Rio de Janeiro, época contemporânea. Um cara sai
para beber à noite, e reencontra por acaso um amigo de juventude, lá da
Paraíba, que não via há mais de vinte anos. Abraços, euforia, risadas, os dois
começam a beber juntos, entram naquele estágio de “e Fulano, que fim levou?”,
“tem visto Sicrana, como vai ela?”, “e tua família, todos bem?” – porque é
assim o ser humano, passa dez anos sem nem se lembrar de alguém, mas na
primeira chance quer saber da vida.
Os caras começam a beber no Largo do Machado, depois vão
até a Lapa, porque o Nova Capela nunca fecha, de lá vão para um subúrbio,
porque não estão bêbados, e o que está ao volante (a história é contada do
ponto de vista dele) é experiente. Mas vão para um subúrbio, num bar no meio do
matagal, e lá enchem a cara com seriedade. Ao saírem do bar o amigo puxa um
assunto antigo, uma discussão que os dois tiveram anos atrás.
Isso não é hora para lembrar disso, defende-se o dono do
carro. Não vamos estragar uma noite tão bacana. Você já estragou, naquele dia,
diz o amigo, ligeiramente trôpego. Me chamou de pobre e de unha-de-fome. Que é
isso, retruca o primeiro. Não me lembro de nada disso. Fiz só uma comparação
entre você e seu irmão. Tá vendo como lembra? Diz o outro, em voz pastosa e
triunfante. Seu filho da puta.
Para encurtar a história, os dois se enraivecem, brigam, se
esmurram, o dono do carro puxa um revólver, alucinado de raiva (acaba de perder
um dente da frente, afrouxado por um soco) e dá dois tiros no amigo.
Apavora-se. Olha em redor. Bar fechado, matagal, luzes distantes. Ninguém viu.
Ele pega o carro e some.
A história vinha sendo contada do ponto de vista dele,
mas agora o carro segue um caminho de terra, chega à BR e desaparece ao longe; e
a narrativa permanece no local do crime, um parágrafo final descreve o corpo do
outro, a vida se esvaindo aos poucos, a poça de sangue aumentando, e ele caído ali,
na escuridão, no meio do mato, nos fundos de um terreno baldio que servia de
estacionamento. Carros passando ao longe e ele desaparecendo aos poucos.
Fui dormir satisfeito, ou bêbado, o que é a mesma coisa.
No outro dia fui pra rua resolver vários assuntos, tive uma tarde atarefada,
mas de noite (estava sozinho em casa, minha mulher estava viajando) abri outra
cerveja e fui reler o conto.
Fiquei com pena dos caras! Achei sacanagem – dois amigos se reencontram,
tudo bem que no passado houve um desentendimento, se chatearam um com o outro,
mas amizade tem que ser como água, que você mexe, agita, tira um pedaço, e ela
volta pro formato de antes. Pra que isso? Fiquei com pena do defunto esfriando
no matagal. Fiquei com pena do outro, cantando pneu nas curvas da rodovia, o
revólver ainda quente guardado no bolso, a ponta da língua tentando manter o
dente no lugar.
Amassei a última página, voltei para o teclado e para a
história. Sim, eles saem. Eles discutem, mas não tem murro. Era pobre, não era,
isso e aquilo, aí o cara do carro puxa o revólver. Nesse instante o outro diz:
“Mas Fulano, que história é essa? Tu anda armado agora?” O cara está furibundo e diz: “Isso aqui é o
Rio de Janeiro, seu merda, aqui a pessoa tem que se cuidar, não é aquela bosta
da Paraíba onde vocês dormem de janela aberta.” O outro está bêbado mas tem
amor próprio, ergue o dedo no ar e diz: “Não insulte a Paraíba, filho ingrato,
porque até Lampião tinha medo, só passava por lá pra cortar caminho pro Juazeiro.”
Os dois começam a rir. O primeiro abre o tambor do
revólver e mostra: “Essa porra está sem bala, eu morro de medo de um acidente”.
Se abraçam rindo, mangando um do outro, e vão à procura de um bar aberto, mesmo
porque já passa das quatro e meia da madrugada.
Ficou melhor o conto? Ficou pior? Não sei, porque foi um
dos muitos que numa tarde de verão e impaciência eu rasguei em quatro e enchi com
eles um saco de lixo, daqueles de plástico azul. Mas nesse episódio eu me senti não um Deus, mas
dois – porque soube que tinha o poder de matar, e o poder de trazer de volta à
vida.
Então, quando eu sento para escrever alguma coisa, eu
procuro invocar de dentro de mim esse poder, porque não existe coisa mais
perigosa neste mundo do que um poder que o indivíduo tem e não utiliza. Esse
poder se rebela, ele incha, estoura as costuras da alma, e acaba
desequilibrando a vida do sujeito, como um cachorro que a gente compra, bota
dentro de casa e deixa crescer sem domesticar.
Tenho inclusive a impressão (não posso mais checar,
joguei o conto fora) que os tais amigos eram escritores, e a certa altura um
dos dois, nem lembro qual, dizia ao outro: “Não tem sentido você sentar pra
contar uma história onde só acontece o banal, aquilo que acontece todo dia na
vida de todo dia, ou então, pior ainda, acontece o extraordinário conforme-as-expectativas, o
fantástico self-service, a tentativa pálida de reescrever um livro alheio que a
gente leu e gostou. O poder-de-fazer-acontecer não deve ser estragado,
malbaratado, jogado aos porcos. Faça acontecer coisas que lhe deixem o olho
brilhando, a respiração acelerada, a boca seca, o coração batendo e dizendo:
caralho, velho, não acredito que isso está acontecendo na tua história!...”
Foi isso que um dos amigos disse pro outro, ou melhor,
teria dito, porque na verdade não teve conto nem nada, isso foi só uma coisa que eu
estava pensando no sofá da sala, meia hora atrás.