Numa entrevista recente, o jornalista e escritor Nelson Motta, que acaba de lançar um romance policial, diz: “Quando comecei a me interessar por romances policiais, comprava livros estrelados por um certo Shell Scott, provavelmente escritos por um brasileiro. Esse tipo de literatura é gibi sem desenhos. Estou tentando devolver ao mundo a alegria que Shell Scott me deu.” Grande Nelson Motta! Morro de inveja, porque compartilhei desta alegria, e não devolvi nada ainda.
Shell Scott era leitura obrigatória lá em casa entre 1960 e 1965, quando as Edições de Ouro lançaram uns 20 ou 30 livros seus. E não eram escritos por um brasileiro. Richard Prather, o autor, era um californiano (nascido em 1921) que depois de servir na marinha mercante estreou na literatura em 1950 com The Case of the Vanishing Corpse. Seus livros com o detetive Shell Scott vendiam uma média de um milhão de exemplares nos anos 50. Na década de 1970 ele moveu um processo contra seus editores, por causa de royalties, abandonou a literatura e foi plantar abacates.
Shell Scott é um detetive com 1,90 de altura, bronzeado, com cabelo louro-quase-branco cortado à escovinha. Suas aventuras são uma girândola de situações improváveis e engraçadas, onde ele divide seu tempo comendo belas mulheres e perseguido bandidos. São uma caricatura bem humorada dos policiais “noir” de Dashiell Hammett ou Mickey Spillane. Prather trouxe para a fórmula tradicional do detetive “noir” doses enormes de humor e malícia (Shere Hite, do Relatório Hite, posou para a capa de um dos seus livros quando era modelo). A Loura no Divã Negro acontece num acampamento nudista, onde Scott passa por uma série de saias-justas (se bem me exprimo) ao circular entre todas aquelas beldades; no fim do livro, ele foge num balão e aterrissa, nu, num prédio no centro de Los Angeles. Em Ela tinha aquilo ele descobre que há uma fortuna escondida no ataúde de um mafioso que vai ser sepultado, toma o volante do carro fúnebre, e dá início a uma perseguição onde dezenas de carros “seguem o enterro” no meio do tiroteio. Em A Glamurosa Dra. Lyn , um retrato imensamente realista (acho eu) da Babel de micro-religiões que é a Califórnia, Scott se disfarça de Mestre do Povo da Lua para se infiltrar nos rituais de uma Seita mística; o desfecho é de um surrealismo digno de Terry Gillian ou dos irmãos Coen.
Os livros de Shell Scott são o equivalente literário a certas comédias policiais do cinema de hoje, estreladas por Steve Martin, Bill Murray ou Eddie Murphy. A violência (tiros, socos, perseguições) e o sexo (que é constante) são diluídos pelo humor. Estou dizendo isto tudo para tentar ampliar a ótima definição de Nelson Motta: “gibi sem desenhos”. Shell Scott pertence menos à literatura do que à tradição da comédia amalucada, que floresceu no teatro, no cinema, nos quadrinhos. Quem quiser julgá-lo comparando-o com Hemingway vai dar com a cara na porta.