Borges, numa das suas Norton Conferences (1967-68, publicadas em 2000) examina mais de perto essa
imagem. Diz ele que em primeiro lugar a
história alude a um sonho, e basta isso para contaminar de sonho qualquer
realidade que se siga. Depois, porque a escolha do animal, a borboleta, não
poderia ter sido mais adequada.
De fato, uma borboleta é um
bom exemplo de criatura que sabe o que é se transformar noutra. Note-se que Chuan Tzu não sonha que é uma
lagarta, então, quando ele se imagina e se projeta como borboleta, está
admitindo que sua vida como Chuan Tzu tinha sido apenas o preparatório
lagartóide para aquilo. Voltar a ser Chuan Tzu seria dar um passo atrás. Como o
astronauta do conto de Clifford Simak (“Desertion”), que se transforma numa
criatura jupiteriana, descobre a felicidade e não admite ser restaurado como
humano.
A borboleta tanto é uma
criatura inquieta, que vive sempre buscando algo, como é algo que atrai os
olhares e as admirações em volta. Chuan
Tzu tem, na sua dimensão lepidóptera, o dom da beleza, que talvez lhe falte no
mundo de cá, onde ele é filósofo gordinho ou um calvo comerciante. Sem falar no voo, na terceira dimensão
onipresente, na leveza. Ser borboleta era
o LSD de Chuan Tzu. Imagine-se como devia ser bom, acordar nos dias pares como
Chuan Tzu, dormir, acordar nos ímpares como borboleta.
“As borboletas têm algo de
delicado e evanescente”, diz Borges. Claro que outros animais poderiam servir;
mas a borboleta é perfeita. Borges
argumenta com simplicidade que seria inverossímil esta história com um tigre,
uma máquina de escrever, uma baleia. Nenhum desses (concordo) parece ser capaz
de pensar Chuan Tzu de volta, ou mesmo de dar a Chuan Tzu uma dimensão a mais
que ele não tinha. A borboleta, por
dois ou três traços apenas, já ganha de goleada.