Algumas ressalvas, de início. Primeiro, que esta lista não
quer ser exaustiva. Segundo, que os temas não se limitam ao romance, estão
prsentes também no conto, no cinema, etc. São, a rigor, temas da narrativa policial.
Terceiro, que “policial” é um termo constantemente criticado pelos que preferem
“literatura de mistério”, “ literatura de crime”, etc., de acordo com o
elemento que predomina em cada história. É uma discussão importante, mas à
parte.
Compus a lista abaixo há muitos anos, sem outra pesquisa
a não ser minha memória das histórias que li.
O quarto fechado
São as histórias de “locked room” (também ditas “de sala
trancada”), os crimes impossíveis onde, na versão mais simples, a vítima é
encontrada morta num aposento trancado por dentro, sem qu se saiba como o
assassino entrou ou saiu. Desta situação básica foram criados alguns milhares
de variantes. Em 2021, publiquei pela Ed. Bandeirola (SP) a antologia Crimes Impossíveis, com dez contos
clássicos desta vertente.
A mensagem do
morto
A vítima é ferida, mas em seus últimos instantes de
consciência tenta deixar uma pista denunciando quem a matou – fazendo um gesto,
rabiscando uma palavra, indicando um objeto, etc. A pista tem que ser de tal natureza que mesmo
vista pelo assassino não lhe chame a atenção, pareça um movimento sem sentido;
e ao mesmo tempo deve chamar a atenção do detetive e permitir-lhe a associação
de idéias correta.
Ellery Queen é um dos que exploraram com mais
inteligência este tema (A Tragédia de X,
“Mum is the Word”, “G. I. Story”, etc.). Há geralmente um ar de
implausibilidade neste recursos – que pessoa, agonizando com um tiro ou uma
punhalada, teria tempo de raciocinar e conceber uma denúncia desse tipo? Mas,
ressalvando este detalhe, é o tipo de história que repousa sobre apenas um detalhe enigmático, e esse
detalhe, em tese, indica de forma precisa a identidade do assassino.
O documento
desaparecido
Um documento desaparece, sabe-se que não foi destruído, e
é preciso reavê-lo a todo custo. Muitas vezes é um testamento, ou a prova de um
crime, ou uma carta comprometedora... O precursor mais ilustre é “A Carta
Furtada” de Edgar Allan Poe. Em muitos casos o autor segue a tática de Poe de
revelar no fim que o documento estava apenas disfarçado, mas, num certo
sentido, à vista de todos. Histórias deste tipo não precisam necessariamente
envolver crimes. São histórias de mistério e engenhosidade, apenas.
Lembro de ter lido no Mistério
Magazine de Ellery Queen uma história (não sei de quem) de um velho, dono
de uma mansão com imenso jardim, que tentava deixar sua grana para alguém, e a
família (hostil) era contra. No fim da história, alguém percebe que antes de
morrer ele havia plantado flores amarelas em todo o jardim, e quando florescem
todas ao mesmo tempo formam o texto (lacônico, por suposto) do testamento.
É um conto típico da “fase rococó” de um subgênero,
quando todas as variantes já foram testadas e é preciso inventar truques cada
vez mais imaginosos.
O álibi perfeito
Todo criminoso, de acordo com o beabá detetivesco, tem
que dispor de três elementos: o motivo, a arma e a oportunidade. Neste último
detalhe repousam todas as histórias que giram em torno do álibi. Um álibi é qualquer
circunstância provando que o suspeito não poderia cometer o crime porque não
teve a oportunidade; geralmente, ele consegue provar que na hora do crime
estava em outro local.
Vai daí que muitas histórias policiais “às avessas”
(narradas do ponto de vista do criminoso) mostram a preparação cuidadosa de um
falso álibi. Sempre é possível produzir a impressão de que “A” não poderia
matar “B” porque estava em outro local naquela hora, ou então produzir a
impressão de que “B” foi morto em outro momento (neste caso é mais difícil,
pois a medicina pode estabelecer uma faixa de certeza quanto à hora do crime).
Um exemplo muito bom, de autor brasileiro, é o romance de
Fernando Sabino A faca de dois gumes
(1985), em que o protagonista comete um crime no Rio de Janeiro, tendo
preparado tudo para provar que estava em São Paulo naquela hora. O livro foi
adaptado para o cinema por Murilo Sales.
As mortes em série
obedecendo a um padrão
O subgênero “serial killer” estava num certo ostracismo
cinquenta anos atrás. Acho que foi ressuscitado pelo sucesso do filme O Silêncio dos Inocentes (1991) de
Jonathan Demme, que ganhou o “Grande Slam” do Oscar: Melhor Filme, Diretor,
Roteiro, Ator e Atriz. Daí em diante, serial killers despencaram em catadupa
sobre as nossas telas. Hoje, são tema de séries documentais de TV. O serial
killer é o maior mito pop do século 21.
A narrativa detetivesca coloca para si mesma esta
questão: Qual o elo que liga essas mortes? O que fez este assassino matar estas
pessoas, e não outras?
Na vida real, sabemos que para a maioria dos serial
killers a pessoa da vítima é o que menos importa. Não são crimes de ódio ou de
vingança pessoal. O crime é um ritual que ele cumpre para benefício próprio, e
a vítima está ali como uma rês anônima sendo sacrificada num altar pagão.
A literatura, no entanto, exige significado, deliberação,
arquitetura. Esses crimes têm que ter uma razão para acontecer – nós (os
detetives) é que não percebemos ainda. E quando percebemos somos capazes até de
prever quem será a próxima vítima. É um tema que percorre desde o terror
criminal de O Abominável Dr. Phibes (1971,
Robert Fuest) até A Noiva Estava de Preto
(livro de Cornell Woolrich, filme de François Truffaut) e Seven (1995, David Fincher).
As mensagens
enviadas pelo criminoso, fornecendo pistas indecifráveis
Outro lugar comum dos serial killings é o fato de que o
criminoso faz um jogo de gato-e-erato com a polícia, enviando mensagens
intrigantes ou ameaçadoras. Jack o Estripador, o serial killer arquetípico, fez
isto com a polícia londrina, enviando até algumas estrofes de doggerel (versos populares) zombando da
impotência policial.
Um clichê da narrativa de suspense baseada nisto é o fato
de que o assassino envia pistas de quem será a próxima vítima, e faz a polícia
se desesperar na tentativa de decifrá-las, para evitar que o crime aconteça. Uma
inteligente adaptação deste tema está no conto “O Chá Doido” (“The Mad
Tea-Party”) de Ellery Queen.
O roubo da jóia
trancada a sete chaves
Como roubar uma jóia (ou um quadro, um objeto de arte,
etc.) de alto valor, quando se sabe que este roubo será praticado, e o dono do
objeto tomou todas as providências para evitá-lo? Este tema reúne alguns
elementos do “quarto fechado” e também do “documento desaparecido”. Trata-se de
mostrar que por mais que alguém guarde, trancafie e proteja um objeto, ele
poderá ser roubado.
Entram aqui alguns dos mais famosos ladrões da narrativa
policial: de Arsène Lupin a Raffles, do Sinete Cinzento (de Frank Packard) a
Simon Templar, “O Santo” (de Leslie Charteris). Nenhum furto parece impossível
a esses mefistofélicos articuladores de planos que podem envolver de tudo:
passagens secretas, substituições relâmpago, subornos imprevisíveis, trocas de
identidade, manobras diversionistas...
O Ladrão, aliás, é um personagem à parte na narrativa de
crime. Muitas vezes não é o ladrão banal, que rouba para lucro próprio. É o
indivíduo que faz do furto uma arte, uma habilidade à disposição de quem possa
pagar por ela. O ladrão é um profissional contratado para executar uma manobra
de alto risco. E não conheço exemplo melhor do que Karmesin, o herói
mirabolante criado por Gerald Kersh, para quem tanto faz roubar um cadáver do
necrotério quanto a água de uma piscina.
A casa isolada e
os crimes sucessivos
É o subgênero também chamado de círculo fechado (“closed
circle”). Um grupo de pessoas está reunido num lugar qualquer, com pouca
possibilidade de contato com o mundo exterior, e uma série de crimes começa a acontecer,
deixando claro que o criminoso provavelmente é um deles. Os lugares e as
situações variam: uma ilha longe da costa (Glass
Onion, Rian Johnson), uma casa cercada por um incêndio (The Siamese Twin Mystery, Ellery Queen),
um hotel isolado pela nevasca (The
Mousetrap, Agatha Christie), uma casa de campo isolada pela chuva (The Mad Tea Party, Ellery Queen).
Este subgênero pode equilibrar os fatores de mistério e
de suspense, uma vez que se torna claro para todos que novos crimes deverão
acontecer, e ninguém pode fugir dali.
O amnésico acusado
de um crime e investigando por conta própria
Um homem desperta meio zonzo, geralmente depois de uma
bebedeira, ou de uma pancada na cabeça; e descobre que meses ou anos se
passaram desde a última vez que consegue lembrar-se. Onde ele estava, e o que
fez durante esse tempo? O homem com amnésia descobre, nas primeiras horas após
recuperar sua personalidade original, que está com documentos que não são os
seus (embora a foto seja sua), roupas que não conhece, e pessoas desconhecidas
o abordam com estranheza. E descobre que provavelmente cometeu um crime nesse
período de que não se lembra.
Uma variante desse tema começa com o protagonista despertando
amnésico – a história irá relatar seus primeiros dias ou meses sem lembrar quem
é, metendo-se em enrascadas e sem ter a quem recorrer.
Mistério e suspense se juntam nas narrativas em que o
protagonista tenta colar os cacos de si próprio. Um clássico no cinema é Memento (2000, Christopher Nolan). Uma
adaptação do tema para o techno-thriller
político é a série iniciada com A
Identidade Bourne (2002, Doug Liman). Na literatura, lembro de A Cortina Negra (Cornell Woolrich), Morte Inglória (Hugh McCutcheon), sobre
os quais escrevi aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2010/08/2324-amnesia-1982010.html
(The Lodger, 1927, Alfred Hitchcock)
O vizinho
(inquilino, locador) misterioso
Num hotel, pensão, casa de cômodos, etc., surge um belo
dia um indivíduo misterioso, esquisito, que nada faz de censurável ou de
agressivo, mas que incomoda pelo seu ar “diferente” ou hábitos estranhos.
Crimes acontecem na vizinhança. Terão relação com a chegada dele? The
Lodger (1911) de Marie Belloc Lowndes é um clássico deste subgênero, e foi
adaptado ao cinema por Alfred Hitchcock (1927).
Uma variante inevitável é a do vizinho “estudadamente
simpático”, alguém que fala com todo mundo, paga bebidas, faz favores antes que
eles sejam solicitados, dá sempre um jeito de se meter na vida dos outros
hóspedes, torna-se aquele sujeito de quem alguém só consegue se livrar com
grosseria. E logo surge a suspeita de que ele está tentando amealhar amizades,
e se garantir contra algo.
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E por aí vai. Falo alternadamente dos tópicos acima como
“temas” e como “subgêneros”. A tendência, na literatura popular, é que um tema,
ao fazer sucesso, seja repetido com variantes pelo próprio autor inicial, ou
por outros. Se este sucesso aumentar, ele se transforma num subgênero, com
regras próprias que serão um conjunto das regras propostas nas diversas
variantes. “Regras” é um termo muito forte: digamos que todas estas histórias,
vistas em conjunto, apontam caminhos,
que um novo autor pode usar ou não, de acordo com sua conveniência.