(imagem: telescópio James Webb)
Nos meus tempos de cantor independente, fui convidado a
fazer um show voz-e-violão num Congresso de Físicos. Havia amigos meus na
organização, e o congresso acontecia num hotel imenso e agatha-christiano de
Caxambu (MG). Na tarde em que cheguei, passei algumas horas tomando cerveja com
o prof. Roberto Ribas, os dois sentados a uma prudente distância da piscina,
conversando sobre a arte de perturbar o Universo.
A década de 1980 já vai longe, mas lembro de ter insistido
numa pergunta que ainda me aflige: Que distância um fóton é capaz de percorrer,
Universo afora, depois de ter sido emitido pelo Big Bang, até chegar aos nossos
telescópios? Um fóton perde energia? A luz cansa? Se sim, por quê? Se não, por
quê? Ainda não achei uma resposta que eu entendesse.
Outro grão de dúvida que me ficou daquela longa conversa foi
o modo como o Universo reage às nossas pequenas interferências.
Dei como exemplo a piscina, que se estendia deserta e
plácida, diante de nós. Digamos que eu me aproximasse dela, enchesse uma caneca
e levasse comigo aquela pequena quantidade de água. Claro que não ficaria um
buraco na piscina. No instante em que eu erguesse a caneca, a água em torno
preencheria aquele espaço. A piscina pareceria intacta; mas qualquer medição
antes-e-depois acusaria essa diferença mínima.
(Digressão: Dizemos que “a Natureza abomina o vácuo”, mas
acho que não é a Natureza, é a atmosfera. Alguns artefatos (uma lâmpada doméstica, p.
ex.) contêm o vácuo em seu interior. Se de repente fazemos uma abertura nele,
as moléculas de ar invadem numa fração de segundo aquele espaço, preenchendo-o,
como a água da piscina preenchia o buraco deixado pela caneca. O fluido mais denso
tende a preencher o espaço ocupado por um fluido mais rarefeito.)
Minha questão era mais ou menos esta: A piscina inteira
sabia o que estava acontecendo lá naquela extremidade, onde um rapaz cabeludo,
de cócoras, enchia dágua alguma coisa e a levava consigo? Pode-se dizer que
sim, porque o nível da água se reduzia por igual na piscina inteira, mesmo que
numa fração de 0,0001 de milímetro. A água toda
se re-arrumava para compensar aquela ausência.
Acho que o professor se saiu com alguma explicação de
Mecânica dos Fluidos, numa linguagem acessível a um cabeludo que não concluiu
sequer um curso de Humanas. Fiquei com uma certa impressão de que nossas
perturbações no Universo obedecem à percepção newtoniana da “razão inversa do
quadrado da distância”, ou seja, quanto mais longe do ponto de origem muuuuito
menor a alteração.
(Digressão: visualizando a piscina com a forma retangular
de um mapa-múndi, é como se uma canequinha de água retirada em “Campina Grande”
produzisse um movimento nas moléculas de fluido localizadas em “Lagoa Seca”, “Queimadas”,
“Riachão”, “Soledade”, etc., mas deixasse impassível e QUASE inalterada a posição
dos fluidos do “Japão”, “China”, “Sibéria”, etc.)
Isto me veio à lembrança durante a leitura de um conto de
terror de T. H. White, “The Troll” (1935).
(T. H. White)
Tudo acontece durante uma viagem do protagonista (pai do
narrador, sempre designado como “meu pai”) à Lapônia. Nesse lugar gélido do
extremo norte, o sujeito se hospeda num hotel e nessa mesma noite (uma noite
clara, pois o sol não se põe nessa época do ano) sonha que há sangue entrando por
baixo da porta que dá para o quarto vizinho.
Ele acorda (esse detalhe é importante – daqui por diante,
tudo acontece rigorosamente no “mundo real”) vai até a porta, olha pela
fechadura. E vê um Troll, um monstro de uns três metros de altura, devorando o
corpo de uma mulher desmaiada. Quando termina, o Troll olha na direção da porta
e seu olhar cruza com o olhar do homem que espreita pelo buraco.
O homem se afasta dali, abalado, mas não tem coragem de contar
o que viu. Pergunta na portaria, e lhe informam que o quarto ao lado do seu
está ocupado por um casal de meia idade; um professor sueco e sua esposa.
Ele sai para caminhar na montanha, sobe, desce, atravessa
um rio, molha-se todo, faz um lanche, vê paisagens deslumbrantes, que White
descreve com uma prosa fluida, de imagens vívidas (trad. BT):
A vida é um inferno inexprimível, mas apenas porque de vez em quando é
bela. Se ao menos pudéssemos ser miseráveis o tempo todo, se ao menos não
existissem coisas como o amor, a beleza, a fé ou a esperança, se eu pudesse ter
certeza absoluta de que o amor que eu sinto jamais seria correspondido... como
a vida se tornaria simples! Poderíamos mourejar nas minas-de-sal siberianas
durante todo o resto da nossa existência sem ligar para a felicidade.
Infelizmente, a felicidade existe. Sempre existe uma chance (numa proporção de
850 para 1) de que outro coração irá se aproximar do meu. E eu não posso deixar
de sentir esperança, de manter a fé, e de amar a beleza.
De volta ao hotel, ele ouve rumores de que a esposa do
professor do quarto vizinho desapareceu. No refeitório, vê o professor à
distância: parece um homenzinho miúdo, pacato, mas a certa altura os olhos dos
dois se cruzam.
Sabe aqueles instantes de reconhecimento instantâneo, olho no olho,
quando duas pessoas olham profundamente nas pupilas uma da outra, e penetram em
sua alma? Geralmente acontecem antes que surja o amor. Eu me refiro ao
reconhecimento claro, profundo, de olhos baços, que foi expresso pelo poeta
Donne. Os olhares dos dois se encontraram e se envolveram numa trança dupla. Meu
pai reconheceu que o professor era um Troll, e o professor percebeu que havia
sido reconhecido.
Esse clima alucinatório persiste, principalmente pelas
reiteradas afirmações (do pai do narrador) de que estava o tempo todo desperto,
acordado, em plena posse de suas faculdades mentais. O Troll era real, diz ele.
Era tão sólido quanto um guarda-roupa. A
gente não tem que acreditar na existência dos guarda-roupas. Eles estão aqui, e
têm quinas.
O contato com o Fantástico, no entanto, é doloroso demais,
desconcertante demais. E ele diz a certa altura:
Teria sido muito simples para uma criança, que está ainda estabelecendo
sua coordenação com o mundo, lidar com a presença do Troll; mas para o meu pai
não era. Ele continuava tentando encaixá-lo de alguma forma, sem perturbar o
universo.
E aqui deixamos o conto de T. H. White e voltamos para a
estrada principal. O Universo, aqui, é o universo perceptivo, o que enxergamos,
vemos, tocamos, somos capazes de conceber de maneira aceitável – mesmo
admitindo que nele existe o desconhecido, o inesperado, o incoerente, o
indefinível. Mas... um Troll?!
O que significa perturbar o Universo? Em última análise,
significa existir, tocar nele,
produzir uma alteração por mínima que seja, deixar nele um grão de poeira, uma
pegada, uma impressão digital, uma lembrança.
Quando o Fantástico irrompe em nosso universo e o perturba,
é como uma pedra caída num lago tranquilo, uma mosca caída no leite ou (no
símile famoso de Raymond Chandler) uma tarântula numa fatia de manjar-branco. O
Universo aparenta ser uma ordem racional, harmônica, equilibrada, e de repente
brota ali um cisco-no-olho, um fator de desequilíbrio.
E o que é esse elemento fantástico, esse Troll? Eu diria
que é o próprio autor, o Ser Humano. É ele quem perturba o Universo com sua
própria existência, com essa indisciplina de bicho-bruto, indisciplina que é ao mesmo tempo
sua glória de existir e seu impulso para a destruição.
O contrário do Troll é J. Alfred Prufrock, o pudibundo
herói do poema de T. S. Eliot (“The Love Song of J. Alfred Prufrock”, 1915), um
daqueles jovens que hoje estariam de camisa polo e sapatênis, meio de mãos
postas, deferente, solícito, a dizer: “Por favor... será que eu poderia comer
um pêssego? Ou será que isso não significaria perturbar o Universo?...”
Prufrock é o indivíduo sem poesia (retratado justamente num
dos melhores poemas do seu criador), um sensaborão, um “J. Pinto Fernandes” que
entra aos tropeções, por acaso, na quadrilha amorosa alheia. Perturbar o
Universo é sinônimo de existir, de ser gente, de fazer merda de vez em quando, ser politicamente incorreto, ser politicamente correto, fazer barulho, interromper uma coisa, desarrumar outra. Prufrock hesita antes
de comer um pêssego porque no fundo ele, o reprimidão, é um Troll desejando
arrancar com os dentes a cabeça de uma mulher desmaiada em seus braços. (Falo
metaforicamente, é bom que se diga.)
O Homem é o Troll da natureza. A civilização produz uma
realidade rígida, formalizada, pragmática, extrativa e destruidora
(representada no conto de White por um tecnocratíssimo turista americano que
ele conhece no hotel). E no meio dessa civilização, surge seu oposto simétrico,
o Reprimido que retorna: o instinto animal primitivo, representado pelo Troll. O
instinto animal do homem destruirá essa própria civilização com que ele está em
vias de destruir o mundo.
Nós somos a perturbação do Universo, como (para encerrar)
proclamou Paul Valéry no seu “Cemitério Marinho”:
Eu sou em ti a mudança secreta... Não tens senão a mim para conter teus
medos! Meus arrependimentos, minhas dúvidas, minhas limitações, são o defeito
de teu imenso diamante. (trad. José Paulo Paes)