sábado, 28 de novembro de 2020

4646) Literatura de enredo ou de estilo (28.11.2020)




(James x Stevenson) 

A literatura de gênero (policial, terror, ficção científica, romance de amor, espionagem, faroeste, etc.) se define pela opção de não começar do zero, de começar sempre de um conjunto nítido de expectativas. O leitor desses livros não quer experiências totalmente novas, quer a repetição, com variantes, de uma experiência já conhecida.
 
Robert Louis Stevenson (1850-1894) foi um praticante da literatura de gênero, e mesmo as suas experiências literárias mais ambiciosas se dão no quadro de narrativas de situações previsíveis, quase obrigatórias.
 
Em 1884, Henry James publicou um ensaio intitulado A Arte da Ficção, onde comentava, entre outras obras, A Ilha do Tesouro de Stevenson:
 
“Uma dessas obras trata de assassinatos, mistérios, ilhas de má reputação, fugas impossíveis, coincidências miraculosas e tesouros enterrados. (...) Eu fui criança, mas nunca estive à procura de um tesouro enterrado.”
 
Os dois não se conheciam pessoalmente, e em dezembro do mesmo ano Stevenson publicou um ensaio intitulado “Um humilde protesto”, em que respondia:
 
“Aqui existe, sem dúvida, um paradoxo proposital, porque se o sr. James nunca andou à procura de um tesouro enterrado, pode-se provar com isto que ele nunca foi uma criança”.
 
James e Stevenson são até hoje citados como exemplos, respectivamente, da “literatura de estilo” e da “literatura de enredo”, o que é uma injustiça para com ambos, pois James é autor do enredo complexo e sutil de Outra Volta do Parafuso, entre outros, e Stevenson tem uma das prosas mais límpidas e agradáveis do seu tempo e de seu idioma. Mas o que poderia ter descambado para uma polêmica amarga e ressentida transformou-se numa grande amizade; James escreveu no final daquele dezembro uma carta em que dizia:
 
Meu caro Robert Louis Stevenson,
Somente ontem à noite li seu texto do Lungman’s de dezembro, com sua resposta bem-humorada ao meu artigo sobre a conferência de Besant, no meu periódico; e o resultado dessa agradável meia hora é um desejo amistoso de enviar-lhe três palavras minhas. Não serão palavras de discussão, divergência, retaliação ou protesto; mas de calorosa simpatia, reforçada com a garantia do prazer que sinto em tudo que você escreve.
 
Assim teve início uma longa correspondência entre os dois, cheia de ótimas reflexões sobre a vida e a literatura, e que saiu no Brasil pela Ed. Rocco com o título A Aventura do Estilo (org. e tradução de Marina Bedran).

 
Henry James tinha um santo horror ao melodrama, e este é mais um dos muitos elementos que o aproximam de Machado de Assis. Escritores como estes dois são conhecidos pelos seus fiapos de enredos, histórias onde quase nada acontece a não ser pessoas conversando numa sala, ou numa mesa de restaurante, ou num terraço, entre um ou outro passeio, uma ou outra viagem.
 
Penso eu que a segunda metade do século 19 foi o apogeu do melodrama teatral e do folhetim literário – as histórias de raptos, assassinatos, vinganças sanguinolentas, órfãos sequestrados, homens inocentes atirados em calabouços, famílias honestas vítimas de infâmias, separações lacrimosas, reencontros histéricos...  Todo o material de peripécias, reviravoltas, surpresas, sustos, olhos arregalados, que fez a fama dos folhetins impressos e ainda hoje faz tilintar o caixa das novelas de TV.
 
Isso era o divertimento popularesco da época – e não podemos dizer que não deu grandes nomes à literatura. Foi de dentro desse quadro de prodígios dramáticos esticados semanalmente que brotaram Dostoiévski na Rússia, Alexandre Dumas na França, Charles Dickens na Inglaterra, e muitos outros.


("O Melodrama", de Honoré Daumier)
 

Quando o escritor é grande, ele puxa o gênero para cima.
 
Por outro lado, é compreensível que existam escritores de temperamento mais introvertido, mais crepuscular. Buscam algo mais intimamente verdadeiro, e não o mero espetáculo exterior.  O esforço de se afastarem do clichê, da fórmula, do lugar-comum, os leva a um certo elitismo do espírito que os faz antipatizar esse tipo de enredo.
 
Acho que James tentou com Outra Volta do Parafuso (1898) fazer uma desconstrução da história de fantasmas tradicional. Nelas, há assombrações violentas, gritos, pessoas morrendo de apoplexia ou de febre cerebral, espectros ensanguentados, padres sem cabeça, esqueletos matraqueando as mandíbulas. James contou sua história de assombração de maneira tão oblíqua, tão indireta, tão nuançada, que hoje a interpretação mais corrente é de que nada daquilo aconteceu senão na cabeça da preceptora das crianças.
 
Machado de Assis foi na direção oposta: utilizou, satiricamente, o turbilhão de peripécias dos melodramas (e a cabeça bitolada dos que o escreviam) num de seus melhores contos, “A Chinela Turca” (1875; em Papéis Avulsos, 1882).
 
Quando James se contrapunha aos “assassinatos, mistérios, ilhas de má reputação, fugas impossíveis, coincidências miraculosas e tesouros enterrados” de Stevenson, estava fazendo uma aproximação um tanto apressada entre Stevenson e os popularescos de sua época. (James, como Machado, tinha um santo horror aos popularescos.)
 
O fato de que logo em seguida ele se retrata perante Stevenson (e o bom humor com que Stevenson reagiu à sua crítica) dá a medida de sua lucidez intelectual e de sua generosidade moral. Ele tinha plena consciência (e a amizade dos dois nasceu daí) de que Stevenson buscava uma literatura intensa, profunda, total, não importa se contasse uma aventura de piratas ou uma viagem em lombo de jumento.
 
Por isso sempre sinto um certo desconforto quando, a bem da comunicação rápida, uso expressões como “literatura de enredo” e “literatura de estilo”. Vejo nos praticantes da literatura de enredo, muitas vezes, uma certa ansiedade em quebrar essa polarização, em cultivar o estilo. Só que na tradição beletrista brasileira (que nada tem a ver com Machado de Assis) ter estilo significa usar palavreado bonito e sonoro, enfileirar adjetivos como se fossem miçangas num fio, consultar aplicadamente os manuais de retórica greco-latina e usar seus recursos como se fossem remédios milagrosos.
 
Ter estilo (em literatura) não é “escrever bonito”. É ter uma mente pensante personalizada, capaz não apenas de ver (e exprimir) algo pela primeira vez, mas de dar ao leitor a sensação da descoberta simultânea. Estilo é uma visão verbal do mundo. É um conjunto de qualidades e defeitos, um conjunto de recursos e de limitações; o estilo de um autor é definido não apenas pelo que ele faz, mas pelo que ele é visivelmente incapaz de fazer. Quando aquela famosa e batida definição diz que “o estilo é o homem”, provavelmente quer dizer isso: é a totalidade do que essa pessoa consegue pensar e dizer. E do que não conseguiria, por ser quem é. 
 
E é natural que existam escritores mais aptos a descrever ações exteriores e escritores capazes de descrever ações interiores (da mente). Quando Virginia Woolf extrai de uma simples marca na parede um conjunto de possibilidades, lembranças, evocações, fantasias, ela mostra que a literatura ocorre na mente e se cristaliza em palavras: “The Mark on the Wall”, seu primeiro conto de juventude demonstra isso. Que era capaz de criar enredos ela o prova em Orlando e outras narrativas.
 
Robert Louis Stevenson, um homem que passou em cima da cama de doente uma boa parte de sua curta vida, tinha imaginação cigana, tinha a vertigem dos espaços exteriores, que o arrastou em viagens desgastantes pelo mundo afora. Sua literatura reflete isto.
 
Henry James parecia conhecer apenas dois ambientes, o gabinete de trabalho e o salão social, e ele satiriza isto num dos seus melhores contos fantásticos, “The Private Life” (1892).
 
 
 
 





quarta-feira, 25 de novembro de 2020

4645) Diego Maradona, 1960-2020 (25.11.2020)




O futebol já havia perdido Diego Maradona há muitos anos, inclusive se computarmos sua breve passagem como técnico da Seleção Argentina, onde teve alguns poucos momentos de brilho.
 
Dentro de campo, foi um dos maiores que vi, produzindo jogadas de gênio numa sucessão constante, jogo após jogo, ano após ano. Não somente os gols, que fez em quantidade: mas as jogadas confusas que ele resolvia com um único toque, um giro do corpo, um desvio de leve com o lado do pé, um drible definitivo.
 
A simplicidade minimalista de quem, na hora do jogo, está pensando apenas no jogo, apenas na jogada, apenas naquele movimento complexo de gente que se aproxima, gente que se desloca, velocidade de cada um, intenções possíveis de cada um... E num arremesso de búzios instantâneo, faz o movimento certo com o corpo e dá o toque certo com a chuteira. Basta isso.
 
Penso assim porque muitas vezes o futebol é jogado por jovens que estão com metade da cabeça no jogo e metade nos seus problemas pessoais. Um olha pro telão o tempo todo. Um se preocupa se o gel do cabelo está escorrendo. Outro conversa com o colega escondendo a boca com a mão, porque lhe disseram que há inimigos munidos de teleobjetivas e leitores-de-lábios querendo adivinhar o que ele disse. Outros estão pensando em quantos meses restam de contrato e se vale a pena entrar numa bola dividida contra aquela zaga tão carniceira. E assim por diante.
 
Um amigo meu, jogador profissional, me disse uma vez: “Dos 40 do segundo tempo em diante, neguinho se distrai do jogo, já fica ensaiando mentalmente o que vai dizer ao repórter de pista, antes de ir pro vestiário”.
 
É um pouco como aquele músico profissional que me disse: “Tem horas que eu estou tocando mas nem lembro que música é, estou pensando em que restaurante eu vou jantar depois do show”.
 
Maradona dava a impressão (ele e os verdadeiros craques) que na hora do jogo só existia a jogada. Uma de cada vez. Como dizia outro que tinha a mesma dimensão dele, o artilheiro Romário: “O jogador só é ele mesmo depois que o juiz faz pí!...”  Ou seja, quando a bola rola.
 
A bola rolou nos pés de Maradona como nunca tinha rolado nos pés de ninguém, porque nisso o grande jogador se compara ao grande artista: ele é somente ele mesmo, inimitável, um conjunto de qualidades que só ele tem, um conjunto de limitações que só ele tem, uma fórmula de recursos combinados que nunca se repetirá na História.
 
Daí a idiotice de questões como “quem foi melhor, Pelé ou Maradona”, perguntas sem sentido que servem apenas para fornecer a areia-movediça mental em que vive a grande maioria dos aficionados do futebol.
 
Pelé tinha um físico impressionante, poderia ser comparado com um deus grego se não fosse algo maior ainda, um deus negro. Os livros a seu respeito comprovam os índices atléticos espantosos que ele já tinha aos 17 anos e conservou até depois dos 30. Impulsão, arranque, velocidade, resistência ao choque físico, percepção visual, simetria e equilíbrio de controle muscular, avaliação de distância e movimento. Tudo isso somado a uma inteligência acima da média, e a uma personalidade forte, inflexível, inabalável. Nos acertos e nos erros. 
 
Maradona era o contrário disso tudo. De temperamento, era errático, meio ameninado, piadista, vaidoso, impulsivo.  Fisicamente, era a ilustração viva do besouro que não pode voar, mas voa. Baixinho, meio barrigudinho, radicalmente canhoto. Quando disparava rumo ao gol, o zagueiro via aquele torso de barril e pensava: “com três passos eu alcanço ele”. Três passos depois, a bola estava no centro e o juiz fazia pí!.
 
Maradona só tinha uma perna, mas a perna esquerda dele era mais hábil do que um braço direito. O jeito de receber a bola, como se o peito da chuteira fosse uma mão em concha. O giro do tornozelo no instante crucial da dividida na pequena área, o bico da chuteira produzindo aquele desvio de dois centímetros que faz a mão do goleiro passar em branco. A batida torta de longe, produzindo efeito numa folha seca que era preciso ver por todos os ângulos na TV para entender o acontecido.
 
No meio de um tropel de esbarrões no grande círculo ele se intrometia entre os grandalhões e tocava na bola apenas uma vez, fazendo-a rolar macia e retilínea ao longo de quinze metros na direção do gol, para a penetração veloz do atacante que, ao lado dele, tinha que estar sempre na ponta dos cascos, alerta para o impossível.
 
Outros o comparam (desta vez com mais propriedade) com Lionel Messi, também baixinho, argentino e canhoto. Muitas jogadas de Messi talvez não tivessem existido se Maradona não tivesse provado, antes, que se aquilo era possível para um não-atleta, um atleta poderia fazê-lo. O mesmo princípio que Garrincha, o maior não-atleta da História, provou na prática e liberou milhares de garotos para tentar o impossível.  
 
Era uma figura folclórica, também. Tinha boas frases, tal como Romário, como Dario, como Garrincha. Quando fez um escandaloso gol de mão na Copa do Mundo, perguntaram-lhe se o gol foi feito com a mão ou com a cabeça, e ele disse: “Com a mão de Deus”. Não foi por menos que na Argentina criaram uma religião em seu nome.
 
Nessa mesma partida, contra a Inglaterra, no jogo épico da Copa de 1986 chamado “A Revanche das Malvinas”, fez o que dizem ter sido seu maior gol, comendo meia dúzia de adversários desde a linha lateral até empurrar a bola para o fundo das redes.
 
Qualquer clipagem saudosista no YouTube, no entanto, nos mostra uma dúzia de gols que poderiam ganhar esse mesmo título. Muitos deles nesse formato: a recebida da bola lá pelo meio campo, a parada, o balanço do corpo para desconcertar o marcador e mantê-lo cauteloso enquanto o olho faz uma avaliação rápida de distâncias e trajetos, e o pulmão se enche para a arrancada que ao longo de 7 ou 8 segundos atravessa dezenas de metros e dá dezenas de pequenos toques na bola acompanhados de pequenos saltos e desvios até a a pancada final e certeira quando o goleiro define em que direção vem e é possível colocar a bola fora do seu alcance.
 
Como dizem os motoristas explicando uma barruada: “Foi tudo muito rápido”.
 
Valeu, Diego.   
 
 


 
 
 
 
 
 
 
 
 
 



segunda-feira, 23 de novembro de 2020

4644) O Livre Arbítrio e o Destino (23.11.2020)




O determinismo e o livre-arbítrio são duas faces de um problema: até que ponto somos responsáveis pelas nossas ações e podemos interferir nos acontecimentos à nossa volta, moldando-os de acordo com nosso interesse?
 
Como os filósofos discutem esta questão há milênios, não serei eu a lançar uma luz inédita sobre o assunto. Posso, no entanto, escolher alguns exemplos dentro da literatura, não da Filosofia, para ilustrar essa questão mais que antiga e mais que fascinante.
 
Existem dois tipos de histórias: aquelas onde os seres humanos estão sujeitos a um Destino irrecorrível, inapelável, um Destino de ferro. E existem aquelas onde, mediante alguma forma de Poder adquirido, eles conseguem impor sua vontade, seu interesse, seu arbítrio, e fugir ao que parecia ser um Destino traçado.
 
Na ficção científica, seriam aquelas histórias em que Viajantes no Tempo se transportam para o Passado e tentam mudar a História, mas não o conseguem porque o Destino é inegociável; ou então a modificam sem querer, de forma desastrada, pelo chamado “efeito borboleta”, onde pequenas alterações têm consequências gigantescas.
 
Na literatura fantástica, seriam, respectivamente, as histórias de Fatalidade e as histórias de Magia – porque a Magia é basicamente o comércio oculto, clandestino e ritualizado com esses poderes desconhecidos.




Claro que para os adeptos do Determinismo basta uma coisa acontecer para já estar decidida há um milhão de anos, como dizia Nelson Rodrigues de certos resultados no futebol. Um conto recente de Ted Chiang (“What’s Expected of Us”, no livro Exhalation, 2019) propõe um pequeno aparelho destinado a destruir a idéia de livre arbítrio: o Preditor. Explica ele:
 
Para os que ainda não viram um, é um pequeno aparelho, como o controle remoto que abre a porta do seu carro. Ele exibe apenas um botão e uma grande LED verde. Essa luz pisca quando você aperta o botão. Especificamente, a luz pisca um segundo antes de você apertar o botão. (...) O cerne de cada Preditor é um circuito com um sinal negativo de tempo; ele envia um sinal na direção do passado. (...) 
 
Não importam os truques e negaceios executados pelo usuário, estes dois fatos sempre aparecem nessa ordem, com um segundo de intervalo: a luz se acende, e o usuário aperta o botão. Aos poucos, as pessoas percebem que é impossível desobedecer a isto. E ele adverte:
 
Os médicos tentam argumentar com seus pacientes, quando estes ainda permitem se envolver numa conversação. Estávamos todos vivendo vidas felizes e ativas antes, dizem os doutores, e também nesse tempo não tínhamos livre arbítrio. Por que teria que ser diferente agora?  “Nenhuma das ações que você praticou no mês passado foi mais livremente escolhida do que as que você praticou hoje,” dizia um médico. “Você pode continuar se comportando assim.” Os pacientes invariavelmente respondiam: “Mas é que agora eu sei.” E alguns deles jamais voltavam a falar novamente.
 
Julio Cortázar (em O Fascínio das Palavras – Entrevistas com Omar Prego, Rio, José Olympío, 1991, trad. Eric Nepomuceno) dá um exemplo de sua percepção do Fantástico como um fenômeno de causalidade estranha:
 
Eu sempre senti, desde muito menino, essas coisas que ocorriam, e pareciam coincidências ou casualidades, como que correspondendo a um sistema de leis diferente do sistema de leis aceitável e compreensível para todo mundo. Sentia que quando acontecia um elemento A, seguido de um elemento B – o que as pessoas chamariam de coincidência ou casualidade – havia um terceiro elemento C, que podia ser alcançável, compreensível ou não, mas de todas as maneiras eu sentia que o triângulo, a figura, se fechava. (...) Por exemplo: uma porta batia e eu sentia um cheiro. Então algo em mim sabia que o cachorro ia latir em algum lugar da casa; e o cachorro latia. (p. 80-81)



A literatura é um espaço onde podemos criar modelos de causalidade, de determinismo, de livre arbítrio, até mesmo de caos indiferenciado. Porque na literatura de ficção o autor é como o Deus Todo-Poderoso das antigas religiões, determinando quem nasce e quem morre, quem faz e quem se omite, quem ganha e quem perde. O Autor é uma espécie de Deus. Faz parte da nossa cultura acreditar que uma história depende apenas das decisões de um indivíduo sentado à frente de um teclado.
 
Um autor possui o livre-arbítrio de colocar ali as palavras que quiser. Eu posso, por exemplo, escrever frases sem sentido: gangorra celerado polá polé mardu-konkon natiê. Posso enfileirar letras sem sentido: ddewyey jddsfg ioewtwtw.

 
Acontece que esse frenesi espaçoso não pode durar muito tempo e essa minha liberdade acaba confluindo na direção dos variados gargalos por onde precisa obrigatoriamente passar – no presente caso, um artigo de blog que consiga amarrar a atenção de leitores aleatórios. Sou livre, mas não sou tanto. Posso encher o prefácio com letras caóticas, só para afirmar meu livre-arbítrio? Posso – mas, e daí? Não posso afirmar minha liberdade assim o tempo inteiro.
 
Ninguém negocia mais sua liberdade do que um escritor de gênero, porque um gênero literário consiste sempre, em última análise, num conjunto de regras e de fórmulas que precisam ser obedecidas. Mesmo quando um autor jovem, ambicioso, vanguardeiro, se decide a desobedecê-las, é em função disto, e delas, que está escrevendo. São elas que indicam a direção, mesmo para quem se obriga a seguir na direção oposta.
 
No campo do misticismo, do ocultismo, da fé religiosa e da superstição, a fatalidade sugere a existência de Poderes muito superiores a nós e sugere também que todo o nosso destino, até os nossos menores gestos, já estão “escritos nas estrelas”, são irrecorríveis. Estava escrito que eu iria escrever estas frases agora.
 
E o conceito oposto à fatalidade é o conceito da Magia, segundo o qual temos poderes também, somos capazes de interferir no Destino, somos capazes de rasurar o que estava escrito no código-fonte do Universo e criar ali um palimpsesto, um pentimento, um enxerto humano nas linhas da Vontade Divina.
 
Toda magia (feitiçaria, bruxaria, etc.) é uma tentativa de passar por cima da vontade dos deuses, uma gambiarra humana contra a fatalidade universal, e por isso ela é tantas vezes (na literatura) punida de uma maneira tão aterrorizante.
 
 







sexta-feira, 20 de novembro de 2020

4643) "Conclave": a eleição de um Papa (20.11.2020)




Saiu recentemente pelo selo Alfaguara (da Companhia das Letras) um romance que traduzi há algum tempo e que agora estou folheando para recordar algumas passagens.
 
Conclave (2016) de Robert Harris conta os bastidores de uma história que sempre tive alguma curiosidade de conhecer: a eleição de um Papa pelo Colégio dos Cardeais, em Roma. Para quem quiser saber em detalhe como são os rituais, os procedimentos, os regulamentos, os critérios, me parece uma boa introdução ao assunto.
 
Harris é um autor de vários best-sellers, dos quais traduzi também há pouco tempo Munique, onde ele conta o complicado processo da negociação e assinatura do Tratado de Munique em 1938, entre a Inglaterra e a Alemanha. Um tratado que ainda hoje dá muito o que falar, porque adiou por um ano o começo da II Guerra Mundial. Para uns, deu tempo a que Hitler se fortalecesse, e revelou fraqueza por parte do Primeiro Ministro inglês, Neville Chamberlain. Para outros (o livro mostra isso, não sei até que ponto é rigorosamente fiel aos fatos), Chamberlain conseguiu ganhar tempo e preparar a Inglaterra para a guerra, que era mesmo inevitável àquela altura.
 
Harris é um pesquisador cuidadoso, e em Conclave ele produz ao mesmo tempo um romance histórico, um romance de mistério e um thriller de suspense.
 
Romance histórico porque ao fim e ao cabo está retratando um processo de transição do poder numa das instituições mais antigas e mais politizadas do mundo, a Igreja Católica Romana. Como diria com ironia o pessoal de Campina Grande, “ali dentro só tem menino inocente”. É uma alcatéia de políticos lupinos que, independentemente da verdade e do ardor de sua fé mística, são capazes de...  Bem, leiam o livro.
 
Um romance de mistério porque há umas três ou quatro situações inexplicáveis que o protagonista, o Cardeal Lomeli, precisa entender por completo, o que lhe exige um certo trabalho detetivesco, que ele cumpre sem a tranquilidade filosófica e sem o faro dedutivo do Padre Brown de Chesterton, mas com uma coragem moral admirável.
 
Um thriller de suspense porque no transcorrer das votações, com cardeais se tornando sucessivamente favoritos ao Papado, vão surgindo inevitavelmente os problemas, as denúncias, as suspeitas, os confrontos, e tudo que envolve a revelação brusca de fatos que alteram por completo o equilíbrio das forças em jogo.
 
Mesmo quando as verdades que desvela são (para ele) estarrecedoras, Lomeli, que é o decano do Colégio dos Cardeais, a quem cabe organizar e conduzir a eleição do novo Papa, não deixa de lembrar:
 
Claro que uma cópia chegaria à imprensa mais cedo ou mais tarde. Isso acontecia com tudo. O próprio Cristo não havia profetizado, de acordo com o Evangelho de Lucas, que “nada há de oculto que não se torne manifesto, e nada em segredo que não seja conhecido e venha à luz do dia”?  (p. 207)
 
O romance conduz a um final surpreendente, do qual não darei qualquer spoiler aqui, porém mais do que uma surpresa dramática o que ele tem de eficaz é a reconstituição de um ambiente descrito com conhecimento de causa, porque não são poucos os detalhes canônicos e administrativos que é preciso levar em conta.

A experiência de traduzir um livro assim também se torna interessante por outro aspecto. Quando a gente traduz um livro de ficção científica, que transcorre em outro planeta, etc., depende inteiramente de duas coisas: a capacidade de descrição do autor, e a capacidade de visualização do leitor/tradutor. É um ambiente que não existe, precisa ser imaginado, e a experiência nos ensina que há escritores excelentes para conceber enredos extraordinários mas com poucas luzes para reproduzir a imagem visual de um ambiente, seja um deserto alienígena, uma cidade futurista ou o interior de uma nave.
 
Hoje em dia, no entanto, é possível pesquisar a fundo quando se trata de um ambiente real. Conclave decorre inteiramente nos domínios da Cidade do Vaticano, principalmente na Basílica de São Pedro, onde acontecem as votações, e na Casa Santa Marta, onde os cardeais ficam confinados, incomunicáveis com o mundo exterior, dormindo e fazendo refeições (e politicando, claro) até que a eleição esteja consumada.
 
É um conforto, para um tradutor (e para um autor também, decerto) poder com meia dúzia de cliques ter acesso a imagens reais do lugar onde a ação transcorre e desse modo ser capaz de visualizar posições relativas, distâncias, luminosidade, “clima” reinante naquele ambiente físico. Em se tratando de um romance realista, como é o caso, a sensação de estar presente no local é essencial para que as escolhas de vocabulário, de dicção, de ritmo, sejam escolhas condizentes com o universo descrito.
 
Abaixo, algumas imagens da Casa Santa Marta, dos aposentos dos cardeais e da sala de refeições.
 










 
 
 








quarta-feira, 18 de novembro de 2020

4642) Minhas Canções: "O Marco Marciano" (18.11.2020)



São poucas as vezes em que um compositor imagina uma canção em sua cabeça e, sem que nem sequer precise pisar no estúdio, descubra que ela foi gravada exatamente como ele imaginou. Na verdade, mais comum é o contrário: você compõe, entra no estúdio determinado a gravar daquele jeito, trabalha feito um desgraçado, e a música acaba ficando completamente diferente.
 
“O Marco Marciano” faz parte do álbum O Dia Em Que Faremos Contato, de Lenine (1997), produzido por ele e Chico Neves. Foi uma música que saiu exatamente como estava na minha cabeça, e acho que isso se deve ao fato de que eu e o parceiro tínhamos desenvolvido àquela altura um jargão próprio em que bastava usar uma expressão meio absurda (para quem estivesse de fora), mas o outro entendia de imediato.
 
Anos antes, em 1976, a NASA tinha fotografado com a nave Viking a superfície de Marte e divulgado fotos de região de Cydonia. Nela aparecia uma montanha com mais de 3 km de extensão que, vista do alto, se assemelhava a um rosto humano. Foi batizada pela imprensa de “The Face on Mars”.






Claro que era um bom ponto de partida para uma especulação de ficção científica. O disco que Lenine estava planejando ia ter um lado voltado para essa temática. Acho que já tínhamos composto a canção título, que parodiava um verso famoso de Herivelto Martins na “Ave Maria do Morro” (“Pois quem mora lá no morro já vive pertinho do céu”), dizendo: “Pois quem mora lá no morro vive perto do espaço sideral”.
 
Lenine viria a dar mais força a este lado FC do disco usando uma capa de um livro da coleção Futurâmica que ele tinha em sua coleção de FC. O livro é O Homem Eterno (“Bang!”, 1958) de F. Richard-Bessière, uma das divertidas aventuras pulp fiction do repórter Sidney Gordon, mais uma vez envolvido em viagens no tempo.
 
Curiosamente, a edição brasileira saiu, por algum motivo, com duas capas diferentes, a oficial (da qual já tive alguns exemplares) e outra capa muito rara, que é o exemplar que Lenine tem em casa e que já tentei inutilmente surrupiar.




 
Para “O Marco Marciano”, pegamos a idéia do “Rosto em Marte” e tentamos projetar nela o conceito cordelesco dos “marcos” ou “fortalezas”, construções gigantescas que os poetas de cordel imaginam e descrevem, com riqueza de detalhe e exuberância de imaginação. Os “marcos” são uma espécie de fortes ou castelos defendidos por muralhas de aço com mil metros de altura, milhões de guerreiros com canhões e catapultas, bichos ferozes, monstros... Um propugnáculo, enfim. 


Naquela época um poeta do Recife, meu amigo José Honório, tinha feito um folheto nessa linha chamado O Marco Cibernético Construído em Timbaúba. Nós achamos que a única maneira de suplantar uma idéia como essa seria conceber um “marco” interplanetário, e foi aí que entrou o Rosto em Cydonia. A música mostraria que nossa fortaleza estava em outro planeta, era de difícil acesso, cercada de tais e tais proteções.
 
Para fazer a letra, lembrei de um “marco” famoso, A Defesa da Lagoa (1928), de Joaquim Francisco Santana (1877-1917), um cantador negro, ex-agricultor, cuja imaginação fértil lhe valeu o apelido “Joaquim Sem Fim”.
 
Ele começa seu poema dessa maneira:
 
Quero agora contar publicamente
a os que apreciam minha loa,
descrevendo um trabalho que eu fiz
de um muro em redor de uma lagoa,
que com ele cerquei famosos sítios
e a terra amurada é toda boa.
 
Aproveitei a rima, aproveitei a estrofe em decassílabos rimando ABCBDB, e nosso primeiro verso ficou assim:
 
Pelos alto-falantes do Universo
vou louvar-vos aqui na minha loa
um trabalho que fiz noutro planeta
onde nave flutua, e disco voa;
fiz meu Marco no solo marciano
num deserto vermelho sem garoa.
 
Combinamos que o arranjo seria à base de voz com efeito, algum efeito eletrônico tipo Vangelis, e viola nordestina. Lenine lembrou então de um LP do mestre Azulão, que ele tinha, onde Azulão executa um lindo pinicado de viola para cantar O Marco Brasileiro, de Leandro Gomes de Barros.
 
Azulão:
https://www.youtube.com/watch?v=e6kx1ZsFjhw&ab_channel=EsdrasSoares

 
A música foi gravada utilizando uma viola que eu tinha na época, fabricada de encomenda pelo cantador, compositor e luthier Adauto Ferreira, velho companheiro de antigas noitadas do repente. Hoje a viola não está mais comigo, foi transferida para as mãos do meu parceiro Beto Lemos, da Barca dos Corações Partidos, que sabe o que fazer com ela (e tem utilização pra ela) mais do que eu.

Tempos depois da música gravada, conversando com Ariano Suassuna, ele lembrou a gravação de Azulão e disse que esse ponteado de viola já era executado quando ele era garoto, para acompanhar os “marcos” cantados pelos violeiros de então.
 
Nos meus cadernos, tenho uma anotação de 8 de julho de 1996 com uma lista provisória do repertório do disco, e a anotação:
 
“O Marco Marciano” – ponteio de Azulão (do marco de Leandro).
Talvez: sextilhas com linha de martelo (3-3-4)
 
O que indica que antes mesmo da letra ser escrita já tínhamos decidido pelo uso do ponteio da viola. A letra só foi escrita (conforme minhas anotações) em 9 e 12 de agosto do mesmo ano. No mesmo rascunho aparece um verso de teor mais fraquinho, que acabou excluído:
 
O meu Marco não tem bomba de nêutrons
das que matam sem nada destruir.
Nem é uma redoma que repele
qualquer tropa que a venha invadir.
O meu Marco é formado de palavras
e de sons que é difícil traduzir.
 
Com os cortes de sempre, a canção fechou o formato em seis estrofes.
 
Lenine:
https://www.youtube.com/watch?v=GrfBjVuxr3A&ab_channel=Lenine-Topic
 
Lembro que na primeira versão gravada as estrofes eram cantadas de duas em duas, com o riff de viola intercalado. Talvez isso tenha tornado a faixa muito longa, e na versão final ficou assim; riff + 3 estrofes + riff + 3 estrofes + riff.
 
O disco foi lançado no segundo semestre de 1997, o que mostra o longo trabalho de maturação desde a idéia do “vai ser assim” até a música pronta.
 
Quanto ao Rosto em Marte... sobrevoos subsequentes produziram imagens mais próximas e com maior resolução, tirando um pouco a semelhança com um rosto humano (ou com o rosto de um personagem do Planeta dos Macacos, como eu achava às vezes). O Rosto era de mentira, mas o Marco é de verdade.





 
 




segunda-feira, 16 de novembro de 2020

4641) "The Big Sleep" no cinema (16.11.2020)




A tradução de um texto literário se assemelha às vezes, em alguns processos, à adaptação desse texto literário para o cinema (TV, teatro, etc.).
 
Em ambos os casos, trata-se de pegar uma obra onde certos efeitos são obtidos através do uso de certos “instrumentos” – no caso do texto literário, através das imagens e das idéias produzidas em nossa mente durante a leitura de palavras escritas.
 
E criar outra obra onde esses efeitos serão repetidos, mas através do uso de instrumentos totalmente distintos – as imagens em movimento.
 
Nunca vai haver consenso sobre a natureza desses efeitos, porque cada adaptador escolhe o que lhe parece mais importante, mais belo, mais relevante, mais impregnado do espírito da obra – e descarta o resto.
 
Estou dando uma olhada (10 ou 15 minutos por dia) em duas adaptações do primeiro romance de Raymond Chandler para o cinema.


The Big Sleep (1946) foi dirigido por Howard Hawks, escrito por William Faulkner, Leigh Brackett e Jules Furthman, e teve Humphrey Bogart no papel do detetive Philip Marlowe.
 
The Big Sleep (1978) foi escrito e dirigido por Michael Winner, e teve Robert Mitchum no papel de Marlowe.
 
Estes dois filmes são muito diferentes entre si, apesar de baseados no mesmo livro e ambos considerados pela crítica como adaptações razoavelmente fiéis. Cada uma delas comete um pequeno número de terríveis heresias contra o livro, mas no geral procura manter-se pertinho dele.
 
O filme de Howard Hawks mudou completamente o final, criando uma cilada, um tiroteio e uma morte que não estão no livro. Também diluiu referências a drogas, a ninfomania e a nudez, devido ao Código Hays, um código de censura aos filmes de Hollywood em sua época. Inventou também um romance entre o detetive e uma das suspeitas, para faturar em cima do romance real entre Bogart e Lauren Bacall.



O filme de Michael Winner segue muito mais de perto os acontecimentos e os diálogos do livro, às vezes num grau irritante de detalhe. Mas tem uma heresia básica, que deixou todo mundo de boca aberta: a ação não se passa na Califórnia de 1940, e sim em Londres, na época da filmagem.
 
Nestes dois filmes, reencontramos uma famosa dicotomia que existe na tradução literária: a fidelidade à letra e a fidelidade ao espírito.
 
O filme de Hawks é considerado mais ou menos um clássico do filme policial “noir” norte-americano. Mesmo sob censura, exprime o ambiente de violência, corrupção moral e pequenos golpes dos romances de Chandler. Histórias onde pessoas ricas e mimadas aprontam o que lhes dá na telha e desencadeiam uma guerra entre trambiqueiros e criminosos para ver quem se aproveita mais da sua fortuna. The Big Sleep é basicamente sobre isto.
 
Transpor essa “ecologia moral” para a Londres de 1978 exigiria uma reescritura completa do argumento e dos personagens, e curiosamente Michael Winner optou pelo contrário: a fidelidade ao-pé-da-letra ao argumento original.
 
Muita gente pensa que transpor um livro para o cinema é uma façanha gigantesca mas simples, como a daqueles engenheiros chineses capazes de pegar um prédio de 10 andares, despregá-lo do chão e movê-lo horizontalmente a 500 metros de distância, para que no local anterior possa passar uma rodovia, e o prédio ser preservado.
 
Foi isso que Michael Winner tentou fazer, mas uma situação dramática da Califórnia nos anos 1940 não pode ser transplantada automaticamente para a Londres dos anos 1970.
 
O ator que faz Philip Marlowe no filme de Winner é o meu preferido: Robert Mitchum, grandalhão, pesado, irônico, com cara de quem é capaz de aguentar dez assaltos apanhando de Evander Hollyfield e depois chamá-lo para tomar um drinque. O problema é que o Marlowe dos livros é um homem na faixa dos 40 anos, e Mitchum aparenta os 60 que tinha na filmagem.
 
Bogart, por causa do filme de 1946, acabou se tornando o que o pessoal chama hoje “o Marlowe icônico”, mesmo sendo baixinho (nas cenas com Lauren Bacall tinha que usar sapatos especiais para ficar mais alto do que ela). Uma das características físicas de Marlowe é ser grandão, aguentar muita porrada (nos livros, ele apanha mais do que bate). Bogart tinha 1,73m, e só convence porque é ótimo ator e tem o viés de sarcasmo do personagem.
 
Como se vê, em cada “tradução” perde-se num detalhe e ganha-se em outro.
 
Uma lebre interssante foi levantada por William Luhr no livro Raymond Chandler & Film (Tallahassee: Florida State University Press, 1991). Um dos principais elementos de plot é que a livraria de livros raros de Geiger, a primeira vítima, lhe serve como camuflagem para a venda e o aluguel de livros pornográficos. No livro, há uma longa sequência em que Marlowe segue a pé um cliente que, apavorado, acaba jogando nuns arbustos o pacote comprometedor e fugindo na carreira.
 
No filme de 1946, tudo isso é botado para escanteio, por causa da censura. No filme de 1978, como não tinha censura, Michael Winner mostra a cena, mostra o livro, mostra as fotos. E Luhr argumenta:
 
O problema aparece porque Winner ambienta seu filme em Londres nos anos 1970, não em Los Angeles dos 1930. Na década de 1930, [quando transcorre a ação do livro] a pornografia explícita era algo que se vendia por baixo do pano. Na Londres dos 1970, entretanto, alguém precisaria apenas caminhar para Leicester Square e comprar abertamente um material que faria Mae West enrubescer. As atitudes culturais com relação e nudez e sexo mudaram; hoje em dia ninguém se surpreende em ver um exemplar da Playboy na mesa de um banqueiro. (...) Consequentemente, a reação de Marlowe ao livro, e a o caráter furtivo da loja de Geiger (...) parecem ridículos.
(pág. 183, trad. BT)

Winner, que se gaba de ter seguido fielmente o livro, esquece que depois de uma grande infidelidade (mudar a época e a cidade) qualquer minúcia ou é desnecessária ou contraditória.
 
Existem atitudes de época, emoções de época, reações de época, vocabulário de época. Se um adaptador transporta isso para uma época diferente, vai ter que recalcular tudo.







quinta-feira, 12 de novembro de 2020

4640) Eu me lembro 20 (11.11.2020)


1

Eu me lembro de quando a gente foi morar na Vila dos Motoristas, atrás do campo do Treze (também conhecido como “Estádio Presidente Vargas”). Tudo era novidade, depois de termos morado uns 3 ou 4 anos seguidos na rua Miguel Couto, o que, para quem tinha 10 anos, como eu, era tempo pra caramba. Meu pai fez uma viagem ao Rio. (Ainda hoje, a expressão “Hotel Serrador” tem um eco mítico em minha lembrança, e anos depois, quando o vi pela primeira vez ali perto da Cinelândia, pareceu-me um pedaço de Campina.) Na volta da viagem, Seu Nilo mostrou uns livros que tinha comprado no aeroporto. “É uma editora nova que está começando,” explicou ele. A editora era a Editora do Autor, e os livros eram a Antologia Poética de Vinicius de Moraes, O Homem Nu de Fernando Sabino, O Cego de Ipanema de Paulo Mendes Campos e Ai de Ti, Copacabana! de Rubem Braga. Que eu passei a devorar com olhos arregalados, porque até nas capas, no projeto gráfico, eu sentia uma novidade, uma modernidade no ar. Menino que eu era, fiquei “arriado dos quatro pneus” por Vinicius e Sabino, mas Paulo Mendes Campos e o velho Braga eu só aprendi a saborear bem mais tarde, depois dos vinte. 


2
A gente se mudou em 1961 para o Alto Branco, momento triunfal da primeira casa própria – e última, porque de lá para cá foi “a casa dos meus pais”, e hoje é onde meu sobrinho Nilo Neto mora com a família. Meu pai nunca soube dirigir e nunca teve carro. O Alto Branco era uma espécie de “zona rural” naquele tempo, nem linha de ônibus tinha, tinha umas kombis que faziam a circular, e só elas dão um livro. Imagine 15 pessoas e suas respectivas feiras, num sábado, amontoadas ali dentro, e um cobrador em pé, encurvado, catando os trocados de cada um. Meu pai começou a armar um esquema de pegar caronas, porque a descida-e-subida era longa (descida até o Ponto Cem Réis e o Canal, e subida dali em diante). Um amigo dele tinha um carro e morava perto. A gente saía do Colégio Alfredo Dantas meio-dia (eu com 11 anos, Pedro com 7), Seu Nilo pegava a gente e ficávamos assim-como-quem-não-quer-nada perto do carro do sujeito, até que ele aparecesse e ofertasse uma carona. Na época eu era fascinado pelo fusca, o famoso Volkswagen, e aprendi que o carro do nosso benfeitor era parecido, era um Volksroll. Anos se passaram até eu perceber, por vias transversas, que a marca era de fato um Vauxhall.




3
Esse tempo em que eu estudei no Alfredo Dantas (foram cinco anos ao todo) teve altos e baixos. Por isso eu ainda hoje tenho fascinação por livros de garotos-sofrendo-na-escola. Não necessariamente bullying, embora naquele tempo fosse prática normal. Livros como O Ateneu (Raul Pompéia), Doidinho (José Lins do Rêgo), Anos de Ternura (A. J. Cronin), Books vs. Cigarettes (George Orwell), A Colônia de Férias (Emmanuel Carrère) e outros. Guri abestalhado como eu sofria muito. Um dia eu fui ao quadro-negro, e na volta à carteira... cadê minha bolsa com os livros e cadernos? Comecei a procurar, quase chorando (“se eu chegar em casa sem meus livros eu levo uma surra”), a professora interrompeu a aula e me mandou olhar em todas as carteiras da classe, pra ver quem tinha tirado. Silêncio, expectativa, risadas sorrateiras. Olhei em todas, e nada. No fundo da sala, que era espaçosa, tinha um painel de madeira encostado à parede, com fotos de formandos da turma tal. Tive então o paradoxal momento mais feliz da minha vida. A bolsa estava lá (tenho uma polaróide mental). Peguei e me sentei de novo, sem dizer nada.



4
Falei que meu pai não dirigia; me lembro de muitas corridas hilárias com taxistas. Uma vez ia a família toda num táxi grande. O motorista “se amostrava” bastante e Seu Nilo começou a elogiar: “Mas o cara dirige muito! É um Pintacuda!” E aí é que o motorista se amostrava mesmo. (Carlo Pintacuda era o Lewis Hamilton do tempo dele.) Ele tinha seus taxistas preferidos no ponto de táxis que ficava em frente ao Café São Braz, no tempo em que a rua Cardoso Vieira era aberta e não existia ainda o famoso Calçadão. O motorista mais constante dele era Luizinho, um cara meio louro, rosto vermelho, cabelo meio arrepiado, muito piadista. Meu pai almoçava, botava o paletó, pegava o telefone, ligava para o ponto de táxi e dizia apenas: “Vem me buscar”. Eu dava tratos à bola para entender como o motorista adivinhava que era ele. (Isso foi no tempo em que eu conheci a expressão “dar tratos à bola”.) Outra mania que ele tinha era atender o telefone dizendo: “Alô Zanfan Delapatrí.” E às vezes quando a pessoa do outro lado dizia: “Quem está falando, por favor?”, ele dizia: “O Conde de Monte Cristo”, e as pessoas invariavelmente desligavam.




5
Um ritual que tinha lá em casa de tantos em tantos meses era a limpeza da máquina de escrever, uma Olivetti Lexicon 80 cinza onde aprendi a batucar com dois dedos até evoluir para os três de atualmente. Quando os tipos da máquina estavam cheios de microfibras da fita embebida em tinta, e quando a película oleosa e graxenta que lubrificava as engrenagens estava toda aderida por grãos de poeira, fuligem e outros micro-detritos, havia o Domingo de Irapuã. Era o técnico (trabalhava na UFPB) que vinha limpar a máquina, mediante um cachê razoável. Era um cara tranquilo, metódico. Chegava lá em casa sempre numa manhã de domingo, fazia estender uma lona no centro da sala, sentava-se ali com sua maleta de instrumentos e desmontava a máquina inteira, pecinha por pecinha, limpava com álcool, etc., depois a recompunha, conversando com Seu Nilo o tempo todo. Quando terminava, reunia tudo, a máquina voltava reluzente e fragrante à sua mesinha, ele lavava as mãos e sentávamos todos à mesa, onde era de praxe haver um gigantesco cozido com pirão à nossa espera.




6
Por volta de 1965 comecei a trabalhar no Diário da Borborema no horário da tarde, convidado pelo meu mestre Josusmá Viana. Eu fazia pequenos mandados e, como era fluente na redação, copidescava os textos às vezes meio truncados de repórteres que tinham três vezes a minha idade, eram feras na investigação mas claudicantes na retórica. Retórica sempre foi comigo mesmo. Meu salário era 15 cruzeiros, pago em duas prestações quinzenais de 7,50. Quando recebi essa primeira fortuna fiquei zonzo. Como diria um amigo meu, muitos anos mais tarde: “Rapaz, eu ganhei tanto dinheiro que abri conta em dois Bancos, porque um só não ia dar vencimento”. O que fiz? Fui direto para a banca de revistas de Henrique (que a essa altura não era mais uma banca na calçada, era uma lojinha a três portas de distância do Café São Braz) e perguntei o preço de uma montanha de revistas amarradas que ocupava uma parede inteira, até quase o teto. Era uma coleção completa de Seleções do Reader’s Digest de 1940 a 1965. Acertamos o pagamento parcelado, e todo dia quando eu saía do jornal levava um dos pacotes para casa. Serviu muitíssimo ao meu repertório de piadas de caserna, de flagrantes da vida real, de enriquecimento de vocabulário, de definições definitivas e de muitas frases de efeito que 55 anos depois jogo nas redes sociais e as pessoas dizem: “Mas que inteligência!...”
 
 
 
 
 


domingo, 8 de novembro de 2020

4639) Sete reclamações (8.11.2020)


1
Manuel Domingos Campos Neves, assessor jurídico do Banco do Norte Fluminense, em Campos (RJ), chegou em casa, voltando do trabalho, às 19:40 de uma terça-feira, abriu a porta do apartamento, e viu na sala uma enorme poça de sangue da janela da frente até o sofá, encharcando o tapete, e o cinzeiro da sala (ele fumava, a esposa não) cheio de pontas de cigarro. Ele chamou: “Maristela!”. Quando Maristela apareceu, assustada com aquele tom de voz, ele apontou com o dedo e disse: “Quem foi que andou fumando aqui?...” 
 
2
Paulo César Medeiros, 48 anos, gerente do mercadinho Superpreço, em Montes Claros (MG), chamou ao escritório a operadora de caixa Auxiliadora Lins, 27 anos, pediu que entrasse, fechasse discretamente a porta, sentasse; perguntou se queria uma água, um café; a moça tremia-se toda, nunca tinha sido chamada à sala de um gerente em seus onze anos como caixa; quando ela sossegou, ele ficou muito sério e disse: “Minha filha, não me queira mal, nem pense que é desrespeito, mas eu só queria lhe pedir que quando viesse de blusa branca não botasse esse sutiã preto, porque desse jeito ninguém aqui se concentra.”
 
3
Dona Laura, 61 anos, professora de português no Grupo Escolar Doutor Frutuoso, em Jequié (Bahia), sempre abria suas aulas fazendo a chamada, e naquele dia, no 3º. ano, foi chamando nome por nome e ouvindo o regulamentar “Presente!”, até que chamou “Bartolomeu Lopes Vasconcelos” e o garoto moreninho respondeu: “Ausente!”, e Dona Laura, que àquela altura do campeonato já tinha uma compreensível dificuldade para ligar-o-nome-à-pessoa nas onze turmas com que lidava por semana, botou falta no misera, que depois saiu dali reclamando que gente velha não tem senso de humor e que uma professora não sabe o significado da palavra paradoxo, que o tio dele tinha lhe ensinado no domingo anterior.
 
4
Nanda Vasconcelos, 12 anos, estudante, conseguiu finalmente ser levada para ver um filme num sábado à tarde por seu vizinho e melhor amiguinho, Dodô, 13 anos; foram juntos e cercados de mil recomendações, viram o filme todo, mas ela voltou com uma angústia, um aperto, e queixou-se que o cinema estava muito frio, que o som estava alto, que o herói era meio burro, que os vilões eram antipáticos, que a roupa da princesa parecia uma cortina, e blá blá blá, e Dodô calado concordando, e quando chegaram na porta da casa dela ela se calou por um instante e ele, que há horas juntava coragem, falou, “valeu, até a próxima” e deu-lhe um beijo rápido na boca, e o resto do dia ela não reclamou de mais nada.
 
5
Marieta Santana da Silva, 61 anos, dona de casa em Junco do Seridó, estava no quintal de casa estendendo roupa no varal, quando pela cerca de trás se aproximou um homem esmolambado, de bigode escuro, chapéu de palha todo desfiado, e disse: “Dona, me dê uma sobra de comer!...”  Ela olhou, se compadeceu, entrou na cozinha, abriu um pão francês, passou margarina, e levou para o homem, que deu uma dentada, mastigou, parou de mastigar, abriu o pão, olhou dentro e disse: “Margarina? Não tinha manteiga não?”.
 
6
Beto Sensação, paulistano de Moema, 24 anos, baterista, convidado para integrar a banda Innocent Bystanders, dedicou-se a ela de corpo e alma durante aqueles seis meses, tocou de graça, tocou doente, abraçou espiritualmente os outros três integrantes, aplicou-se a entender os arranjos, colaborou numa letra, gravou metade das faixas do CD de estréia, compreendeu a necessidade de em outras faixas inserirem um ghost-drummer mais experiente porque seguro morreu de velho, mas ao ver no YouTube uma entrevista do vocalista Tchecov Gun arretou-se, encaixotou a bateria, viajou para Floripa por um mês sem atender o celular, deixou como explicação apenas uma mensagem para Gun dizendo: “Quando lhe perguntarem sobre o disco da banda, nunca responda assim: Esse meu disco....”
 
7
Belarmino Gomes Pantaleão, 51 anos, advogado, estava no escritório de sua residência em Maceió, e pontualmente às 18:30 ergueu-se da escrivaninha onde redigia sua Memória dos Grandes Jurisconsultos Alagoanos, foi ao lavatório, lavou as mãos e o rosto, vestiu o paletó e dirigiu-se para a sala de jantar, onde sua esposa Marluce acabava de servir o jantar; sentou-se à cabeceira, a esposa sentou na extremidade oposta, ele olhou a mesa coberta pela toalha de renda surrada mas lavadinha, viu o canjirão fumegante de sopa de legumes, o bule de café, a pãozeira com dois pães franceses, o pratinho à sua frente com dois ovos cozidos, o pratinho da esposa com um ovo; ergueu o sobrolho e disse: “Isso é tudo que tem para jantar?”, a esposa suspirou fundo, olhou-o nos olhos mansamente e disse: “Isso é tudo que tem para jantar”; ele ergueu-se empurrando a cadeira para trás, recolheu na mão direita a borda da toalha e deu um único e vigoroso puxão que arrastou tudo em cacos e estrépito para o chão, e retornou para o escritório e seu labor na Memória dos Grandes Jurisconsultos Alagoanos