de energia que se atraem e repelem, e que ao longo de bilhões de anos foram se combinando em padrões estáveis (os elementos químicos).

Por que motivo acredito no que acabei de escrever aí em cima? Eu nunca vi um átomo. Vi fotos com microscópio eletrônico, mostrando espaços negros pontilhados por manchinhas luminosas. Uma coisa inconvincente; eu próprio, se me dessem um bom software de animação, seria capaz de produzir átomos muito mais verossímeis. 

Os átomos são feitos de 99,9% de vazio e 0,1% de energia. E no entanto eu acredito que eles existem, sim, e que são mais ou menos como a Ciência os descreve. (É a própria Ciência que me adverte a colocar esse “mais ou menos”.)

Nós somos convencidos por provas, mas, mais do que por provas, somos convencidos pela Narrativa que se cria em torno de qualquer coisa. 

Se a gente não gosta da Narrativa, nem as provas mais arrasadoras são capazes de nos fazer mudar de opinião. 

Se a Narrativa é convincente, as provas são mera ilustração. 

A Narrativa religiosa do anjo não me convence (o Anjo como entidade espiritual); a Narrativa científica do átomo, sim. Desde a infância a gente vai examinando as Narrativas que recebe (da família, da escola, dos amigos, dos livros), vai se afastando de umas e se filiando a outras. E passa a viver no mundo dessa Narrativa. Eu vivo num mundo onde, se Anjos existem, são feitos de átomos.






sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

3092) "Miguel e os demônios" (25.1.2013)







Lourenço Mutarelli é mais um autor migrando das histórias em quadrinhos para a literatura. Traz consigo um enxugamento de estilo e alguns recursos típicos de quem escreve para a imagem. Miguel e os Demônios (2009) é um romance curto na linha áspera e sombria de Rubem Fonseca, João Antonio, Dalton Trevisan. Cito cada um destes nomes por motivos diferentes. De Fonseca ele tem o acompanhamento do cotidiano de um polícia civil, a percepção instintiva de detalhe bizarros do dia-a-dia. De João Antonio, uma certa ambientação sórdida nos desvãos do centro de São Paulo, por entre pivetes e travestis. De Trevisan, a secura e a precisão das frases e dos parágrafos, sempre muito curtos, desbastados ao máximo.

Mutarelli parece estar escrevendo para si mesmo, com a descontração de quem escreve para quadrinhos e nem tenta disfarçar essa origem. Aqui e acolá ele dá indicações como: “Durante a corrida o celular de Miguel não para de tocar. No visor lemos Rebeca”. Essas dicas de visualização são típicas de roteiro (HQ ou cinema), e num texto mais floreadamente literário pareceriam deslocadas. Mas em Mutarelli elas se encaixam bem com a economia das frases curtas, que às vezes trazem uma ação longa e complexa comprimida em menos de uma linha. Tudo é rápido, direto, e a habilidade de Mutarelli está em misturar o tempo inteiro, nessas rajadas de parágrafos magrinhos e frases curtas, indicações objetivas (o que poderia ser visto por um observador presente à cena) e subjetivas (o que o personagem está sentindo ou pensando, uma área a que só o autor tem acesso).

Miguel é um policial separado da esposa, e tem uma namorada manicure com duas filhas problemáticas e um ex-marido perturbado. Participa de chacinas de menores sentindo-se pouco à vontade. O pai é aposentado e doente, Miguel está voltando a fumar... É uma situação meio Stephen King, e King teria sem dúvida produzido com esses elementos um romance de 600 páginas. Miguel sente-se o tempo todo como uma caldeira a ponto de explodir, e sabe que a explosão não vai poupar nenhum deles.  É um romance de sexo, prostituição, traição e culpa, acompanhando o cotidiano insuportável de meia dúzia de pessoas e as explosões cegas de uma violência alimentada por superstições. Quando os personagens cometem atos que eles mesmos desprezam, o satanismo surge como uma explicação para tudo.  Uma espécie de Teoria da Conspiração individualizada. O personagem tem a compulsão de “pecar”, quer pecar, mas não pode admiti-lo, então precisa criar uma teoria a respeito de demônios que habitam dentro dele e que o obrigam a fazer aquilo de que ele gosta tanto.



quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

3091) A tragédia americana (24.1.2013)





Os EUA parecem estar escorregando para um dos períodos mais sombrios da sua História.  Até eu, que não tenho nada a ver com isso, perco o sono às vezes por causa deles. Agora, o país atingiu mais uma vez seu limite máximo de endividamento. Esse teto agora é de 16 trilhões de dólares; vão faltar zeros no mundo no dia em que essa dívida for cobrada. Barack Obama vive fazendo um vale-tudo junto ao Congresso, pedindo permissão para se endividar ainda mais. (É o mesmíssimo caso que já encarei tantas vezes: nossa turma bebia a noite inteira, e quando chegava a conta o dinheiro não dava pra pagar. O que a gente fazia? Pedia mais cerveja enquanto procurava uma solução.)

Militarmente o país está mais encrencado do que nunca, e o fato de ter saído do Iraque é um pálido consolo diante do gigantesco fracasso militar e político desse pesadelo auto-induzido. Nas tropas norteamericanas acontece um suicídio por dia; mais soldados morreram pela própria mão do que mortos pelo inimigo. Quem é o Inimigo, então? A tragédia recorrente da América é invadir um país primitivo alegando democratizá-lo a poder de fogo, sofrer uma derrota ridícula e sair do país deixando a situação pior do que estava quando entrou.

Além disso, periga se tornar um dos lugares mais paranóicos e reacionários do mundo.  O fundamentalismo religioso deles é diferente dos nossos evangélicos do Brasil, que só querem mesmo pegar o dinheiro dos bestas. Os de lá acreditam mesmo no que dizem. Pobre América de Walt Whitman, o poeta da fraternidade, da igualdade entre irmãos, da aventura de construir um grande sonho coletivo de uma civilização simples, voltada para o trabalho manual e o cultivo do espírito. É essa América (o sonho talvez impossível dessa América, dessa nova chance de utopia para um mundo cansado de impérios armados) que seduziu jovens do mundo inteiro, quando surgiu no século 20 como uma alternativa real para a Europa com seus colonialismos e totalitarismos, seu sistema rígido de classes e clãs, sua decadência.

Os EUA são a viga-mestra do mundo como o conhecemos, e está num declínio talvez irrecuperável (dizem os próprios norte-americanos). Lá dentro ainda resistem bolsões da Ilha da Fantasia, uma espécie de condomínio de luxo cercado por arame farpado, pitbulls e seguranças com metralhadoras. Um bunker suburbano a céu aberto, um céu que antes do 11 de setembro nunca trouxe más notícias. Vamos rezar pela América. No dia em que a viga-mestra partir e ela afundar, vai criar um redemoinho tão grande que nos puxará a todos consigo para dentro do ralo. Talvez só não desça a China, que é tão grande que vai ficar entalada nas bordas.



quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

3090) A poesia e a ciência (23.1.2013)





(Martins Jr.)


Ainda com relação à palestra recente de Ariano Suassuna sobre Augusto dos Anjos, na Paraíba: Ariano fez uma menção à “Escola do Recife”, que teve um papel importante na formação do poeta do Eu. A Escola do Recife foi um movimento nacionalista e cientificista do final do século 19, concentrado na Faculdade de Direito do Recife, que reuniu intelectuais como Tobias Barreto, Joaquim Nabuco, Sílvio Romero e muitos outros. Entre os ativistas do movimento junto à Faculdade estava Martins Júnior (José Isidoro Martins Jr.), intelectual e poeta, grande leitor de ciência e de filosofia, que publicou em 1883 um ensaio intitulado A Poesia Científica. (Ver trechos aqui, em sua página na Academia Brasileira de Letras: http://bit.ly/UoGGcz).

Há influência de Martins Jr. (1860-1904) sobre a obra de Augusto. Os dois têm muito a ver em estilo, em assunto, em visão do mundo. Na sua palestra, Ariano fez uma distinção entre o talento e o gênio. Disse ele que as teorias poéticas de Martins Júnior eram brilhantes, mas que sua poesia era fraca, porque ele tinha apenas talento.  Já Augusto, segundo Ariano, tinha gênio; foi ele quem produziu a “poesia científica” que Martins Júnior teorizou e não foi capaz de criar.

R. Magalhães Jr., em sua Poesia e Vida de Augusto dos Anjos, comenta no capítulo 11 que a morte inesperada de Martins Jr., aos 44 anos, ocorreu em agosto de 1904, causando grande comoção no Recife e na Faculdade de Direito, onde Augusto já estudava. Ele registra a influência, em Martins Jr., “do evolucionismo spenceriano, do transformismo darwínico, do monismo haeckelista e do realismo científico materialista”. Ou seja, praticamente a base filosófica de onde decolava a poesia de Augusto. 

Magalhães transcreve uma estrofe de um poema de Martins Jr., onde se pode ver a tentativa de algo que Augusto, mesmo bem mais jovem, realizaria de maneira mais madura, logo a seguir: “Como coisas senis, fossilizadas, negras, / amontoam-se além as bolorentas regras / da Bíblia, do Alcorão, do Avesta e Rig-Veda. / Trôpegos, sem valor, curvos, de queda em queda, / fogem, na treva espessa, Adon, Moloque, Siva, / Ormud, Vichnu, Ahriman, Baalath...”  Augusto também evocaria muitos desses nomes místicos.

Martins Jr. defendia uma poesia que incluísse “desde a lei astronômica da atração até o evolucionismo biológico e social”. Dizendo-se discípulo de Baudelaire e de Guerra Junqueiro, criticava a poesia de sua época, a que chamava “poesia chorona”. E afirmava: “Denomino a poesia, a fórmula poética do futuro, como eu a compreendo e como eu a quero, deste modo – cientificismo filosófico, ou poesia científico-filosófica”.



terça-feira, 22 de janeiro de 2013

3089) O jeito brasileiro (22.1.2013)




(foto: Graça Graúna)


Já vi muitos depoimentos de estrangeiros sobre nosso povo, em entrevistas, pesquisas, enquetes, o escambau. As críticas que nos fazem são sempre muito parecidas, todas sobre coisas que a gente já sabe, e que em certa medida são verdadeiras: o brasileiro é acomodado, não se mobiliza socialmente para protestar, é excessivamente informal e despreza os instrumentos de controle (leis, Constituição, regulamentos, etc.). Examinar esses defeitos pode até ser interessante, mas hoje quero examinar algumas qualidades que nos atribuem.

Dizem, por exemplo, que o brasileiro é acolhedor, hospitaleiro. Será que esses povos europeus não o são? Talvez o sejam, mas de uma maneira diferente. O europeu em geral (olha que bruta generalização!) recebe super bem um desconhecido, desde que ele traga algum tipo de apresentação ou recomendação. Desde que ele tenha uma noção razoável de quem é aquela pessoa. Em todas as minhas experiências foi assim. O brasileiro, por outro lado, tende a acolher bem as pessoas com quem simpatiza, independentemente de saber quem são. Os índios são assim, não é mesmo?  Nove vezes em dez, recebem de braços abertos até aqueles sujeitos barbudos, feridentos, armados de escopetas.

Outra coisa: o brasileiro tem fé, acredita que as coisas, por piores que estejam, vão melhorar. Amigos europeus já me disseram do seu espanto diante disso. Por quê?, pergunto. Quando vocês têm um problema acham que o mundo vai acabar? Eles dizem: "Não, quando nós temos um problema temos medo de que aquela situação não dê certo e tudo comece a piorar a partir dali". Já os brasileiros dizem “deixa como está pra ver como é que fica” – e vão pensar noutra coisa.

Para muitos, isto é surpreendente, considerando-se que grande parte das pessoas que se comportam assim vivem em condições econômicas e físicas que deixariam um europeu no pior dos desesperos.  Alguém diria que o brasileiro suporta isto com otimismo por ser estóico, mas o termo “estóico” me traz à mente a imagem de um sujeito durão, de dentes trincados, suportando uma dor física aguda, ou um prolongado sofrimento mental. O brasileiro é o contrário. Ele dá a impressão de dizer: “Eu estou vendo os problemas, mas eles não fazem parte de mim. Eles são reais mas eles não são eu, e não vejo motivo para martirizar minha mente e meu corpo porque há um milhão de problemas a serem resolvidos. Se eu estiver bem, íntegro e forte em minha mente e meu corpo, encaro qualquer problema. Não vou me acabrunhar, nem me abater, nem passar o dia com todos os músculos contraídos só porque existe um problema na minha vida. Vou ficar bem.” Ficar bem já é meio caminho andado para resolver o problema.




domingo, 20 de janeiro de 2013

3088) Qualidade artística (20.1.2013)






("Resta uma questãozinha fútil", Edward Gorey)


O que mede a qualidade de um livro? Como autor, tenho o hábito maquinal de ver as coisas do ponto de vista do autor. Para a maioria de nós, a perspectiva de ter um livro lido e gostado por multidões de pessoas é uma sugestão sem nenhum defeito. Eu sou um destes, de modo que preciso de vez em quando lembrar que antes de ser autor, e depois de deixar de sê-lo, eu fui, e espero ainda ser, um leitor. Ser autor tem suas vantagens óbvias, mas ser leitor tem inclusive certas liberdades que o autor nem sempre pode ter. Um grande autor, em muitos casos, é um prisioneiro do universo que criou: Tolkien, Lovecraft, todos os outros. Já um leitor pode viver em tantos universos quantos encontre.

Como podemos quantificar o quanto o público gosta, por exemplo, de “O Morro dos Ventos Uivantes”? É um melodrama vitoriano com meia dúzia de relâmpagos góticos, e não mais que isto, mas as pessoas teimosamente mantêm esse livro em catálogo. Recentemente, Jane Austen, autora que nunca foi muito editada no Brasil, teve uma verdadeira explosão, devida em grande parte ao cinema. Pois Emily Bronte era tão famosa quanto Jane Austen hoje.

Quantificar através das edições, da venda da exemplares? É o mais cru e menos artístico dos critérios. Através de prêmios, de honrarias? Através da presença da obra (livro, filme, ópera, quadro, etc.) nas listas dos melhores, consistentemente, ao longo das décadas? Quantificar importância em função da fortuna crítica, das quantidade de obras escritas a respeito? Um olhar imparcial perceberia a persistência daquela canção ou daquele conto, dentro da memória coletiva de milhões de pessoas, ao longo de centenas de anos. Que melhor cacife literário do que ter escrito os “Sete anos de pastor Jacó servia”, a Divina Comédia, “A Pata do Macaco”?

O foco não é numérico, é descritivo. Avaliar qualidade é tentar descrever o impacto daquela obra dentro da cultura. Se foi respeitada, se foi imitada, se foi parodiada, se foi polemizada... “Se foi premiada” ou se “ficou entre as dez melhores” é interessante, mas o foco não é nisso. O foco é no impacto total na sociedade, não apenas sobre a crítica. Muitas vezes o crítico é apanhado de surpresa por uma onda artística, e isso é normal, se a onda tem mérito sabe ser convincente, sabe suportar a rejeição inicial e ir se impondo aos poucos.

O mercado de arte e o conceito de qualidade artística se parecem com um mercado de ações. Vale zero hoje, pode valer milhões amanhã, se as apostas certas forem feitas no momento certo; e vice-versa. A arte é aquele objeto, e é a fantasia fabulatória que ele extrai de nós que o explicamos. Sem nós ele não existiria.



sábado, 19 de janeiro de 2013

3087) Histórias felizes (19.1.2013)





Por que motivo a vida tranquila de pessoas felizes nunca rende uma boa história? Os manuais de roteiro norte-americanos dizem que toda história se baseia em conflito. Ótimo pretexto para que  os roteiristas façam a festa, com brigas de socos, carros explodindo, massacres com serra elétrica e sexo não-consentido. 

Em seu texto mais recente na coluna “Strokes” (http://bit.ly/ZydOmY), John Clute comenta: 

“Nós simplesmente não queremos ouvir, e poucos entre nós leem, embora alguns de nós gostem de recitar, histórias sobre pessoas boas e agradáveis que vivem vidas pacíficas, que resolvem pacificamente seus conflitos, que dão aos filhos liberdade para crescer e para participar sorridentes de estruturas poliamorosas; repelimos histórias desse tipo, embora talvez gostássemos de vivê-las, porque histórias ambientadas em mundos harmoniosos não passam de narrativas congratulatórias, elas exigem a conivência do leitor, que é obrigado a dizer que foi um luau magnífico, ficamos felizes por ter comparecido; o que significa que não se trata de histórias mas de mantras; um mundo verdadeiramente harmonioso seria um mundo desistorizado”.

Mesmo os romances utópicos trazem conflitos embutidos, em geral o conflito entre o Mundo Perfeito e a mentalidade do Visitante a quem esse mundo é mostrado. 

Na literatura utópica, o mundo feliz é um mundo onde nada acontece, a não ser diferentes formas de reiteração dessa felicidade. O conflito em geral não se dá dentro da narrativa, mas na leitura. (Caberia um estudo de como o cinema espírita, por exemplo, imagina o que é a vida no Paraíso.)

Acho que nem sempre foi assim. Talvez em culturas antigas os escritores competissem entre si para ver quem escrevia histórias mais placidamente felizes; e os leitores consumissem isto com deleite. Mas o romance moderno, de 200 anos pra cá, já foi descrito como “a saga do herói problemático”. O romance é um problema que virou história. 

Arregimentando todos os recursos verbais que tinham à mão – a narrativa, o diálogo, a digressão, a descrição, a citação/transcrição de outros gêneros, etc. – o romance tornou-se o gênero que melhor corresponde aos conflitos da sociedade burguesa. Onde a liberdade, a riqueza, a justiça e a felicidade nunca foram tão reais, mas somente pra quem pode. 

As histórias felizes não nos satisfazem porque sabemos serem intrinsecamente falsas; e a literatura popularesca descobriu a fórmula mágica – o romance problemático com um final falsamente feliz.  Com este placebo açucarado vem anestesiando a dor coletiva de bilhões de pessoas mergulhadas em conflito e frustração desde a certidão de nascimento ao atestado de óbito.








sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

3086) "O Reino de Kiato" (18.1.2013)





(capa da 1a. edição)



Entre os romances utópicos que a literatura brasileira produziu no começo do século 20, O Reino de Kiato (No país da verdade) de Rodolfo Teófilo (1853-18921932), publicado em 1922, não traz nenhuma novidade ao gênero (repete a fórmula com zelo de principiante e deslumbramento de recém-chegado), mas pode suscitar boas discussões sobre que tipo de utopia os nossos escritores enxergavam para o país. 

Teófilo foi um sanitarista que realizou em Fortaleza campanhas de vacinação contra a varíola, durante uma das mais mortais epidemias dessa doença, a partir de 1900. 

Seus romances regionalistas (que não li) parecem ter adotado a veia naturalista de descrição minuciosa de fatos desagradáveis (a doença, etc.). Em Kiato, ele vai na direção contrária. 

Seu protagonista é o cientista norte-americano John King Paterson, que mais uma vez confirma a falta de jeito dos escritores brasileiros para criar nomes em inglês, os quais nunca soam plausíveis. 

Ao viajar para a Europa a fim de divulgar um remédio que inventara para curar as neuroses, Paterson vai aportar acidentalmente numa ilha, o Reino de Kiato, onde encontra um país que resolveu todos os seus problemas, principalmente os três que Teófilo considera “fatores da degeneração do gênero humano”: o álcool, a sífilis e o tabaco.

O Brasil daquela virada de século devia mesmo ser um país insalubre, porque esses romances utópicos insistem sem parar na importância da limpeza, da higiene, da ausência de vícios. Insistem também na eugenia, no que eles chamam “o aprimoramento físico e mental da raça”. 

Os habitantes de Kiato têm mais de dois metros de altura, trabalham com alegria nas tarefas da roça, e vivem num mundo absolutamente organizado, onde as mulheres se dedicam somente às tarefas do lar, os impostos são pagos com alegria nas repartições do governo, a população obedece feliz ao toque de recolher às dez horas da noite.

É típico de certas utopias começarem, lá pelo meio do livro, a parecer distopias. 

A ânsia civilizatória de Rodolfo Teófilo o faz imaginar uma nação feliz que mais parece um pesadelo, um país onde não existe polícia porque todos os cidadãos obedecem alegremente a tudo que o Rei Pantaleão III determina. 

Por ingenuidade sociológica, os autores que imaginam sociedades perfeitas sempre criam projetos totalitários, eugênicos, higienistas e repressores. Durante o tempo que vive em Kiato, Paterson não conversa com nenhum habitante local, apenas com seu hoteleiro, William Robert, inglês como ele. É como se aqueles cidadãos felizes fossem robôs inacessíveis, ou a Utopia não passasse de um museu holográfico com o qual não fosse possível interagir.








quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

3085) O scroll e o códice (17.1.2013)




“Mestre Além tinha setenta anos mas sabia ler desde os nove, quando começou a ajudar o padrasto a conferir as entradas e saídas em sua modesta tenda, da qual dependia o pão e o futuro de cada pessoa naquela casa. 

"Das faturas e recibos passou às Escrituras Sagradas e destas à literatura. Descobriu que ler era uma maneira rápida de acumular conhecimentos e depois, numa discussão, soterrar com eles a maioria dos adversários. Não era preciso que os conhecimentos tivessem alguma importância. O diálogo humano não era vencido pelo significado das palavras, mas pelo poder encantatório de uma voz, suas cadências e ressonâncias, seus longos floreios de frases dando uma volta sobre si mesmas e laçando um nó perfeito.

“Um livro era um rio, era um fluxo, era uma fita de papel gravado que daria a volta à noite em oitenta dias. Um scroll: dois rolos giratórios, um largando, o outro colhendo, e no relâmpago de cada instante essa fita ia sendo mostrada aos olhos e depois levada para sempre. Um texto era uma linha, um cordão, um cordel, um fio de letras sem fim.  Do alfa ao ômega sem uma sutura sequer.

“E então sucedeu o inesperado. 

"Começaram-se a fazer uns livros em formas de caixa, retangulares, e lá dentro uma aberração, um livro assassinamente fatiado. Como uma pilha de retalhos que um felino raivoso rasgou. 

"Ele segurava aquelas contrafações, erguia a tampa de madeira-com-couro-ou-com-veludo e era instruído a tomar nas pontas dos dedos um canto geométrico qualquer e erguê-lo, com um movimento sempre numa mesma direção. No início esse cacos, todos parecidos, revelavam-se como que empilhados com um mínimo de senso, pois, se o que se lia em algum deles se interrompia, por uma abençoada fortuna recomeçava milagrosamente no fragmento imediatamente abaixo, e em alguns casos no verso do próprio quadrado já lido. 

"Isso lhe causou no início um pouco de medo. O livro não era mais algo contínuo que fluía como uma onda, parecia-se mais a uma justaposição de partículas, ou de padrões estáveis de energia.

“Alguns desses livros saltavam raivosos e fechavam-se sozinhos quando eram largados; outros deixavam-se abrir mansamente, e relaxavam abertos sobre a mesa, sem exigir nenhum esforço adicional.  

"Era estranho ver uma história escrita e perceber que essa história escrita não dependia de estar fluindo, se desenrolando, para acontecer. Acontecia; mesmo retalhada em quadros, em datilogramas, e mesmo que o mundo ondulado e íntegro por onde ela antes escorria já não existisse mais, aqueles recortes quadrados diziam a mesma coisa, e faziam dançar e ondular a fita luminosa de memórias que brotava num murmúrio em Mestre Além.”





quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

3084) Os monstros de Augusto (16.1.2013)






Numa palestra recente na Paraíba, num prolongamento das comemorações do centenário do Eu de Augusto dos Anjos, Ariano Suassuna comentou a obra e o estilo do poeta. Lembrou que o professor de escola pública eleito como “O Paraibano do Século” morreu com apenas 30 anos, e que foi esnobado em vida por muita gente importante, inclusive Olavo Bilac, que ao ouvir falar de sua morte e ler um dos seus sonetos teria proferido a frase fatal: “Não se perdeu grande coisa”. Observou Ariano que desde então a fama de Bilac só fez cair e a de Augusto só fez crescer. Parece até que o urubu que pousara na sorte do defunto se transferiu o poeta do “Caçador de Esmeraldas”.

Ariano fez uma comparação muito perceptiva entre Augusto dos Anjos e Garcia Lorca, talvez um dos últimos poetas com quem alguém compararia Augusto. Lorca era de um vitalismo, uma exuberância, uma alegria de viver, uma sensualidade e uma extroversão que nada têm a ver com o poema do tamarindo.  Mas Ariano observou que ambos são poetas muito mais da imagem do que do conceito. Embora a poesia de Augusto abra muito espaço para o conceito (as reflexões científicas, metafísicas, etc.), ele é tão visual quanto Lorca. Igualmente hábil na conjuração de imagens inesperadas, vívidas, desconcertantes e inesquecíveis. Ariano se referiu ao famoso verso: “Somente a ingratidão, esta pantera, foi tua companheira inseparável...” e disse brincando que plagiou essa pantera de Augusto a vida inteira.

Ele citou também a quadra famosa de “Queixas Noturnas”: “Quem foi que viu a minha Dor chorando? / Saio. Minh’alma sai agoniada. / Andam monstros sombrios pela estrada / e pela estrada, entre estes monstros, ando!”. Ariano usou este verso num dos sonetos (“A Estrada”) do seu ciclo de “iluminogravuras”. Estes versos me lembram um poema dramático de Guerra Junqueiro em que um peregrino caminha pelo mundo rodeado de monstros. Cada vez que ele reza, os monstros tornam-se mais diáfanos, menos materiais, e cada vez que sua fé fraqueja os monstros se revigoram. (Não encontrei este texto na Internet – vou ter que procurar numa biblioteca de verdade.)

O verso de Augusto me sugere tanto o poema de Junqueiro quanto alguma HQ desenhada por H. R. Giger, ou um quadro de Dali. Este é o poder do poema “imagético”: evocar uma imagem sem descrevê-la. Assinalar a presença do monstro, para que o leitor caminhe entre os monstros que ele terá que evocar do seu repertório de referências. Os monstros sombrios existem na memória e na imaginação de cada um, e mesmo que os monstros que eu vejo sejam desconhecidos de Augusto, foram evocados por ele, graças à faísca de sua frase.



terça-feira, 15 de janeiro de 2013

3083) Que calor é esse (15.1.2013)




Meu amigo! Que calor é esse. A esquadria de alumínio derreteu e colou, ainda bem que a janela estava aberta. O calor tá tão grande que eu deixei uma xícara de café em cima da mesa e meia hora depois ela tinha esquentado. A água fria do chuveiro vem mais do que morna. E quando a gente sai e se enxuga, quando vê já está enxugando o suor. Se ligar o ar condicionado, é melhor vedar a porta com fita crepe. Na rua, nem é bom falar; a gente sua no sol e seca na sombra, ou o contrário, e perde meio litro dágua a cada cem metros. Vi gente com bolsa de soro fisiológico presa nas costas tipo mochila. Sentei na janela do ônibus e quando desci tinha bronzeado o lado esquerdo do rosto. Nos relógios digitais da calçada a temperatura aumenta mais depressa do que a minutagem. Meu amigo! Isso é calor ou o test-drive do fim do mundo? O único gole gelado da cerveja é o primeiro. Tem gente procurando gordo na calçada pra poder andar na sombra. Saí ontem de tarde e precisei entrar em dezessete Bancos pra dar uma aliviada. Recuperei palavras em desuso: canícula, soalheira, rechinar, ignívomo. O pior é que tem hora que não é só o sol em si, é que parece que alguém só de sacanagem cobriu a cidade com uma redoma. Não sopra uma brisa, não corre um ventinho sequer, o mormaço nos envolve como um casulo invisível e pegajoso. É preciso fazer força pra respirar; o ar se faz de difícil, só entra à custa de muito assédio, muita coerção, quando não de ameaça pura e simples. O ventilador está ligado mas nem com a mão à frente dele a gente sente alguma coisa. O ar quente não sobe mais, fica depositado no chão, sem forças. Você anda na rua forçando a passagem através desse aluvião de moléculas exaustas. Meu amigo! Pense num contêiner de metal largado no Saara. E o Sol? Perderam o controle sobre esse cidadão, ou então a órbita da Terra está se aproximando. O danado queima com força, parece ter intenções malévolas, parece ser algo de ordem pessoal. Sem falar que o dia diminuiu, mal escurece no oeste já começa a clarear do outro lado, e recomeça o tempo de fritura e ebulição. Ontem fiz um pedido no disk-japa; quando chegou, o sashimi estava assado. Meu amigo! Aqui em casa os quadros estão suando tinta. Em cada lugar que eu paro deixo uma poça de mim. Essa noite sonhei que era Joana d’Arc, pode uma coisa dessa? Entrei na sala e tinha uma planta se abanando com as próprias folhas. É engano meu ou as paredes estão se envergando? Me distraí parado e o sapato grudou no piso, só saí porque me descalcei. Mas tudo bem. Fui na janela agora e lá vem um paredão de nuvens de chumbo, crescendo por cima dos prédios. Acho que agora as coisas vão melhorar.


domingo, 13 de janeiro de 2013

3082) Ruínas (13.1.2013)




(Ian Ference)


Ruínas urbanas mostram como o metabolismo da civilização parece com o do corpo humano. Morte e nascimento o tempo inteiro. Não apenas a destruição violenta das guerras, terremotos, catástrofes; mas a do abandono político, do descarte imobiliário, da obsolescência física por desmando ou falta de planejamento. Construções que perdem a função e não são demolidas, apenas deixadas de lado para que a Natureza reabsorva suas matérias primas.

Hospitais caindo aos pedaços ou indústrias tomadas pelo matagal bravio são contrapartidas concretas, visíveis, para todos os outros tipos de estagnação e desmoronamento. Grandes grupos financeiros que quebram, afundam e são canibalizados pelos Bancos maiores. Partidos políticos cujas lideranças debandam após a primeira grande crise, deixando atrás de si apenas uma legenda baldia a ser ocupada pela matilha anônima de oportunistas e aproveitadores. Sobrenomes aristocráticos cuja liquidez financeira se esvai, na lenta sangria que faz definhar uma geração após a outra; e que tentam manter-se à tona do anonimato mediante colunas sociais e matrimônios políticos. Empresas que floresceram e incharam, primeiro graças ao protecionismo, depois ao monopólio, mas cuja espinha é quebrada por uma reviravolta tecnológica e sobrevivem vendendo as partes não-vitais de sua estrutura, até se desfazerem num farelo de ações sem valor.

Por toda parte percebemos essas lentas implosões sociais; às vezes levam um século para chegar ao fim. Estruturas vazias de vida, ou vazias da energia necessária para mantê-las vivas; estádios de arquibancadas derruídas cercando um enorme atoleiro; colégios desabando sob tetos apodrecidos de chuva; fábricas habitadas somente por lagartixas e lacraus. A pressa com que a arquitetura e a engenharia põem de pé essas estruturas arrogantes é inversamente proporcional ao tempo que a Natureza dedica a varrê-las do mapa com o vento suave da passagem dos anos. As ruínas célebres do mundo (pirâmides, coliseu) funcionam como um relógio em contagem regressiva, rumando para o oblívio mas parecendo nos dizer que seu terrível recado ainda não foi escutado por todos.

Um prédio em decomposição é a derrota da aparência para a funcionalidade. Como se aquela estrutura fosse uma obra de arte cujo impulso inicial foi dado pela Razão. Ela o criou com sua auto-suficiência e seu entusiasmo às cegas, mas após esse gozo precoce retirou-se, deixando o corpo, indefeso, entregue às forças lentas do Inconsciente, da Natureza e do Acaso.  Uma ruína é cega e julga-se invisível, mas está sempre brotando na paisagem como um dente podre no sorriso de um candidato ou “o câncer que nasce nos lábios da miss”.


sábado, 12 de janeiro de 2013

3081) O texto e o resto (12.1.2013)





Quando a Jovem Guarda tomou conta do Brasil de 1965 em diante (mais ou menos), e Roberto Carlos fazia estremecer a Tradicional Família Brasileira berrando seu slogan punk-satânico “Quero Que Vá Tudo Pro Inferno”, a Igreja Católica começou a constatar uma enorme evasão dos jovens, que antes eram obrigados pelos pais a assistir a missa todo domingo. A missa estava agora às moscas, porque a galera só queria saber dos carangos, das garotas papo-firme, das botinhas sem meia. Deve ter havido algum serão no Vaticano, e eles tomaram uma sábia decisão: toda missa agora teria um conjunto de iê-iê-iê (o termo “banda de rock” não existia ainda) tocando as músicas do momento, para atrair os jovens de volta. Dito e feito. Os jovens afluíam à catedral para ver os conjuntos; mas assim que o conjunto parava de tocar ia todo mundo embora e o padre ficava pregando no deserto.

Me lembro disso quando vejo o mercado editorial discutindo certas vantagens do livro eletrônico, principalmente quando se fala no livro eletrônico infantil. A vantagem do livro eletrônico, por exemplo, é que além das ilustrações coloridas ele tem ilustrações animadas e sonoras. Não mostra apenas um patinho cor-de-laranja na lagoa azul: o patinho consegue nadar de um lado para o outro, a água se espalha em ondas, e apertando um botão ouve-se o “quac, quac” inconfundível. E assim por diante.

Minha questão: o uso de animações, sons, imagens em movimento nos livros infantis não iria justamente afastá-los do mais importante, o hábito de ler um texto?  Quando os padres católicos começaram a chamar os conjuntos de Jovem Guarda queriam atrair os jovens para ver a missa, mas de nada adiantou – os jovens só se interessavam pela Jovem Guarda que eles ofereciam. No caso dos livros, a infância é um momento crucial para a criança, em fase de alfabetização, descobrir o prazer de ler o texto, de sair soletrando letrinha por letrinha, formando o som das palavras e evocando através delas as idéias correspondentes. Um livro de literatura deve privilegiar o texto, não o resto.

Reconheço inclusive o importantíssimo papel das ilustrações nos próprios livros de papel: sei de livros infantis meus que venderiam muitíssimo menos se fossem apenas o texto nu, o preto no branco da folha. Mas a melhor maneira de tirar os guris da frente da TV e atraí-los para o livro não é transformando o livro numa sucursal da TV. Os textos, as palavras escritas, são o objetivo do livro. São um desafio e uma recompensa que é impossível obter de outra forma. Se não fizermos uma pessoa começar a amar o texto na infância, que chance haverá de que ela o ame no futuro?



sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

3080) Alegria de pobre (11.1.2013)






Tempos atrás, durante um trabalho que fiz para TV, vi dezenas de entrevistas com estrangeiros que vivem no Brasil ou que conhecem bem nosso país.  Perguntava-se a eles por que motivo gostavam do Brasil, dos brasileiros, o que achavam que havia de especial em nossa terra.  Algumas respostas repetiam-se, com insistência.  Uma delas era que os brasileiros são geralmente alegres, “inclusive os pobres”, diziam eles com espanto.

O que faz pessoas muito pobres serem alegres? E a questão não é apenas serem pobres, é estarem mergulhados em outros problemas, resultantes ou não da pobreza: doença, violência, etc. Ainda assim, uma grande parte dessas pessoas (claro que não são todas) consegue, no meio dos problemas, rir, brincar, dizer piadas ao longo do dia, reunir-se para cantar, dançar, etc.  Visitantes que vêm de países mais ricos e mais soturnos ficam perplexos diante dessa aparente alienação. Já ouvi comentários tipo “se não passassem o domingo tocando violão e bebendo cachaça, talvez já estivessem numa situação financeira muito melhor!”. Pra vocês verem o quanto gente rica pode ser obtusa.

Acho que esses pobres descobriram uma coisa elementar: o nosso estado de espírito (alegria ou tristeza) resulta em grande parte de uma decisão nossa. É decisão nossa ficar alegre ou ficar triste. Como quem diz: “Já que estou lascado, pelo menos vou ficar alegre durante algum tempo, pra desgraça não ser completa”. E ficam de fato alegres, mas não devido ao violão e à cachaça. Ficam porque escolheram. Por outro lado, um sujeito mais “bem de vida”, com casa própria, com poupança, bem de saúde, etc., pode perder o emprego e ficar em depressão, mesmo sem problemas urgentes batendo à sua porta. A depressão é também uma decisão sua, mesmo que seja uma decisão meio inconsciente. Ele está mergulhado numa ética meio calvinista, de que “o trabalho enobrece”, de que nossa existência se define pelo trabalho que executamos. E quando o cara está sem trabalho sente-se inferiorizado, amputado, impotente. E para ele a reação moralmente correta é entristecer-se com isso. No Japão, p.ex., acontece muito.

Tanto alegria quanto tristeza podem estar embutidas em nossa cultura coletiva, podem ser consideradas reações normais numa cultura e moralmente condenáveis em outra. Num indivíduo, claro, podem ser influenciadas por fatores genéticos, pelos distúrbios da química interna de cada um. Mas em grande parte derivam do fato de que certas culturas consideram a alegria uma resposta legítima a uma situação difícil e impossível de resolver pela própria pessoa; e outras culturas louvam a tristeza como uma resposta mais honrosa, mais moralmente nobre.



quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

3079) Leitura e diversão (10.1.2013)




(ilustração: Valentine Rekunenko)


Qual seria o motivo sério que poderíamos opor ao da leitura por diversão, por entretenimento? Estudo, pesquisa? Aprimoramento espiritual? Elevação intelectual? Isso pode até ocorrer, mas não é em função disso que eu leio, e acho que o mesmo ocorre a muita gente. 

Quando leio autores ditos difíceis estou disposto a investir um certo esforço em busca de uma experiência mental que eu não teria de outra forma. Quando leio para me divertir, procuro um livro que não vai me exigir muito esforço e que provavelmente vai me dar uma experiência não-problemática, relaxante. 

Claro que de pessoa para pessoa essas receitas variam. Ler Guimarães Rosa (a cujo estilo estou habituado) para mim é uma diversão, mais do que ler certos autores jovens de hoje, nos quais preciso passar meia hora em cada página, porque eles usam uma organização de prosa com que não tenho familiaridade.

A literatura nos propõe uma “experiência recompensadora”. Lemos livros para viver indiretamente experiências alheias, projetadas nos personagens e situações que imaginamos a partir dos textos. Essas experiências são recompensadoras de vários modos, dando-nos acesso a uma percepção da vida humana mais intensa do que a da vida real, porque é uma experiência distanciada. 

Uma experiência maleável: podemos voltar atrás e reler um capítulo inteiro, aprofundando e enriquecendo a primeira leitura. 

Experiência virtual: o caráter não concreto da experiência nos permite vivenciar situações que não ousaríamos vivenciar na vida real, ou que, se vivenciadas, nos trariam mais ansiedade do que prazer (histórias de terror ou de violência, p. ex.). 

Experiência impermeável: com exceção dos efeitos psicológicos, nada do livro passa para a vida do leitor, nada contamina seu corpo, nada o atinge fisicamente.

O que nos diverte, afinal, lendo um criador de situações torturadas como Dostoiévski? Em casos assim, a diversão não nasce das situações em si (elas são muitas vezes penosas) mas do fato de que podemos vivenciá-las sem compromisso, sem nenhum grau de envolvimento que não dependa unicamente de nossa decisão. 

A angústia dostoievskiana é só dele, e podemos até usá-la como um recurso que nos faz retornar mais relaxados para uma vida real em que tragédias íntimas daquela dimensão raramente acontecem. 

Por outro lado, se o livro nos propõe uma “realidade projetada” que gostaríamos de experimentar sem reservas (uma história de amor feliz, uma história, engraçada, etc.), basta-nos reduzir o foco de distanciamento e mergulhar de cabeça no mundo da narrativa; esta é a experiência proposta pela ficção dita escapista ou de mera diversão.



quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

3078) Checkpoints (9.1.2013)





O conceito de checkpoint é típico da informática e pode ser decisivo para a trans-humanidade do futuro, quando formos capazes de transferir nossas mentes para um suporte eletrônico (“copiar meu cérebro inteiro num pen-draive”). Nos games de ação, o checkpoint é aquele ponto ao qual você retorna toda vez que morre.

Digamos que é um jogo de II Guerra Mundial. Você está oculto no mato, numa colina, vendo lá embaixo uma ponte que precisa atravessar. Na cabeça de cá da ponte há uma pequena casamata de proteção, ocupada por inimigos. Você desce a colina atirando granadas, disparando a metralhadora. Os soldados da casamata respondem ao seu fogo. Ao chegar perto, você é atingido e morre. Black-out. Quando você recomeça, está de volta ao checkpoint, que é no mato, sobre a colina.

Mas digamos que você desce atirando, mata os inimigos e se refugia dentro da casamata. Você conquistou este ponto, e ele é agora o seu checkpoint. Sua tarefa passa s ser cruzar a ponte sob fogo inimigo e chegar ao lado oposto, onde há um jipe abandonado que pode ser útil para fugir. Você corre pela ponte, atirando. Se for atingido e morrer, você já não volta para o mato, na colina; volta para a casamata, um checkpoint mais avançado. Desse modo, cada posição conquistada faz com que você não precise recomeçar o jogo do zero, e assim você vai avançando.

Quem usa computador, quando precisa dar uma mexida mais profunda, dispõe de um recurso de salvar as configurações do sistema no momento atual, antes de começar a fazer alterações. Se der uma zebra, é para esses estado de coisas que você volta, quando botar ele para funcionar de novo. O mesmo quando a gente aperta “Ctrl + B” para salvar um arquivo. Se o computador apagar de repente, está tudo salvo até aquele ponto.

Uma utilização clássica desse conceito na FC é uma série de contos de John Varley, dos quais o mais famoso é “The Phantom of Kansas” (1976), em que a memória humana é salva em bancos e transferida para um novo corpo, quando a pessoa morre. Digamos que o cara salvou sua memória em 1 de janeiro pela última vez; se ele morrer no dia 15, ao despertar está de volta ao estágio anterior, e só perde o que lhe aconteceu nestes últimos quinze dias. A solução seria salvar de minuto em minuto – o que seria impraticável. Essa diferença (memórias recentes não recuperáveis) dá origem a tramas policiais, de mistério, etc., porque o personagem é capaz de “ressuscitar” mas está com “amnésia” quanto aos dias mais recentes. Ele só lembra o que lhe aconteceu até o checkpoint, ou seja, a última vez em que salvou sua própria personalidade no Banco. É um retrato literariamente plausível de um cenário futuro.



terça-feira, 8 de janeiro de 2013

3077) "Estrela Distante" (8.1.2013)






Este romance curto de Roberto Bolaño (1996) saiu pela Companhia das Letras e depois (a edição que tenho) na coleção da Folha de S. Paulo de capa dura, vendida nas bancas. O autor explica, numa nota inicial, que é uma expansão do último capítulo de seu A Literatura Nazista na América, coletânea de contos sobre escritores imaginários, um exercício meio borgiano em que Bolaño imagina toda uma fauna de nazistas, fascistas e simpatizantes da direita em geral, produzindo poesia, romance e até mesmo ficção científica no continente americano. O autor dedicou-se a expandir a história daquele último personagem, transformado aqui em Carlos Wieder, tenente da força aérea chilena, torturador, serial killer, que se infiltra como espião em grupos de poesia de vanguarda.

Essas biografias fictícias são o espaço ideal para Bolaño desenvolver sua prosa, jornalística no que este termo tem de melhor. Descrições breves e vívidas, com mergulhos ocasionais e surpreendentes na subjetividade do narrador, que na maior parte do tempo está apenas reconstituindo e comparando suas próprias lembranças e as lembranças alheias. Como em Os Detetives Selvagens (http://bit.ly/WnNhCq), Bolaño monta o mosaico do personagem de fora para dentro; não temos acesso à consciência de Wieder, e na verdade pouquíssimas falas suas são reproduzidas. Vemos o monstro pelo lado de fora, pelos relatos de como ele cruzou na vida de numerosas pessoas. Se bem que o narrador de Bolaño ousa descrever (sob o pretexto de estar supondo, estar imaginando como as coisas aconteceram) até mesmo um dos mais arrepiantes crimes do chileno.

Wieder é um criminoso que incomoda até os fascistas. O capítulo 6 narra o episódio em que ele cai em desgraça dentro do regime Pinochet, pela sua ousadia, crueldade e morbidez desafiadora. Lembra o nazista culto do conto “Deutsches Requiem” de Borges; lembra por outro lado o personagem de Dirk Bogarde no filme O Porteiro da Noite de Liliana Cavani. Tem a serenidade dos psicopatas movidos a certeza: “dominante, seguro, os olhos como que separados do corpo, como se olhassem a partir de outro planeta”. O narrador do livro (um possível Bolaño que jamais diz o próprio nome) cita um oficial de Pinochet para quem Wieder “não fez mais do que aquilo que todos os chilenos tiveram de fazer, deveriam ter feito ou quiseram mas não puderam fazer”. Na terrível reta final, o narrador diz: “Esta é a minha última transmissão a partir do planeta dos monstros. Não mergulharei nunca mais no mar de merda da literatura. De agora em diante, escreverei meus poemas com humildade e trabalharei para não morrer de fome e não tentarei publicar nada”.



domingo, 6 de janeiro de 2013

3076) A base da música (6.1.2013)





A música se compõe de ritmo, melodia e harmonia. Não sei se está assim nos compêndios musicais, mas é assim que está no meu ouvido e no meu entendimento. O ritmo é a sucessão de batidas fortes e fracas (acentuadas e não-acentuadas), a ordem que elas criam e as aparentes desordens que logo se revelam (idealmente) como ordens mais complexas e menos previsíveis, mas que a gente percebe depois de algum tempo. Ritmo é a parte mais básica da música. É algo que pode ser criado batendo com a mão na mesa ou o pé no chão, estalando ou tamborilando com os dedos... É a camada mais primal. Bebês incapazes de acompanhar uma melodia são sensíveis ao ritmo. O ritmo na música popular consiste basicamente na repetição das mesmas sequências de acentos fortes e fracos.

Uma melodia é uma sucessão de notas musicais no tempo, quando elas parecem estar contando uma historinha abstrata de tensões e relaxamentos, ascensões e quedas, avanços e recuos, percursos em linha reta e desvios inesperados. Cada cultura tem seu idioma melódico próprio; basta ouvir um CD de música folclórica chinesa ou indiana. Há pessoas com sensibilidade e imaginação melódica que são capazes de criar melodias mentalmente, cantarolando, sem saber tocar o mais simples instrumento. (Rosil Cavalcanti era assim.) Outros têm, como a gente diz, o “ouvido duro”, tapado, que só às custas de muito esforço consegue perceber as sutilezas melódicas. De um modo geral, não há ouvido tão duro que não possa ser educado até certo ponto. Meu ouvido é duro, e eu o eduquei na marra.

Ritmo e melodia são as coisas que mais chamam a atenção e mais “pegam” no ouvido das pessoas, e é nesses dois aspectos que se baseia a canção popular mais direta, mais simples: marchinha de carnaval, rock, forró, samba, etc.  Já a harmonia é uma conquista conceitual mais complexa – é o efeito estético produzido por duas ou mais notas soando juntas. A harmonia tem também uma “melodia” própria, porque uma sucessão de acordes bem concatenados pode causar um efeito estético equivalente ao de uma sucessão de notas. Dentro de uma sucessão harmônica é possível encaixar inúmeras melodias. Sambistas, bluesmen, etc. são especialistas nisso. É possível pegar a harmonia de “Garota de Ipanema”, acorde por acorde, e compor uma melodia nova que só vai guardar uma distante semelhança com a melodia original. Muitas acusações apressadas de plágio são feitas porque uma canção usa a mesma harmonia de outra já existente, mas cria uma melodia diversa em cima dela, ou seja, usa a mesma base para compor uma nova obra. O ouvinte percebe a semelhança, sem entender inteiramente o porquê, e fala em “plágio”.