As ondas sucessivas de “fake news”, noticiários falsos,
mentirosos, caluniosos etc. que se veem na imprensa e nas redes sociais são
muitas vezes atribuídas à Internet. “Com a Internet ficou muito fácil
falsificar coisas,” dizem os críticos. “Os jovens da era da Internet são
ingênuos, acreditam em qualquer mentira,” dizem outros.
A Internet não inventou nada disso. Essas coisas, como se
diz na Paraíba, são do tempo em que Adão era cadete.
Num contexto político acalorado, radicalizado, as pessoas
querem ser as primeiras a ter conhecimento dos fatos. Quando os “fatos”
correspondem aos seus interesses ideológicos (elas passam o dia procurando
fatos assim) elas os encampam sem pesquisar, sem checar fontes, sem rastrear de
onde veio aquela notícia tão chocante. “Nada mais crédulo do que quem quer acreditar”, como já disse o poeta.
O mais irônico das “fake news” é que nunca foi tão fácil
pesquisar a autenticidade de uma informação; e nunca se o fez tão pouco.
A pior coisas dessas “fake news” são duas, na verdade. A
primeira é disseminar mentiras, ódio e preconceitos. Esse é o cerne da questão.
A segunda é – e aqui eu chego por fim ao meu território
de jurisdição, que é a criação artística --- produzir um discurso pouco nítido contra
tudo que é invenção, contrafação, burla, metalinguagem. Existem muitos discursos
desorientados contra “falsos contos”, “autores inventados”, “reportagens
jornalísticas com excesso de liberdades”, “documentários fake” e assim por
diante.
Tem gente que se irrita com Fernando Pessoa por ter
inventado poetas que não existiam, com o Dicionário
Kazar por contar a história de um povo imaginário, com pseudo documentários
estilo This Is Spinal Tap,
acompanhando uma banda de rock fictícia.
Há todo um universo de “arte artificial” que não tem nada
a ver com mentiras destinadas a enganar alguém e aproveitar-se disto, seja
politicamente, seja financeiramente.
Uma porta de entrada para essas práticas é o esclarecedor
e bem-humorado filme de Orson Welles, Verdades
e Mentiras de Orson Welles (“F for Fake”, 1975). (Foi onde vi pela primeira
vez com destaque a palavra “fake”, e nunca mais esqueci.)
Falando de pintores que falsificam quadros, e do cara que
falsificou um livro de memórias, Welles mostra que no mundo da criação
artística, ao contrário do jornalismo, a invenção faz parte das regras, e nada
pode ser considerado verdadeiro ou falso “a priori”. Numa obra de ficção não se
aplica o critério de “é verdade ou é mentira”.
O mundo da arte está cheio de obras imitadas, inventadas
ou inexistentes, que algumas pessoas bolaram com intenções estéticas – nunca
com intenções de “ganhar dinheiro às custas de otários” ou de produzir ódio
político.
Muitas dessas obras surgem como experiências estéticas, e
o exemplo mais óbvio é o do próprio Orson Welles, quando adaptou A Guerra dos Mundos (1898) de H. G.
Wells para uma transmissão em forma de noticiário de rádio, fazendo milhões de
norte-americanos acreditarem que os EUA estavam sendo invadidos por marcianos.
Mais interessante do que isto, no entanto é inventar uma
obra de arte que não existe, dando sua existência como certa, e administrar as
consequências.
H. P. Lovecraft inventou o Necronomicon, o catastrófico manual de poderes ocultos escrito
“pelo árabe louco Abdul Alhazred”. Por certo não imaginou que o livro acabaria
existindo de verdade. É um livro que lido pode levar à loucura; seu poder é tão
forte que os seguidores de Lovecraft já escreveram e publicaram talvez algumas
dezenas de versões do “livro que não existe”.
Lovecraft talvez não tenha tido a intenção de “fazer uma
pegadinha”. Mas Jorge Luis Borges, que era mais humorista do que ele,
certamente a teve quando publicou em 1936, em sua coletânea Historia de la Eternidad, uma resenha
detalhada e elogiosa a um livro intitulado A
Aproximação a Almotásim, escrito por um indiano chamado Mir Bahadur Ali e
prefaciado pela novelista britânica Dorothy Sayers.
O livro não existia, para decepção de alguns intelectuais
argentinos que o encomendaram à editora Victor Gollancz, em Londres.
("capa" de George Kranitis)
Borges explicou depois, numerosas vezes, que para ele era
muito mais interessante imaginar uma idéia originalíssima para um livro de 400
páginas e, em vez de perder tempo escrevendo-o, fazer de conta que tinha sido
escrito por outra pessoa e comentá-lo. Com isso, a idéia central do livro
passava a incorporar o banco-de-dados da literatura imaginativa, sem que ele
tivesse que redigir 400 laboriosas páginas para isso.
Isto é uma fraude? De jeito nenhum: é ficção, artifício, termos
que Borges trouxe para o centro de um debate literário portenho que até então
se focava na missão de “reproduzir a realidade”.
No sentido que estou usando neste texto, “Fake Art” não
se refere à cópia fraudulenta de uma obra famosa, como Elmyr De Hory, o falsário
rico, mostra fazer no filme de Orson Welles.
“Fake Art” é o que faz Borges, dizendo que o livro tal-e-tal existe,
comentando-o, levando-o a sério, e depois percebemos que o livro existe, sim,
mas só sob a forma daquele comentário.
Para mim, são mais interessantes as obras (como o Necronomicon) que são inventadas e
depois, por força de seu poder magnético e sugestivo, acabam sendo criadas por
alguém. Como os hronir, os objetos
conceituais de outro conto borgeano: mostra-se um terreno qualquer a alguns trabalhadores
e se diz que ali há tais e tais objetos enterrados. Eles cavam e acabam
encontrando os tais objetos – que na verdade não existiam antes, “foram
produzidos pela própria expectativa de encontrá-los”. Em Tlön, quem procura,
acha.
Uma divertida história no mundo do rock é a do
super-grupo The Masked Marauders, cujo LP foi anunciado, coberto de elogios,
numa resenha borgeana da revista Rolling
Stone em 1969. A resenha (escrita por Greil Marcus, um dos meus críticos de
rock preferidos, sob o pseudônimo de “T. M. Christian”) dizia que o nome da
banda escondia super-astros como Mick Jagger, Bob Dylan, os Beatles e outros.
Era uma reunião bastante possível de acontecer, entre músicos
amigos que resolvem tocar juntos, sob um pseudônimo. (Mais ou menos como Dylan,
George Harrison e outros vieram a fazer anos depois com o grupo The Travelling
Wilburys.) A resenha foi escrita em tom
de gracejo, mas começou a ser levada a sério, principalmente pelos fãs e pelos
donos de lojas de discos.
Surgiu então a reviravolta genial. Uma banda californiana
foi alugada para gravar o disco que não existia, mas cujas faixas haviam sido
descritas na revista. A criação meramente conceitual foi concretizada no
estúdio. O disco não existia – mas o sucesso da resenha fez com que ele
acabasse sendo composto e gravado.
Aqui, uma matéria completa, inclusive entrevistando Greil
Marcus e outros perpetradores:
Isto me lembrou um episódio meio obscuro da ficção
científica, um dos momentos mais borgeanos que o gênero já vivenciou.
Quando John W. Campbell era editor da revista Astounding Science Fiction, publicou no
número de novembro de 1948 uma carta de um leitor (Richard A. Hoen, de Buffalo,
NY) elogiando o número de novembro de 1949 da revista, desde a capa de Hubert
Rogers até alguns contos que ele citava nominalmente: “What Dead Men Tell” de
Theodore Sturgeon, “...And Now You Don’t” de Isaac Asimov, “Gulf” de Robert
Heinlein, “Over the Top” de Lester Del Rey e outros.
A carta, é claro, era uma brincadeira do leitor –
fingindo que estava escrevendo “do futuro” e comentando contos, inventados, de uma
revista que só deveria ser publicada doze meses depois.
Campbell “pegou na palavra” a previsão (ou o
“cronoclasma”, paradoxo temporal, segundo John Wyndham) do leitor e teve doze
meses para encomendar àqueles autores os contos cujos títulos Hoen havia
imaginado. E a Astounding SF de
novembro de 1949 saiu quase exatamente (foi impossível reproduzir 100%) como
Richard Hoen havia imaginado.
Oscar Wilde dizia que é mais fácil a vida imitar a Arte
do que a Arte conseguir imitar a vida. Episódios como estes últimos mostram que
obras fictícias ou meramente conjeturais acabam às vezes adquirindo existência
real porque impressionam algumas mentes criativas, as quais se dedicam, a
partir daí, a trazê-las ao mundo.
Por isso contesto quem chama isso de de fraude, de
picaretagem. Toda obra literária tem primeiro uma existência conjetural,
imaginária, até que alguém se decida a encarar o trabalho braçal de escrevê-la.
Os variados “Necronomicons” produzidos pelos fãs de Lovecraft não serão nunca a
obra perfeita (ou a Abominação Absoluta) imaginada por seu criador. Mas são
subprodutos dela. São filamentos da criação de Lovecraft.
Afinal de contas, todo livro escrito (de Dante a
Shakespeare, de Machado a Guimarães Rosa) é um mero subproduto do livro
imaginado pelo próprio autor; mas é de subprodutos assim que a arte e a
literatura sempre foram feitas. Ser compararmos cada livro escrito com o livro
imaginado pelo seu autor, reconheceremos que toda obra de arte é fake.