(John Crowley)
Muitos anos atrás, numa preguiçosa madrugada baiana, eu estava assistindo um programa de TV em que Ferreira Neto entrevistava Gilberto Gil. Citando algum trecho de uma canção do compositor, o jornalista perguntou-lhe se ele praticava o que pregava naqueles versos. Gil respondeu: “Olhe, rapaz... o artista escreve muito além do que ele é. Ele é como o alpinista, que lança sua corda lá no alto, para que ela se prenda em algum lugar e ele possa subir. O verso do poeta alcança os lugares onde o poeta não foi ainda, e ajuda o poeta a chegar lá”.
Esta definição de “ambição” me parece tão boa quanto qualquer outra, com a vantagem adicional de prescindir de julgamentos morais, que muitas vezes colorem erradamente nossa visão das coisas. Ambicionar é querer ir mais longe, fazer o que alguém tentou mas não conseguiu, ou tentar o que nem sequer foi tentado. Sem ambição ninguém escreve Os Lusíadas, ninguém grava o Sergeant Pepper´s, ninguém pinta o Perna de Pau. Sem ambição ninguém se elege presidente dos EUA, ninguém derruba o World Trade Center.
Dou este último exemplo para reforçar a idéia de que a ambição não é boa nem é má em si própria. Ela é um impulso de ousadia e de vontade-de-excesso que tanto pode levar Hitler a anexar a Áustria como pode levar Ronaldo Fenômeno a partir do grande círculo até a marca do pênalte, cercado por um enxame de zagueiros, e estufar a rede sem dó nem piedade. Porque também existe uma ambição-do-Bem, para usar esta simpática expressão tão em voga. A vontade de fazer muito. A necessidade de que Grandes Coisas aconteçam. O entusiasmo de nos sentirmos participando de Algo Importante e de saber que com uma palavra nossa, um gesto, uma decisão, este Algo Importante levantará vôo e sua presença começará a fazer bip-bip em todos os radares da História.
Em seu conto “Novelty”, John Crowley fala de um escritor pouco ambicioso, o qual um dia percebe “...que a diferença entre ele e Shakespeare não era propriamente talento – mas fibra, intrepidez. A capacidade de não se deixar amedrontar pelas suas maiores e mais poderosas inspirações, e de simplesmente sentar-se e pô-las no papel. E a terrível imobilidade que o acometia quando uma idéia realmente imensa e multifacetada subitamente tornava-se clara em sua mente, algo com as dimensões de um Rei Lear mas com a precisão de um soneto. Se pelo menos tais idéias não o assaltassem assim por inteiro, de uma só vez, enormes e perfeitas, deixando-o amedrontado e impotente diante da perspectiva de ter que articular aquilo tudo, cada palavra, cada cena, cada página!”
O artista desambicioso é um jogador que, diante do goleiro, procura um companheiro a quem passar a bola. Na vida só existem dois verbos: “ficar avaliando” e “arremessar-se”. O verdadeiro ambicioso é o que sabe cultivar estas duas virtudes tão consangüíneas: a paciência e a audácia.