terça-feira, 6 de dezembro de 2011
2732) Dr. Sócrates (6.12.2011)
O aspecto mais delicado, ao comentar a morte de alguém vitimado pela droga, é evitar o discurso moralista e hipócrita (“Jovens, afastai-vos! As drogas matam!”). Como posso dizer isso, se eu também bebo? Sócrates bebeu valentemente em suas últimas décadas de vida. Segundo a imprensa, estava com o fígado praticamente destruído, e sua única chance real de sobrevivência era aguentar firme até conseguir um transplante. Infelizmente, não deu. A culpa é da bebida? É do bebedor? Diante de situações assim, temos necessidade de atribuir culpa a alguém, como se achar um culpado pudesse de certa forma apaziguar a nossa mágoa pela perda. Aqui, o culpado e perda são uma só pessoa, porque ninguém obrigava Sócrates a beber, ele bebia porque gostava, como a imensa maioria dos que bebem, inclusive eu. A questão, mais uma vez, é saber quando parar. Parar por hoje. Dizer: “Parei por hoje, me traz uma mineral com gás”, ou algo equivalente. Se você todo dia souber a hora de parar de beber por hoje, talvez tenha chance de continuar bebendo em paz até uma idade avançada.
Sócrates, como jogador, era um desses casos improváveis de atleta, como aquele besouro que não pode voar mas voa. Sócrates era magro, desengonçado. Quando corria, parecia o tempo todo a ponto de cair sozinho. Não teria físico para suportar o futebol vale-tudo de hoje em dia, todo à base de safanões, encontrões, esbarrões, trancos e peitadas. O que o salvava era a imensa habilidade com a bola, na qual batia com a precisão de um taco de sinuca, dando-lhe a força, a trajetória e o efeito que bem entendia. E a inteligência. Era alto, enxergava o jogo inteiro lá de cima. Parecia saber sempre onde estava cada companheiro e cada adversário, para onde se deslocavam, e a que velocidade. No meio dessa confluência de trajetórias, ele fazia sua navegação leve, ágil, bola dominada, sem esbarrar em ninguém, ziguezagueando por entre a zaga e muitas vezes executando uma assistência diagonal que deixava seus companheiros na cara do gol.
O quarteto que ele compôs na Seleção Brasileira de 1982 com Zico, Falcão e Cerezo não tem similar, na combinação de estilos tão diferentes e complementares; em qualidade pura, foi equivalente ao quarteto Pelé, Tostão, Gerson e Rivelino na Copa de 1970. Falam muito nos passes de calcanhar do doutor. O calcanhar estava para ele assim como o trocadilho estava para Lourival Batista: um detalhe pitoresco numa obra mais profunda e mais complexa. Irônico, incisivo, crítico, boêmio, conhecia as entranhas do futebol e conseguia continuar achando-o belo. Um brasileiro de biografia improvável, e de um carisma tranquilo e sem pose.
Assinar:
Postagens (Atom)