sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

1449) “Nighthawks” (4.11.2007)


Uma esquina deserta, de madrugada, num cruzamento de ruas estreitas onde todas as lojas estão fechadas e às escuras. Ocupando o centro e o lado direito do quadro, um café iluminado por luzes fluorescentes. Através das vidraças altas e extensas, vemos o balcão de madeira com banquinhos redondos enfileirados. Apenas quatro pessoas estão ali. Dentro do balcão, um barman com uniforme e bonezinho branco está curvado, aparentemente lavando algo na pia. Diante dele, um homem de terno escuro e chapéu cinza e uma mulher alva, ruiva, de vestido vermelho. Na outra lateral do balcão, de costas para o observador, vê-se outro homem, também de terno e chapéu.

O quadro é “Nighthawks” (algo como “Predadores, ou Aves de Rapina Noturnas”), e foi pintado em 1942 por Edward Hopper, homenageado agora em Nova York com uma retrospectiva. A obra de Hopper é numerosa e variada, e este quadro sempre me fascinou. Somente quem já “fez a noite”, quem se deu o trabalho de passar madrugadas inteiras andando a pé pelo centro velho de uma cidade, tomando uma cerveja aqui, um café acolá, e puxando papo com os boêmios da madruga, pode entender o fascínio e o mistério desta cena. (Que pode ser vista em: http://www.artchive.com/artchive/H/hopper/nighthwk.jpg.html).

Já vi todo tipo de interpretação. Para Fulano, o quadro mostra um café aconchegante, onde as pessoas encontram calor humano e simpatia na presença de meros estranhos. Para Sicrano, mostra a solidão desesperadora das grandes cidades, com pessoas taciturnas e depressivas evitando os olhares umas das outras. Para Beltrano, mostra o deflagrar de um triângulo amoroso que redundará em crime, com o barman servindo de testemunha involuntária e indiferente. Análises freudianas se basearam no fato de que Hopper pintou o casal usando como modelos ele mesmo e sua esposa. Também sugerem que o homem de costas é um Duplo, um “Doppelgänger” do outro. Ele é livre, solteiro, altivo, enquanto o outro, tenso e carrancudo, está visivelmente num beco-sem-saída conjugal.

Quando ainda não lhe sabia o título, batizei este quadro de Deadline at Dawn (“Prazo-limite ao amanhecer”), título de um livro policial de Cornell Woolrich (1944, sob o pseudônimo de William Irish) que transcorre entre a meia-noite e a aurora, em Nova York. Um homem conhece uma mulher num night-club. Os dois descobrem que são da mesma cidade do interior e que detestam Nova York. Apaixonam-se, e decidem voltar no primeiro trem da manhã para a terra natal. Mas ele se envolve num crime, é perseguido pela polícia e tem até o amanhecer para descobrir o assassino e provar sua inocência. Os dois saem pela cidade, numa corrida contra o relógio, percorrendo bares, cafés, em busca de pistas.

Na madrugada, as pessoas de bem estão dormindo: os pais de família, as donas de casa, os velhos, as crianças. A madrugada é dos predadores e daqueles que não os temem. Só sai à rua quem tem negócio, ou quem está à procura do improvável.

1448) O soneto anagrama (3.11.2007)





(o quadro de Leutze)

A intersecção da Literatura com os quebra-cabeças (jogos em que uma regra arbitrária precisa ser seguida à risca) nos dá os palíndromos, os lipogramas e outros barroquismos já comentados nesta coluna. 

Folheando o magnífico livro de Douglas Hofstadter Le Ton Beau de Marot (New York: Basic Books, 1997), que examina problemas abstrusos de linguagem e tradução, encontrei um soneto de um tal David Shulman, intitulado “Washington Crossing the Delaware”. O título alude a uma famosa pintura a óleo de E. G. Leutze que retrata um momento da Guerra da Independência norte-americana em 1776, quando George Washington cruzou com suas tropas o Rio Delaware para pegar de surpresa as tropas britânicas.

Não transcreverei aqui o soneto inteiro. Para ilustrar minha tese (que é a mesma de Hofstadter) basta-me o primeiro quarteto, que assim diz: 

A hard, howling, tossing water scene: 
strong tide was washing hero clean. 
‘How cold!’ Weather stings as in anger 
O silent night shows war ace danger!

Os versos dizem algo como: 

Uma cena fluvial árdua, cheia de uivos e de agitação: 
uma poderosa maré lavando por inteiro o herói. 
‘Que frio!’ O tempo dá agulhadas, como que furioso. 
Oh, noite silenciosa, que mostra ao ás da guerra o perigo! 

Não boto a mão no fogo por esta tradução, porque o texto original me parece truncado, sem beleza. (Quem quiser o soneto todo é só pedir.)

Mas... Faça uma pausa, amigo. Confira as letras de cada verso, e perceba que cada uma das quatro linhas citadas acima é um anagrama perfeito (ou seja, contém exatamente as mesmas 29 letras, inclusive as repetições) do título do soneto. 

E o soneto todo é assim: suas catorze linhas são catorze anagramas do próprio título, e conseqüentemente todas são anagramas umas das outras. E o soneto inteiro retrata, de maneira aceitável, a cena descrita. É aquilo que os franceses chamam de “tour de force”, uma demonstração fenomenal de habilidade.

Isto é poesia? Não sei. Tecnicamente é, pois se trata de um soneto que obedece às regras básicas da forma, ainda que não seja um grande soneto, ou sequer um bom soneto. 

Coloca uma questão curiosa: um péssimo poema é poesia? O que define a presença da poesia: a presença de um conjunto de regras, ou a qualidade literária do resultado? 

O texto de Shulman pertence a uma zona intermediária entre a literatura e o que eu chamo de “ludismo verbal”, que inclui desde os travalínguas dos repentistas até os caligramas (poemas cujas palavras criam um desenho na página) dos poetas barrocos portugueses ou de Guillaume Apollinaire.

A façanha de Shulman talvez só seja possível numa língua como o inglês, mais monossilábica que a nossa. Duvido que alguém consiga compor em português um soneto com quinze anagramas (título mais catorze versos) que faça um mínimo de sentido. 

(Pronto, já sei que acabo de atrapalhar a vida de meia dúzia de malucos, os quais de agora em diante se dedicarão a provar que é possível, sim.)





1447) A Copa de 2014 (2.11.2007)



Liguei a TV para acompanhar a confirmação do Brasil como sede da Copa do Mundo de 2014, e fiquei entusiasmado. Na delegação que representava nosso país estavam o presidente Lula, o presidente da CBF Ricardo Teixeira, o técnico Dunga, o craque Romário... e o mago Paulo Coelho! Agora sim, eu fico confiante. Com Paulo Coelho na comissão técnica, duvido que alguém nos tire esse título.

Mas, futebol à parte, eu desconfio desses mega-eventos. Primeiro, acho que essa história de construir ou reformar uma dúzia de estádios acaba resultando na costumeira festança das empreiteiras e dos atravessadores. Um estádio de 50 milhões acaba custando 100, porque outros cinqüenta têm de ser empregados no pedágio da burocracia, onde cada trâmite de processo, cada liberação de verbas, cada rubrica de fiscalização tem que ser comprada a peso de ouro. Copa do Mundo no Brasil é uma excelente notícia para esse pessoal. Agora mesmo tive de ir fechar a janela da sala, devido ao ruído ensurdecedor das rolhas de champanha de mil reais a garrafa pipocando Brasil afora.

Em segundo lugar, a enxurrada de turistas endinheirados que aflui para um evento desse porte é uma tentação irresistível para nosso submundo. Lembram as matérias mostrando como as casas de prostituição proliferaram na Alemanha durante a Copa do ano passado? Se é assim na pátria de Lutero, avalie como vai ser aqui, na pátria de Bruna Surfistinha. E olhem que estou falando no lado (digamos) inofensivo do problema. Se a gente extrapolar essa situação para o âmbito dos traficantes e vendedores de drogas, dos batedores de carteiras, dos assaltantes a mão armada, dos gatunos de hotel, das quadrilhas de seqüestro-relâmpago... É um pouco como fazer uma maratona de natação para dez mil participantes na praia de Boa Viagem. Os tubarões agradecem.

Voltando ao aspecto futebolístico, a Copa vir para cá em 2014 nos traz uma boa e uma má notícia. A boa notícia é que dificilmente perderemos o título, mesmo jogando sob a sombra tenebrosa dos fiascos de 1950 e de 2006. A má notícia é que a Copa de 2010 já está perdida por antecipação, porque, resultados no campo à parte, existe um sutil direcionamento nessas disputas “aconselhando” Fulano a perder agora para ganhar depois. Os leitores mais ligados hão de recordar que previ, nesta coluna, que nossa Seleção perderia em 2006 e 2010 caso tivesse chances de sediar a Copa em 2014. A primeira parte da minha profecia já se cumpriu, de maneira inesperada até para mim: uma das seleções mais “galácticas” que já montamos entregou o ouro aos bandidos, de mão beijada. Como, e por quê? Fiquei sabendo hoje.

Se o Brasil se distanciasse muito no número de títulos, a disputa perderia a graça. Antes de 2006 tínhamos cinco títulos, contra três da Itália e três da Alemanha. A Itália subiu para quatro. Profetizo que a Alemanha ganhará a próxima, mas que no Maracanã ninguém nos tira o título, a não ser que algum adversário escale Obdulio Varela.

1446) A economia de Zinaldo (1.11.2007)


Eu comparo o Capitalismo Selvagem a uma floresta tropical, onde florescem as espécies animais e vegetais mais improváveis. O Capitalismo é aquela “selva selvaggia” lembrada por Dante, em cujo interior um poeta extraviado acaba encontrando o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. Ou seja: tem de tudo. Com a Divina Comédia, o poeta de Florença inculcou na nossa cultura o interessante conceito de que o Paraíso existe, mas para chegar a ele é preciso passar pelo Inferno. Tem gente que, por medo desse estágio intermediário, acaba recuando e refugiando-se no limbo do ateísmo. Questão de escolha.

Vejam o que é escrever de improviso – eu fico falando em Dante Alighieri quando meu propósito era falar sobre Zinaldo, que estudou comigo no Estadual da Prata e a quem encontro vez por outra quando retorno a Campina. Zinaldo está hoje mais gordo e menos grisalho do que eu. Sempre de bom humor, freqüenta o Miúra nos fins de semana e o Chope do Alemão após o expediente na repartição pública onde bate ponto. Ganha pouco, sustenta mulher e três filhos, e vive numa economia na ponta do lápis, uma balança de ourives capaz de registrar a entrada ou a saída de cada centavo.

Zinaldo é chamado pelos amigos de “amarrado”, “unha-de-fome”. Dizem que se ele agarrar um Alka-Seltzer e pular numa piscina o comprimido não corre o menor risco, porque ele não abre a mão nem por um decreto. Usa há dez anos as mesmas camisas e os mesmos sapatos. Quando chega a conta no bar, diz: “Vou pagar uma cerveja...” e os amigos pagam o resto, porque o adoram. No aniversário de sua mãe, Dona Zilda, leva-a ao shopping e paga-lhe uma banana-split.
Acontece que Zinaldo, vivendo nessa corda-bamba financeira, não resiste a uma liquidação. Quando vê uma dessas vitrines anglófilas anunciando: “SALE – 50%!!!” ele entra de imediato e compra um cinto, uma meia. Pega livros em bibliotecas e os xeroca, porque sai mais barato que comprar o livro. Copia todos os DVDs das locadoras, porque sai mais barato pagar 1 real no DVD virgem do que 20 ou 30 no filme propriamente dito. Promoção é com ele mesmo. Quando aparece na Internet uma campanha de passagem aérea “por 50 reais” ele parcela em doze vezes no cartão uma passagem para Foz do Iguaçu ou para a serra gaúcha, viagens que não estavam nos seus planos. Tudo para fazer economia.

Na última vez em que bebemos juntos, no Ceboleiro, Zinaldo pegou um guardanapo e me fez um retrato aterrorizante de sua situação financeira. Ponderei que ele acabava gastando mais do que devia, seduzido pela possibilidade de estar gastando pouco. Disse-lhe que quando um produto de 200 reais é oferecido por 50 é porque deve ter custado 30, e o lojista abriu mão do lucro delirante para garantir uma margem mais realista. Disse-lhe que esse Capitalismo acha mais prático tirar um real de 50 milhões de pessoas do que 50 milhões de reais de uma pessoa só. Zinaldo não entendeu. Ou não acreditou.