terça-feira, 1 de dezembro de 2015

3986) O espírito do texto (2.12.2015)




Traduzir não é apenas encontrar palavras equivalentes às que estão escritas em outra língua. É produzir na mente do leitor um efeito semelhante ao da leitura do original. Ou melhor, um conjunto de efeitos, porque a experiência literária tem várias dimensões. Um diálogo literário, p. ex., não consiste apenas no que é dito, mas revela também a intenção com que foi dito, sugere algo que deveria ter sido dito também e não foi, e assim por diante. 

O leitor tem que perceber essas nuances, essas intenções que estão presentes mas não são visíveis. O leitor experimentado faz isso quase sem perceber, porque já leu tantos diálogos parecidos que quando um aspecto qualquer está faltando ele percebe essa falta e a completa mentalmente, assim como nosso olho completa desenhos onde faltam certos elementos.

Para além desses elementos que pertencem a história propriamente dita, existe outro que nem sempre é percebido. Um livro tem muitas vezes um clima peculiar, uma afinação, uma tonalidade de pensamento ou de emoção que perpassa todo o texto, algo que tem a ver com enredo e com estilo mas que está também além e em volta de ambos. É produzido por ambos, mas não parece estar presente em nenhum elemento isolado. 

Chamamos a isso clima, atmosfera, espírito – buscando símiles que traduzam essa impressão de algo que está por toda parte mas não pode ser dividido em unidades menores, nem apontado com o dedo numa frase específica. 

São exemplos disso a sensação de absurdo que se tem lendo Franz Kafka ou Philip K. Dick, a sensação de exaltação aventureira que produz a leitura de Alexandre Dumas ou de Maurice Leblanc, a sensação do peso opressor de um passado sombrio que vem da leitura de Lúcio Cardoso ou de Dostoiévski.

Jorge Luís Borges (em suas Norton Conferences) cita uma observação de Matthew Arnold segundo a qual existem na poesia de Homero numerosas qualidades (clareza, nobreza, simplicidade, etc.), e que um tradutor deveria sempre reproduzir essas qualidades, mesmo quando o texto não as exibe de maneira explicita.

Este princípio pode ficar mais claro usando como exemplo a ironia. Como sabemos quando um personagem, ou o próprio romancista, está sendo irônico? A ironia é um anti-texto, com sentido em sinal trocado, e só pode ser entendida se o leitor estiver com acesso a um contexto muito mais amplo de valores e de intenções. (Não vale recorrer a informações biográficas ou a entrevistas do autor: o texto deve valer pelo que está escrito.) 

Um texto irônico torna-se inteligível por ter seu sentido literal negado por um conjunto inteiro de alusões, indicações, etc. que se estende ao longo de toda a obra.





3985) Os livros inacabados (1.12.2015)



Umberto Eco propôs num livro homônimo e famoso o conceito de “Obra Aberta” para falar dessas obras que criam espaços a serem preenchidos, ou elementos a serem re-arranjados, pelo leitor. Obra que “chama o leitor pra dentro”, com poderes para interferir. Uma obra interativa, diríamos hoje, quando o conceito se expandiu a ponto de termos obras de arte – como os videogames – em que a interatividade é estrutural, essencial, não pode ser retirada sem que a obra inteira desmorone.

Um tipo particular de obra aberta, na literatura, é o livro deixado incompleto por um autor falecido. Há muitas obras assim, e acabam sendo publicadas sem o final (caso mais frequente) ou sem o meio, caso de O Processo (1925) de Kafka, do qual ele chegou a escrever o último capítulo, mas ficaram faltando muitos trechos intermediários. Um passatempo de autores sem assunto é propor “finais” para clássicos inacabados como O Mistério de Edwin Drood (1870) de Charles Dickens, que tem o charme adicional de ser um romance policial, o que convida todo mundo a descobrir o verdadeiro criminoso (que Dickens morreu sem revelar).

Também foram deixados inacabados As Confissões do Impostor Felix Krull (1954) de Thomas Mann, O Último Magnata (1941) de F. Scott Fitzgerald, The Pale King de David Foster Wallace (2011). Isso não os impede de terem sido publicados, depois de um trabalho de ordenação de todo o material deixado pelo autor. Ou de serem concluídos por alguém, como é o caso the The Poodle Springs Story, que Raymond Chandler deixou incompleto ao morrer. Eram 3 ou 4 capítulos muito ruinzinhos, que foram complementados e publicados em 1989 por Robert B. Parker (ainda não tive coragem de checar o resultado).

Um que me fascina é outro romance policial, o 53 Jours de Georges Perec (1989). A edição da Folio traz doze capítulos (o último deles apenas iniciado), em 128 páginas, e as 176 páginas restantes transcrevem as anotações deixadas pelo autor (que era meticuloso e detalhista), organizadas por seus amigos Harry Matthews e Jacques Roubaud. Note-se que Perec trabalhou na era pré-computador e todas suas notas estavam em cadernos manuscritos e folhas soltas. Não pode haver obra mais aberta do que essa, cuja primeira metade consiste num texto mais-ou-menos amarrado (o câncer levou Perec antes de uma revisão final) e a segunda metade numa babel-babilônia de pistas, hipóteses, possibilidades, questionamentos, preparativos, subtextos inspiracionais, todo o tumulto criativo que o escritor ferve e destila no alambique da mente para fazer gotejar, palavra por palavra, no manuscrito final.